Por: João Serra*
Fruto de quinze anos de pesquisas incansáveis, em 2013, o economista francês Thomas Piketty publicou o seu livro, intitulado “O Capital no Século XXI”, considerado por Paul Krugman, Prémio Nobel da Economia de 2008, uma obra-prima e um dos mais importantes livros de economia da segunda década deste século.
Em “O Capital no Século XXI”, Thomas Piketty analisa um conjunto exclusivo de dados de vinte países, que percorrem mais de três séculos, para discernir as forças que levam à concentração da riqueza – e, por essa via também do rendimento –, bem assim, à evolução da desigualdade. As descobertas feitas nesse livro reacenderam um intenso e rico debate global sobre a riqueza e a desigualdade.
O livro tem tido um enorme sucesso de vendas. Publicado em vários países do mundo, constou da lista de “bestsellers” do “New York Times” pouco depois de ter saído nos EUA, tendo sido distinguido com vários prémios internacionais relevantes.
O interesse pela obra de Piketty e o seu sucesso muito se devem às questões de distribuição do rendimento que são centrais à política. O contraste entre a riqueza e o rendimento de uma pequena percentagem mais próspera e do resto da população tem sido um tema de enorme sensibilidade e relevância. Particularmente em períodos de crise, como o que estamos a viver atualmente, a ideia de que o sistema político e social garante privilégios indevidos aos mais abastados ganha uma dimensão exacerbada, tornando praticamente insustentável um sistema político e social que justifica tais perceções, em especial nas sociedades democráticas.
Para alguns dos mais destacados economistas do século XIX, nomeadamente David Ricardo e Karl Marx, a concentração ilimitada da riqueza, em pequenos grupos privilegiados, era uma tendência inevitável na economia. Assim, enquanto para Ricardo o rendimento e a riqueza ficariam cada vez mais concentrados nos proprietários fundiários, já para Marx, em resultado do funcionamento irresistível das leis de acumulação do capital, a concentração beneficiaria os donos do capital, os capitalistas. A longo prazo, a concentração de riqueza levaria a um descontentamento crescente das camadas mais pobres e, logo, a uma instabilidade política e possibilidade de “revoluções”.
Ou seja, as tendências de longo prazo na distribuição desigual de rendimento conduziriam a profundas dinâmicas sociais e políticas. Nesse âmbito, seria então necessária uma saída política que ajustasse o patamar “de equilíbrio” da distribuição para níveis mais “seguros”, visando garantir a estabilidade política a par da estabilidade económica. Isso fez com que a abordagem de Economia Política prevalecente no século XIX fosse caraterizada pela associação entre os fenómenos económicos, sociais e políticos.
Na década dos anos 50 do século XX, o economista dos EUA Simon Kuznetz, utilizando as informações disponíveis na época, apresenta a ideia de que a distribuição do rendimento se tornaria mais assimétrica numa primeira fase de desenvolvimento e, finalmente, registaria uma tendência de diminuição. Em consequência, a desigualdade estabilizaria à medida que as sociedades consolidassem o sistema e atingissem um estágio de maturidade, o que se expressaria graficamente num “U invertido”.
No seu livro “O Capital no Século XXI”, Piketty reconstrói a “Curva de Kusnetz” e demonstra que ela se inclina na direção oposta. Através de um gráfico, o autor mostra que a parte do primeiro decil da população nos EUA tem uma forma de “U” ao longo do período de cem anos, entre 1910 a 2010. Este padrão refuta a conjetura de Kuznetz de que o fortalecimento das sociedades capitalistas carrega intrinsecamente a redução das desigualdades.
Para Piketty, esta evolução recente não é um acidente, mas antes o resultado de poderosas “forças de divergência”. Estas podem ser resumidas de seguinte modo, segundo Vítor Gaspar (O capital, segundo Piketty, jornal Observador, 03 jun. 2014): quando a taxa de remuneração da riqueza (taxa de juro para simplificar) excede a taxa de crescimento do PIB, estão criadas as condições que propiciem a conceção de uma sociedade dominada pelos proprietários do capital, porquanto, nestas condições, basta aos capitalistas poupar uma parcela da sua riqueza para que esta – e o correspondente rendimento – acumulem mais depressa do que cresce o PIB. Nestas situações, os patrimónios herdados tenderão a dominar a importância de uma vida inteira de trabalho, o que leva Piketty a concluir que uma tal ocorrência mina os valores de justiça social e de recompensa do mérito e do esforço que são os fundamentos contemporâneos da democracia.
Ao suprarreferido acrescem, adicionalmente, alguns factos, ainda conforme Vítor Gaspar. Em primeiro lugar, Piketty também destaca que a distribuição da riqueza ou património (a que chama capital) é muito mais desigual que a distribuição do rendimento. Para camadas largas da população não existe um património ou riqueza líquida significativa. Em segundo lugar, documenta que desde a antiguidade até hoje a taxa de juro excedeu, em regra, a taxa de crescimento do PIB.
Todavia, ao contrário de Ricardo e Marx, para Piketty não existe uma tendência pré-determinada que leva ao aumento da desigualdade e ao fim do capitalismo ou o que ele chama de “apocalipse marxista”. Na sua visão, existem tanto as “forças de divergência” que aumentam os níveis de desigualdade, quanto as “forças de convergência” que diminuem a desigualdade, a saber: a acumulação e transmissão de conhecimentos, a educação, a mobilidade dos fatores de produção e a integração de mercados. Em função do período histórico, pode haver diferentes combinações entre essas duas forças, fazendo com que haja trajetórias díspares do nível e da estrutura da distribuição de rendimento. Assim, de acordo com Piketty, seria possível identificar, nos principais países desenvolvidos, ao longo dos séculos XVIII e XIX, e após 1970-80, uma tendência de concentração de riqueza. Já nos períodos de recuperação económica, ocorridos depois da primeira e da segunda guerras mundiais, uma combinação de altas taxas de crescimento económico e populacional teria possibilitado uma situação inédita na história de desconcentração de riqueza, resultando em uma redução das desigualdades patrimoniais.
Segundo Piketty, uma situação de desigualdade extrema pode levar a um descontentamento geral e até ameaçar os valores democráticos. Para ele, este é um cenário que deve ser evitado por opção consciente de política e lembra também que a intervenção política já foi capaz de reverter tal quadro no passado e poderá voltar a fazê-lo. Para o efeito, propõe alterações no Estado Social, no imposto progressivo sobre o rendimento e a introdução, a nível global, de um imposto sobre a riqueza.
Pessoalmente, tinha algumas críticas a fazer ao livro, que não caberiam neste espaço de jornal que me é disponibilizado. Pelo que me limito ao propósito desta recensão.
Assim, termino dizendo que “O Capital no Século XXI” é uma referência incontornável para a continuação e o aprofundamento do debate sobre uma das questões mais prementes do nosso tempo. No livro, põe-se em causa o popular pressuposto de que “a acumulação de capital acompanha o progresso social”, questiona-se o poder do capital e do património herdado e formula-se a hipótese de uma sociedade de maior justiça financeira. Vale a pena lê-lo”!
Praia, 12 de novembro de 2023
*Doutor em Economia