No basquetebol, quando jovem, Emanuel Trovoada competiu em Angola e em São Tomé e Príncipe, terra do seu pai. Podia ter continuado em Portugal, onde jogou no Benfica. Mas neste país, viria a descobrir o talento para treinar e preparar uma equipa competitiva e ganhadora. A grande oportunidade internacional chegou à frente da selecção nacional de Cabo Verde. Emanuel ‘Mané’ Trovoada conquistou um lugar na história do basquetebol de Angola e de Cabo Verde. E com esta última selecção, já apurada para o próximo campeonato do mundo, o treinador angolano acredita que poderá mesmo vir a ser campeão africano.
Como é que descobriste o basquetebol?
Aconteceu muito cedo na minha vida. Nasci em Benguela, onde o meu pai era um dos dirigentes desportivos do Sporting Clube de Benguela. Depois de começar como fisioterapeuta, entrou para a direcção do clube. O meu irmão mais velho, o Mick, também já jogava basquetebol e era a minha referência, juntamente com o Chinho, um dos melhores jogadores de Angola, o Nelson. Na época havia o hóquei em patins, mas o basquete foi sempre o meu objectivo, e foi sempre uma paixão, desde o início. As referências do basquete angolano vinham daquela região, da Huíla, de Benguela.
Que idade tinhas?
Comecei a gostar aos sete anos, mas só aos 14, 15 anos é que comecei a jogar a sério. Mudámo-nos para Luanda, o meu irmão Mick foi jogar para o Sporting de Luanda e nós estávamos no Prenda, uma zona muito movimentada, vivíamos no bairro militar, onde havia tabelas nas ruas, etc. O meu pai era técnico aduaneiro, na alfândega, mas como estavam a recrutar jovens de 16, 17 anos para o serviço militar, ele decidiu que iriamos continuar os estudos em São Tomé e escapar assim ao serviço militar. Eu e o meu irmão ficámos dois anos em São Tomé, e aqui descobri o basquete chinês, através da comunidade chinesa de cooperantes, na ilha. Entrei para um clube local, o Reboque, e era bom lançador.
E como aconteceu ires para Lisboa?
Foi quando tinha 16 anos…
Quando te conheci na Escola Afonso Domingues e pegaste numa bola de basquete com os dedos de uma mão…
Exactamente… (risos) O meu pai tinha problemas cardíacos e uma Junta Médica disse-lhe que devia tratar-se em Portugal e fomos. Nessa a escola havia torneios de basquete, torneios inter-liceus. Conheci os treinadores Carlos Lisboa e Pedro Bandeira. O meu objectivo era jogar no Sporting de Portugal, mas fui para o CDUL, na Cidade Universitária, onde fiquei um ano, e aí constituímos uma equipa que disputou o campeonato distrital de juniores. No final da época, cada um tentou o seu lado. Eu fui tentar o Sporting, queria na mesma jogar na equipa principal, mas não me deram essa oportunidade. Então, tentei o Benfica e fiquei logo, na equipa de juniores. Mas fui um dos atletas prejudicados pelo tempo de espera do meu pedido de nacionalidade portuguesa. E, entretanto, vem o José Carlos Guimarães e o Jean Jacques de Angola, e na altura só podiam jogar dois estrangeiros na equipa. E estes eram os meus ídolos com quem aprendi muito, e não davam hipóteses.
De lançador a treinador
Qual foi a opção?
Fiquei então uns anos à espera e depois fui para a Figueira da Foz, onde o professor Araújo dava um curso de nível 1 e eu inscrevi-me, ainda jogando na equipa sénior. Certo dia, alguém pergunta se não há ninguém disponível para treinar a equipa do escalão de formação e eu ofereci-me e então aí a paixão mudou para a parte técnica. Comecei a ver as coisas de um outro ângulo. Os colegas diziam-me que tinha jeito para treinar.
Ainda à espera da nacionalidade?
Foram três anos à espera e sentia que estava a perder muito como atleta, apesar do treino intenso diário. Depois fui ganhando peso, por falta de competição, então pensei posso não ser um bom jogador, mas vou tentar ser um bom treinador, ser alguma coisa como treinador.
E o que disse a família?
Os meus pais esperavam que eu fosse estudar medicina. Hoje, depois deste percurso como treinador, lembro-me do meu pai, antes de morrer, como ele acompanhava as competições comigo à frente da equipa de Cabo Verde e nas outras. Nunca esteve presente, mas acompanhava com orgulho o meu trabalho.
Começo a entrar junto das equipas através do Hélio Africano, do Gil Évora, do Huíla, em torneios em casa do embaixador e é o início desta grande amizade com Cabo Verde. Ganhávamos os jogos todos.
Continuaste na Figueira da Foz?
Não, depois volto para Lisboa e entro no desporto universitário, que acabei revolucionando como treinador, ganhando ligas internacionais. Ganhámos, pela primeira vez, o primeiro título de campeão de Lisboa, quando o Norte, Coimbra, tinham as melhores equipas. Revolucionei isso com a equipa de Medicina feminina, até que chego a Santarém, como adjunto do professor José Monteiro. Em três anos limpámos tudo o que havia, perdemos apenas um título, ganhámos dois campeonatos nacionais, três supertaças, três taças de Portugal, uma coisa fora do normal.
Havia mais treinadores negros, na época?
Não, eu era o único. E eu chego depois à selecção portuguesa como adjunto do professor José Leite, já no início dos anos 2000 e vamos aos jogos olímpicos universitários, agora já num outro patamar. Havia jogadores que eu conhecia das universidades americanas. Então, ao regressar pensei em todo o trabalho que já estava a desenvolver em termos universitários. Algumas pessoas na altura diziam que eu é que deveria ser o treinador principal, que era o campeão. Mas, senti que ainda havia aquele racismo. Eles sabiam da dimensão que eu tinha, onde tinha chegado, mas as oportunidades eram sempre escassas. No final do campeonato universitário, um jornalista que conhecia bem o meu trabalho, escreveu um comentário muito curto no jornal. Aí eu pensei, por mais que lute aqui, aqui não é o meu espaço.
A descoberta de Cabo Verde
Como é que se dá o teu encontro com Cabo Verde?
Foi através do Gugas Veiga. Há uma selecção de Cabo Verde que vai estagiar em Lisboa e eu já estava dentro do desporto universitário, havia o Rodrigo Mascarenhas, o Mário Correia, o actual ministro Elísio, o Fred. Havia vários jogadores e jogadoras ainda estudantes. Começo a entrar junto das equipas através do Hélio Africano, do Gil Évora, do Huíla, em torneios em casa do embaixador e é o início desta grande amizade com Cabo Verde. Ganhávamos os jogos todos.
E com o Claude Constantino?
O senhor Claude foi a Lisboa estagiar com a selecção e um dia fui assistir ao treino e disse-lhe que tinha dois jovens que tinham lugar na equipa, que eram o Amilton e o Marito. Este entrou logo na selecção. O Rodrigo Mascarenhas foi dos primeiros que eu ajudei a ir para Portugal, primeiro para a equipa de Portugal Telecom, depois para o Porto. A minha ligação com Cabo Verde vai ficando cada vez mais forte. E em 1999, a selecção precisava de alguém para ajudar o senhor Claude, a equipa técnica era pequena.
Sentiste que era a tua oportunidade?
Exacto. Nessa altura já tinha grande dimensão como treinador em Portugal, mas não tinha oportunidades. Pensava por mais que fique aqui nunca alguém se vai lembrar de mim, portanto sabia que esta a era a minha oportunidade. O Gugas disse-me, “olha o senhor Claude está a precisar de um adjunto, não queres vir?” Eu disse, é já! A assim fomos com o senhor Claude para o AfroBasket de 1999, em Angola. Fomos para Cabinda, Luanda, para fazer seis jogos e no terceiro o treinador principal senhor Claude teve um colapso cardíaco, e alguém tinha que assumir. Eu assumo como treinador principal, o Zé Eduardo como adjunto e em três jogos ganhámos todos, ganhámos a Marrocos, a Moçambique, etc. E no regresso, sob proposta do senhor Claude à federação cabo-verdiana, em 2003 venho viver para cá.
Como foi a adaptação?
Não foi fácil, mas tinha uma boa protecção do Gugas e do senhor Claude. A sorte foram os amigos que aqui tinha, o Hélio Africano Varela, o Valter de Sá estava cá, o Gil Évora, nos meus tempos livres, estava na Nosi com o Hélio, num cantinho na informática. Vivia ali perto, no Platô, antes de me mudar para o Palmarejo. Aí fui entrando e mostrando o meu trabalho. O senhor Claude foi importante porque ele tinha muito para me ensinar, eu tinha um conhecimento muito curto do basquete africano. Ele foi o grande mestre, dizia, começa por aqui , vai às escolas, faz isto e isto e em três anos e meio conseguimos ir ao AfroBasket e aquela medalha que trouxemos não podemos dizer que é só nossa, mas de um trabalho de anos anteriores do senhor Claude, das outras federações, dos outros atletas e aí começa de facto a mudar um pouco a história. Tínhamos ganho a Zona 2 e tínhamos bons atletas e tínhamos de começar a prepará-los para os colocar lá fora.
Joaquim Arena
Confira a entrevista na integra na edição 868 de 18 de Abril de 2024 do Jornal A Nação