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Diáspora

Música, TikTok e Ensino Superior: Língua crioula expande-se em Portugal

Fala-se que é já a segunda língua mais falada em Portugal e que até poderia aspirar a língua ‘oficial’, visto ser mais falada do que o próprio mirandês. O crioulo de Cabo Verde, conforme anunciado pelo governo de Luís Montenegro, é uma das línguas que irão ter mais espaço no ensino, a par do tétum timorense e dos crioulos da Guiné-Bissau e de São Tomé, de base portuguesa. E há quem aponte este exemplo como algo que devia ser seguido pelo governo do país da própria língua, Cabo Verde.

Ocrioulo cabo-verdiano, ou a língua cabo-verdiana, há muito que faz parte do quotidiano português. A começar pelos vários bairros por onde a “comunidade” se espalha, nos distritos de Lisboa e Setúbal, essencialmente. É uma herança e criação dos homens e mulheres das ilhas, ao longo de mais de quatro séculos, que fizeram da língua a matriz e a coluna vertebral da sua identidade cultural. Acompanhou a nação crioula para os quatro cantos do planeta e serviu de veículo para cantar a saudade da terra-mãe.

Esse valor e importância foi agora reconhecido pelo ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, no calor do debate em torno das “reparações históricas” do colonialismo português. O anúncio feito por Paulo Rangel, no parlamento, de o seu ministério e o da Educação virem a “desenvolver esforços para criar nas faculdades de Letras portuguesas programas de investigação, cursos e até cátedras de tétum, crioulo, línguas timorenses, cabo-verdiana, guineense e são-tomenses”, é bem acolhido, sobretudo junto dos professores.

Mas há quem lembre que a língua cabo-verdiana há muito que vem sendo ensinada em Portugal, inclusive em projectos de ensino bilingue, no secundário, na Margem Sul. É o caso da professora Ana Josefa Cardoso, para quem o anúncio de Paula Rangel é bem-vindo. “Mas, ele fala disso como se fosse uma grande novidade. A Faculdade de Letras de Lisboa já tinha um curso de crioulos de base lexical portuguesa, já tinha essa disciplina, coordenada pela professora Dulce Pereira, não era um curso inteiro, era uma cadeira de opção, creio, dos cursos de linguística e de estudos africanos, que tinham acesso a essa cadeira.”

‘Não é bem uma novidade…’

Como adianta Cardoso, “a Faculdade de Letras tem já vários linguistas que trabalham na área dos crioulos e não é propriamente uma novidade, se calhar não era divulgado e não se sabia. E agora, se houver essa possibilidade de as coisas serem como ele diz, tanto melhor, porque assim talvez venha a fazer com que Cabo Verde seja mais activo nesse sentido e que valorize mais a sua própria língua materna.”

Quem também pensa que há que aproveitar o momento e a oportunidade que se abre para a língua cabo-verdiana, em Portugal, é o professor alemão Lonha. Mesmo ressalvando alguma ‘desconfiança’ neste governo da AD, constituído pelo PSD e o PP.

No seu crioulo perfeito de Santiago, Lonha, o ‘nominho’ de Hans-Peter Heilmair, defende que “devemos aproveitar tudo o que possa ser feito para melhorar a situação e se querem apoiar, temos de estar atentos e chamar atenção para esta promessa que estão a fazer”.

Lonha, que entrou em contacto com a língua cabo-verdiana ainda nos anos de 1980 e que dá aulas de crioulo desde 2015, recorda que nesses primeiros anos tinha só alunos portugueses, “pessoas que queriam estabelecer um contacto mais próximo com pessoas em Cabo Verde, e falando o crioulo é bem melhor do que o português, mais formal e com alguns limites no estabelecimento de contactos mais próximos, mais terra a terra”. 

No entanto, como assinala, o universo dos alunos sofreu uma mudança nos últimos tempos, com o surgimento de vários alunos de origem cabo-verdiana, de segunda e terceira gerações. “Situações típicas de pais que falam crioulo em casa, entre si, mas só em português com os filhos.”

Aqui, explica o nosso entrevistado, gera-se um conhecimento “passivo” do crioulo, os filhos entendem, mas não falam e muito menos escrevem. “Há o risco de eles nunca virem a falar e de perderem o pouco conhecimento que têm, por isso alguns procuram ter aulas, para aprenderem a construir melhor as frases, por exemplo.”

Alunos portugueses e descendentes de cabo-verdianos

Quem também começou muito cedo a dar aulas de crioulo, foi a professora Adelaide Monteiro, em 1993, então estudante de Linguística, com assistentes sociais no bairro da Pedreira dos Húngaros, concelho de Oeiras, às portas de Lisboa. “Posso dizer que foi a primeira vez que tomei consciência da linguística da língua cabo-verdiana e não havia, na altura, muitos instrumentos de apoio para esse trabalho.” Actualmente, dá aulas de língua cabo-verdiana para estrangeiros.

“Alguns são portugueses, outros são de origem cabo-verdiana, aulas online, os que terminam aprendem a língua cabo-verdiana, as suas particularidades, a gramática, umas pelo lado afectivo e outras por necessidades profissionais, porque trabalham, por exemplo com músicos cabo-verdianos”, conta. O número de alunos, afirma, tem vindo a aumentar, cada vez que se inicia um novo curso, o que denota maior procura pela aprendizagem do crioulo de Cabo Verde.

Para além de facilitar a mobilidade, explica Adelaide Monteiro, as aulas online permitem ter alunos inclusive nos Estados Unidos. “Já estamos a organizar um quarto curso e já tenho inscritos cerca de 30 alunos, entre eles antropólogos, sociólogos, fotógrafos, alguns descendentes de cabo-verdianos, que têm uma vaga lembrança dessa língua dos avós. E quando estes desaparecem, a língua desaparece…”

Continuamos a falar de pais, explica a professora, que preferem não ensinar e não falar o crioulo com os filhos, para facilitar a integração, e os filhos, já na idade adulta, decidem aprender a língua, “algo que eles consideram que faz parte da sua cultura”, diz.

Joaquim Arena

Leia na integra na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 873, de 23 de Maio de 2024

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