Por: Luís Kandjimbo**
No decurso das três últimas décadas, o campo disciplinar da Teoria das Relações Internacionais registou intensos confrontos de modelos analíticos sobre a estrutura das relações que os actores estatais e não-estatais estabelecem entre si. Mas debatem-se também questões respeitantes ao lugar que nele ocupam a cultura, as instituições, as ideias, as literaturas, os sistemas simbólicos e seus agentes. A partir da nossa posicionalidade é possível verificar a existência de uma dupla marginalização dos actores e sistemas simbólicos africanos. A este respeito, há uma ilusão sociológica de cariz eurocêntrico acerca do presumível lugar justo, atribuído às literaturas africanas, sobre as quais paira o espectro do esquecimento e indiferença como efeitos da sua posição periférica construída por um certo preconceito. Todas estas operações de marginalização desenvolvem-se no campo da «república mundial das letras» como lhe chamou a ensaísta, socióloga e crítica literária francesa Pascale Casanova (1959-2018), na imagem. Nesta conversa, é do tópico associado à sociologia e às relações literárias internacionais que nos vamos ocupar.
Literaturas comparadas africanas e europeias
O comparatista espanhol Claudio Guillén (1924-2007) definiu a Literatura Comparada como «ramo da investigação literária que se ocupa do estudo sistemático de conjuntos supranacionais que são estruturas diacrónicas ou daquelas estruturas diacrónicas que são conjuntos supranacionais. Acrescia ainda a dialéctica entre «o local e o universal» e «o uno e o diverso». Por essa razão, Claudio Guillén reconhecia que as relações literárias internacionais existem. Quanto a mim, o sentido que ele lhes atribui circunscreve-se a influências literárias internacionais. Numa perspectiva verdadeiramente comparada, a ideia de influências literárias assenta em fundamentos difusionistas. Isto remete para fortes preocupações metodológicas com um centro supranacional a partir do qual se desenvolvem e são avaliados os diferentes sistemas simbólicos, entre os quais as línguas e as literaturas africanas. Esta é razão por que, durante muito tempo, os estudos das relações literárias internacionais, na Europa, confundiram-se com a literatura comparada europeia.
Em contraponto ao provincianismo alargado, como lhe chamou o francês Pierre Brunel, decorrente do surgimento dos «estudos de literatura comparada europeia», veio o camaronês Thomas Melone (1934-1996), professor titular da Faculdade de Letras da Universidade de Yaoundé, quando, em 1968, tomou a iniciativa de fundar o Departamento de Literaturas Africanas Comparadas a que estava vinculada a Equipa de Pesquisas em Literaturas Africanas Comparadas, por si dirigida. Em 1984, no Colóquio Internacional de Bordéus sobre Literaturas Africana e Ensino, Innocent Futcha, também professor da Universidade de Yaoundé, considerou que as razões para a criação daquele Departamento de Literaturas Africanas Comparadas tinham deixado de fazer sentido. Era um equívoco. Em 2001, foi formada a Rede Europeia de Estudos Literários Comparados que, posteriormente, constituiu a Sociedade Europeia de Literatura Comparada, em 2017.
Por razões de ordem ética, com fundamento em interrogações critica sobre o eurocentrismo da disciplina, a Associação Internacional de Literatura Comparada criou, em 2019, um Comité de Pesquisa de Literaturas Africanas Comparadas, reconhecendo que as literaturas africanas representam os mais antigos e diversos corpos de literatura do mundo. Além disso, o continente africano tem uma população de quase um bilião de habitantes, um total de cinquenta e quatro países e uma pluralidade de formas literárias e culturais, tanto no continente quanto nas suas diásporas africanas. Aí está um argumento que derruba a exclusividade ocidental do critério da «antiguidade», enquanto factor de identidade, potência das nações e respectivas literaturas nacionais.
Paroquialismo de Pascale Casanova
Antes da sua morte precoce, Pascale Casanova, distinguiu-se pelos seus estudos sobre a estrutura e o funcionamento do campo das relações literárias internacionais, a que ela designava por internacionalismo literário. Publicou dois livros importantes: «La République Mondiale des Lettres» [A República Mundial das Letras] (1999) e «La Langue Mondiale: Traduction et Domination» [A Língua Mundial: Tradução e Dominação](2015). Ao abordar fenómenos das relações literárias internacionais, levantava questões de geopolítica das línguas e das literaturas, seguia as pegadas de teorias das relações internacionais, afastando-se das propostas metodológicas da Sociologia construtivista que tomava de empréstimo a Pierre Bourdieu (1930-2002), seu mestre. Operando com os instrumentos metodológicos da Literatura Comparada e da Sociologia da Literatura, Pascale Casanova preferia o paroquialismo de um olhar que reduz o espaço literário mundial aos campos literários nacionais, francês, norte-americano ou inglês, onde se manifestam as rivalidades entre a Europa e os Estados Unidos da América, presumíveis centros de legitimação internacional. Tais rivalidades opõem instituições de actores estatais e não-estatais, tais como universidades, figuras intelectuais, editoras e outros sistemas simbólicos que funcionam como instâncias de consagração.
Ora, nada de errado haveria no olhar paroquial de Pascale Casanova sobre os campos literários ocidentais, se ela não adoptasse perspectivas neopositivistas e neorrealistas, aplicando-as aos sistemas literários. No cruzamento interdisciplinar da Literatura Comparada, da Sociologia da Literatura e da Teoria das Relações Internacionais, os neopositivismos ambicionam uma vocação científica universal e os neorrealismos defendem a potência e a capacidade de sobrevivência como factores que devem estruturar as unidades políticas e seus dispositivos institucionais. O modelo analítico adoptado para estudar a estrutura e o funcionamento do campo literário internacional assume o viés eurocêntrico, quando invoca «princípios de uma história mundial da literatura» e um «espaço literário mundial» que são exclusivamente a emanação da civilização ocidental. Nisso assenta as razões da prosperidade editorial dos seus livros. As relações literárias internacionais africanas, isto é, realizadas por agentes Africanos, não existem na «república mundial das letras», concebida por Pascale Casanova. Por conseguinte, o internacionalismo literário africano dependeria do modo como se desenvolvem as rivalidades e as disputas entre as grandes capitais culturais do Ocidente e respectivos aparelhos, à luz das referidas teorias aplicadas às relações literárias internacionais.
Relações internacionais e teorias não-ocidentais
Apesar das hegemonias ocidentais, ao nível do debate teórico, é hoje unanimemente reconhecido o lugar que a África ocupa no contexto das relações internacionais. Tal como dizia o cientista político norte-americano, Kevin Dunn, o continente africano é o Outro necessário para a construção de um eu ocidental mítico. Mas, no plano filosófico, são escassas as reflexões sobre as relações internacionais. Poder-se-ia dizer o contrário, em virtude de ser um domínio da Filosofia Política. É que nesta matéria as abordagens filosóficas sobre o Estado, tradicionalmente, exploram com privilégios o Direito Internacional Público, a Ética da Guerra Justa, em detrimento das relações internacionais.
Atento aos debates, sobre a necessidade da institucionalização de um novo campo das relações internacionais globais, está Assis Malaquias, um cientista político angolano que é professor da Academia Marítima da Universidade da Califórnia, Estados Unidos da América. No capítulo que assina, publicado em «Africa’s Challenge to International Relations Theory», [África como Desafio para a Teoria das Relações Internacionais] (2001), de que são editores Kevin C. Dunn e Timothy M. Shaw, ele considera que, devido à sua focagem autocentrada, as Teorias das Relações Internacionais ocidentais não abordam adequadamente os Estados africanos e outros actores não-estatais, enquanto unidades de análise. Por isso, Assis Malaquias defende a criação de novos modelos teóricos que permitam compreender as relações internacionais africanas, inscrevendo-se na linha de outros investigadores, tais como Amitav Acharya, indo-canadiano, e Barry Buzan, inglês. Esse pensamento evidencia a necessidade de desenvolver uma reflexão filosófica das relações internacionais, que é convencionalmente um ramo da Filosofia Política.
Por que razão continua a ser dominante a percepção de inexistência de uma Teoria das Relações Internacionais não-ocidental? Esta é a pergunta a que Amitav Acharya procura dar resposta, no livro «Non-Western International Relations Theory. Perspectives on and beyond Asia», [Teoria das Relações Internacionais não-ocidentais. Perspectivas sobre e além da Ásia] (2010), que organizou com Barry Buzan. Ele defende a tese segundo a qual as Teorias das Relações Internacionais não-ocidentais existem, mas são invisibilizadas no discurso ocidental. A este propósito, sustenta ainda que está subjacente uma intencionalidade e preconceitos de superioridade. Uma das manifestações disso reside no facto de não serem tidas em conta as principais fontes não-ocidentais dessas teorias, a saber: 1) ideias dos clássicos Africanos; 2) pensamento de líderes e membros das elites intelectuais; 3) iniciativas de aplicação das teorias ocidentais às realidades dos Estados, numa perspectiva endógena.
Sociologia e relações internacionais africanas
Tal como foi referido, o centro da presente reflexão são alguns daqueles tópicos negligenciados com os quais se pode tematizar a intervenção do Estado e o papel da diplomacia cultural nas relações internacionais. Mas o foco do nosso interesse reside especialmente no que consistem as relações literárias internacionais. Se tivermos em atenção o já aludido cruzamento interdisciplinar da Literatura Comparada, Sociologia da Literatura e da Teoria das Relações Internacionais, verifica-se que o terreno da produção reflexiva no domínio da Sociologia das Relações Internacionais Africanas não é propriamente infértil. Desde a década de 70 do século XX, especialistas Africanos se vêm dedicando à disciplina. Quando em 1996, o jurista francês, Pierre-François Gonidec, professor da Universidade de Paris I, publicou o livro «Relations Internationales Africaines», [Relações Internacionais Africanas], já o cientista político camaronês, Augustin Kontchou Kouomegni, tinha publicado o seu «Système Diplomatique Africain. Bilan et tendances de la première décennie», [Sistema Diplomático Africano. Balanço e Tendências do Primeiro Decénio], (1977). Sobre esta matéria, os livros e artigos vão-se multiplicando. Atestam a possibilidade, quer da Teoria das Relações Internacionais Africanas, quer da Sociologia das Relações Internacionais Africanas. Na primeira década do presente século, o cientista político camaronês, Luc Sindjoun, professor da Universidade de Yaoundé, deu prova dessa vitalidade com a publicação do seu livro «Sociologie des Relations Internationales Africaines»[Sociologia das Relações Internacionais Africanas], (2002).
Mais uma vez sublinho a visão reducionista do internacionalismo literário que caracteriza o pensamento de Pascale Casanova, chamando a atenção para a problemática da transnacionalidade e contestação do monopólio estadual das relações internacionais em África. É disso que Luc Sindjoun trata, ao considerar que a «desterritorialização das relações internacionais africanas» comporta igualmente fluxos culturais constituídos por vários elementos, tais como as línguas, as religiões, as literaturas, as artes e as ideologias. Portanto, no que diz respeito a esses fluxos culturais e, especialmente, às relações literárias internacionais africanas, a Associação Pan-africana de Escritores, fundada em 1989, o seu reconhecimento pela Organização da Unidade Africana, actual União Africana, em 1992, e consagração do dia 7 de Novembro como Dia Internacional dos Escritores Africanos, ilustram bem a especificidade da acção colectiva transnacional dos escritores, enquanto actores não-estatais, no funcionamento dos campos e sistemas literários africanos, se forem comparados com os campos literários ocidentais descritos por Pascale Casanova.
* Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 28 de Agosto, aqui republicado com a autorização do autor.
** Ensaísta e professor universitário