Por: João Serra*
Caso fosse imortal como as suas ideias, Adam Smith, nascido em 1723, na Escócia, teria festejado, no dia 5 de junho deste ano, o seu 300º aniversário.
O contributo desse autor britânico para o desenvolvimento da teoria económica é considerado, pelos seus seguidores, como fundamental. Para estes, Adam Smith é o “pai” da Economia Moderna. O seu livro “The Wealth of the Nations” (A Riqueza das Nações), publicado em 1776, é tido como um referencial e contém inúmeras considerações que estão na base da evolução do pensamento económico até à atualidade, nomeadamente no concernente à explicação da razão da riqueza e da pobreza das nações.
Smith é também considerado o mais importante teórico do liberalismo económico, tendo definido as respetivas bases: a livre iniciativa e a busca da riqueza conduzia ao trabalho produtivo, à poupança, à acumulação de capital e ao investimento. Para ele, as regras do mercado, assentes na lei da oferta e da procura, estabeleceriam de uma forma natural os salários e os preços a praticar. Ao Estado, basicamente, competiria facilitar a produção e a comercialização, garantir a ordem pública, a justiça e o direito à propriedade.
O liberalismo económico, nomeadamente a variante “monetarista”, mais comumente associada ao trabalho de Milton Friedman, também um ilustre economista da chamada “Escola de Chicago” e laureado com o Prémio Nobel de Economia, teve a sua expressão máxima, em termos de influenciação da política macroeconómica, nos anos 80 do século XX. Entretanto, a pandemia de Covid-19 e, mais recentemente, a guerra na Ucrânia vieram acelerar mudanças neste quadro teórico da economia que, diga-se de passagem, na última década, já estava em si abalado e enfraquecido pela crise financeira de 2007/2008.
Outrossim, ainda que, na maioria das economias de mercado, se continue a defender fortemente o liberalismo económico como condição para o sucesso económico, a sociedade vem, cada vez mais, mostrando a necessidade de criação de certos limites a algum amoralismo da vida económica que ainda persiste.
A “mão invisível” de Adam Smith
Um dos grandes contributos de Adam Smith foi a explicação dada em como, numa economia de mercado, o interesse próprio racional possibilita a consecução do máximo bem-estar económico de todos os agentes. Esse fenómeno acontece pela ação de um mecanismo que Smith denominou de “mão invisível” e que corresponde a um conceito fundamental no domínio da economia de mercado.
A existência de uma mão benévola, a tal “mão invisível” preconizada por Smith, resulta do facto de os agentes económicos, numa economia competitiva, terem de produzir algo com valor de forma a poderem auferir um rendimento. Esse valor corresponde àquele que é percecionado pelos outros indivíduos que possam vir a adquirir o bem ou serviço em causa.
Nesse âmbito, Smith prevê a ocorrência de ganhos para as duas partes envolvidas numa transação. Assim, quando a realização da atividade de cada indivíduo é feita no sentido de criação do máximo valor, mesmo tendo em conta que o interesse a ela subjacente é pessoal, vai proporcionar a maximização do bem-estar dos restantes indivíduos e, em última instância, da sociedade em geral. Aliás, apesar de prosseguir o seu interesse individual e não tendo sequer em vista o interesse da comunidade, um indivíduo que aja, como atrás referido, acaba por propiciar, frequentemente, à sociedade um benefício superior ao que propiciaria se voluntariamente o tentasse conceder.
Convém, no entanto, realçar que a ocorrência do mecanismo da “mão invisível” implica a existência de um conjunto alargado de pressupostos genericamente associados a estruturas de mercado de concorrência perfeita. Ou seja, pressupõe a inexistência de quaisquer falhas de mercado. Isto é, por um lado, não podem existir estruturas de mercado monopolistas em que as condições impostas pelo monopolista no mercado não são as melhores para os consumidores e implicam um desperdício de benefícios em prejuízo da sociedade. E, por outro lado, não deve haver fenómenos de externalidades, designadamente as externalidades negativas resultantes da ocorrência de efeitos nefastos sobre a economia sem que haja mecanismos de mercado associados. Nestes casos, verificam-se restrições ao mecanismo da “mão invisível”, reparo esse que, no essencial, não belisca a importância teórica e prática deste instrumento na teoria económica.
Adam Smith e a moral humana na economia
Tal qual acontece com todas as correntes de pensamento económico, a de Adam Smith também não é consensual. De igual modo, a interpretação que se faz da “mão invisível” e do “interesse próprio” não é uniforme, dependendo, sobretudo, da ideologia de quem a faz.
Por exemplo, é comum ouvirmos que Smith advogava a abolição do Estado, o individualismo radical e as virtudes de um capitalismo selvagem, catalogado de “salve-se quem puder”.
Como já referido, da obra de Smith a “Riqueza das Nações” sobressai a “mão invisível”. À “mão invisível” associa-se o “interesse próprio”, que, supostamente, está ligado aos modelos económicos que maximizam a utilidade dos consumidores ou os lucros das empresas.
Para os críticos de Smith, o “interesse próprio” é a prova do egoísmo exacerbado pelo dinheiro que carateriza as economias de mercado, em especial as anglo-saxónicas.
Por outro, alegadamente baseado na ideia de Adam Smith, temos vivido, nos dois últimos séculos, debaixo de um modelo de liberalismo onde, não raras vezes, a moralidade do conceito sobre o indivíduo ainda permite que a dignidade da pessoa humana não seja cuidada. Isso faz com que se fuja do pagamento de salários justos, bem assim, dos custos sociais do trabalho, o que constitui uma imoralidade, segundo esses críticos.
Todavia, a realidade parece ser diferente. Adam Smith era um notável iluminista e professor de filosofia moral, sendo o autor do livro, intitulado “Teoria dos Sentimentos Morais”, publicado em 1759. Por isso, no seu pensamento a moral era indispensável, por ser algo que fazia parte da sociedade. O que ele pretendia, era reduzir o peso que a moral tinha nos negócios e na economia, libertando o crescimento económico dos limites que lhe eram impostos pelo comportamento da sociedade do século XVIII.
É inquestionável a importância que Smith atribui ao interesse próprio dos indivíduos no sucesso económico das nações. Contudo, não se pode extrair daí a ideia de que o seu pensamento estivesse com os mais afortunados em prejuízo dos mais pobres. Pelo contrário, como Smith expôs, quando comparou a riqueza das nações, é a “mão invisível” que beneficia as comunidades através da descentralização, do “interesse próprio” e de regras de comportamento assentes em valores morais. Isso dinamiza as trocas e o comércio internacional por via da crescente especialização. E essa especialização, originada pela divisão do trabalho e pelos direitos de propriedade bem estabelecidos, expande o mercado e aumenta o desenvolvimento em benefício de todos, benefício esse que seria também conquistado à custa dos privilégios dos aristocratas e dos monopolistas da época.
De um modo geral, Smith defendeu nos seus livros a intervenção do Estado em várias outras áreas para além das já referidas, como por exemplo, nas obras públicas e na instrução do povo. Outrossim, teceu considerações sobre a necessidade de melhorar as condições de vida dos grupos sociais mais frágeis e a importância de uma distribuição justa do rendimento.
Assim, conclui-se que para Smith “ter um interesse próprio” – algo que todos os seres humanos têm em maior ou menor medida – é diferente de “atuar no seu interesse próprio”.
Para mim, a maior homenagem que se pode fazer à obra de Adam Smith é a consideração da moral humana na economia, ou seja, ter sempre presente que a pessoa está acima da economia, priorizando a criação de condições que lhe permitam trabalhar e viver com dignidade.
Praia, 29 de outubro de 2023
*Doutor em Economia