Por: Germano Almeida
É pena o professor catedrático Wladimir Brito ser cabo-verdiano. É certo ser honroso para nós ter um constitucionalista nacional, tanto mais que parece ser o único no conjunto do nosso país, ou pelo menos o único com opinião própria, falada e escrita nos jornais, e também estaleca para desmontar a sentença inconstitucional do Tribunal Constitucional que volveu em lei uma rotina que já era contra a lei e não mudou em absolutamente nada, não obstante o beneplácito do TC. (Alias, como que de propósito, o linguista francês Nicolas Quint-Abrial, num estudo sobre o crioulo de Santiago, debruça-se exatamente sobre a palavra kos’tume para mostrar que na maioria das vezes não significa ter o hábito de, mas sim já ter feito alguma coisa. E dá um exemplo: bu kostuma bai Práia?)
É certo que a coisa é tão evidente e clara que a gente nem precisa ir para a faculdade de direito para ver que aquele acórdão só pode ser inconstitucional. E se está na cara para nós outros, quanto mais para um professor universitário jubilado de direito constitucional. Esse então, vê a coisa a léguas de distância. E também é brioso o suficiente, tem amor aos princípios e normas e à Constituição que ajudou a construir, quer que os tribunais cabo-verdianos funcionem bem, não apenas em palavras mas sobretudo em atos concretos de que poderemos e deveremos todos orgulhar. E por isso, toma posição destemida, diz alto e bom som que o acórdão nr 17/23 do TC é inconstitucional. Todos os juristas sabem isso, infelizmente poucos têm coragem de o dizer, dizem que têm que se defender, têm laços comestíveis. Bem, na realidade todos nós temos laços comestíveis, que eu saiba serão poucos os ricos deste país. O que todos não têm é dignidade, e isso não se aprende na faculdade, isso é coisa que se traz de casa.
Mas dizia ser uma pena o Wladimir Brito ser cabo-verdiano. Se fosse português todos os juízes do TC estariam agora apavorados, um “colega” português a questionar um pronunciamento de 32 páginas bem medidas com uma única e simples frase: “é inconstitucional”! Seria do arco da velha. É que, pelo menos no que concerne ao direito, nós vivemos ainda sob o temor reverencial colonial. Portanto, ainda bem que Wladimir Brito é nacional, mete menos medo, ou se calhar não mete nenhum medo, toda a gente sabe que santos de casa não fazem milagres.
Porém, não quer dizer que vai ficar sempre assim em família. Porque sabe-se que constitucionalistas portugueses foram já chamados a opinar sobre esse arremedo de sentença. E se todos o declararem inconstitucional? Melhor, em rigor, bastará um fazê-lo porque as nossas leis são todas copiadas de Portugal. Durante a minha passagem pelo Parlamento, fartei-me de dizer aos colegas deputados: eu aprendi com o professor Rodrigues Lapa que na língua portuguesa não há palavras sinónimas, é um risco grande copiarmos as leis portuguesas e depois trocarmos uma ou outra palavra aqui ou acolá, fingindo originalidade. Depois dá chatice na interpretação porque, para além de todas as outras virtudes, aliás muito bem resumidas pelo escritor Baptista Bastos, as palavras também têm uma história e gostam de ser respeitadas.
Wladimir Brito diz abertamente que ao produzir esse acórdão manifestamente inconstitucional o TC não prestou um bom serviço à república, à democracia e aos direitos fundamentais. Mas a verdade é que o TC seguiu a esteira do tribunal da relação de barlavento cujo lema parece ter sido desde o início, destruir o deputado Amadeu Oliveira, transformar o homem num farrapo inútil através de arbitrárias posturas que quiseram tapar com o nome de legalidade, como se todos nós não tivéssemos estudado praticamente pelos mesmos livros. E quando se esperava que o TC finalmente pusesse ordem nesse galinheiro enquanto última esperança de confiança no poder supremo da Justiça, eis que optam por branquear um ato arbitrário do Parlamento que nada teve a ver com qualquer tipo de lei, antes teve como único objetivo “conter” o Amadeu Oliveira. Mais: a suspeita que pior traduz a situação de indignidade do TC é aquela que a reconduz a uma espécie de gendarme do poder político. E desde sempre comentado por muitos, mas agora claramente trazido à colação pelo dr. Wladimir Brito, são os casos da SOFA e também do ALEX SAAB, todos decididos conforme as conveniências do poder político de momento, maculando de forma irreversível e certamente a troco de coisa nenhuma, individualidades nacionais que precisávamos que continuassem na reserva da nossa República, neste país de muita guentis, mas cada vez mais empobrecido de arguem.
Infelizmente assim não estão entendendo, e se nos casos SOFA e SAAB pode ter perdurado alguma dúvida na interpretação da lei, no caso do acórdão 17/23 não houve qualquer dúvida em coisa alguma: ele foi minuciosamente construído e elaborado exatamente como os escritores escrevem os seus romances, isto é, sabendo exatamente o que querem que aconteça no final do livro. E com efeito, toda o acórdão-novela é construído parágrafo a parágrafo num fio condutor donde não se desvia um único milímetro, primeiro juntando incidentes ou episódios que se repetem, que pelo caminho vão virando costumeiros, até finalmente conduzirem à inexoravelmente e festiva apoteose do costume como lei constitucional capaz de revogar a Constituição.
Dito muito francamente, não foi um processo de que nos devemos orgulhar. Do mesmo modo que já não será mais possível confiar e acreditar na boa fé de qualquer decisão que os juízes do TC venham a tomar, porque chegam à partida inquinadas da gravíssima suspeita de poderem estar ao serviço de qualquer um, menos da Justiça que são chamados a defender.
E para quem tenha dúvidas sobre as manchas que podem cair sobre os melhores panos, sugiro ler a crónica de Alexandre Martins no jornal Público de 30.04 passado, acerca do comportamento de juízes no Supremo Tribunal dos EUA. Na realidade, como dizem os brasileiros, ficamos no mato sem cachorro quando perdemos todos os suportes de garantias do cidadão, incluindo a garantia suprema que seria o Tribunal Constitucional. Estamos mesmo bem lixados!!!!!!!!!