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Sociedade

Columbofilia em Cabo Verde: As asas de uma paixão

São ainda poucos os columbófilos em Cabo Verde, uma modalidade desportiva que se confunde com a criação dos chamados pombos de fantasia. Criar e manter pombos-correio significa uma despesa significativa, no final de cada mês. Sem falar no grande número de perdas que cada largada pode ter. Depois de um período de treinos, os sete ‘magníficos’ concorrentes de Santiago preparam os seus voadores para competir nas provas da temporada columbófila cabo-verdiana, que arranca já na próxima semana.

Símbolo da paz para uns, praga para outros, sobretudo nas grandes cidades ocidentais, o pombo acompanhou o homem desde tempos imemoriais. Nenhum outro animal teve lugar tão destacado na Bíblia, ao regressar à Arca com o ramo de oliveira no bico, para alívio de Noé e família. Na Grécia antiga, difundiam notícias de vitórias nos Jogos Olímpicos e de batalhas travadas com invasores. 

Da Idade Média às guerras industriais do século XX, foram vitais na troca de informações, escapando de atiradores especializados em abatê-los. E o próprio pugilista Mike Tyson, confessou que o motivo do seu primeiro soco foi por lhe matarem um pombo na sua frente. 

Airton Tavares com troféus

No seu terraço do Monte Vermelho, Airton Tavares, o presidente da Associação Columbófila de Santiago, diz que já ouviu histórias destas, enquanto pega nos borrachos para mostrar a diferença entre estes e os pombos atletas, os reprodutores, que vieram de Portugal. São pombos com ‘pedigree’, explica. 

No pombal do terraço de sua casa, na Cidadela, que divide com José Augusto Fernandes, outro columbófilo, diz que tem apenas um pombo macho ‘crioulo’, oferecido por Buna Morais, outro columbófilo célebre de São Vicente. Ao todo são à volta de 100 pombos dos dois sócios, que se alvoroçam na pequena entrada do pombal. Pequenos bandos de borrachos evoluem pelo ar, a poucos metros de altura. Como se antecipassem o momento da comida que aí vem, pelas mãos do criador.  

Pomba na infância

Airton recorda a infância entre o Morro e o Campo da Preguiça, em São Nicolau, onde os avós faziam criação de pombos. Foi quando descobriu e ficou fascinado com a capacidade de orientação das aves, que voltavam sempre para os seus ninhos, apesar das distâncias. 

O maior divertimento com os primos e amigos, eram os pombos e jogar à bola. Mas tudo começou a sério, como recorda, depois de uma estadia em Portugal, em 2015, quando teve contacto directo com columbófilos da Margem Sul de Lisboa. Hoje é um dos maiores columbófilos do país. 

Djuntamon Afrikanu

Quem também recorda momentos semelhantes é Djuntamon Afrikanu, que é como Toni Pires, outro histórico da columbofilia de Cabo Verde, se apresenta. Recorda como os pombos “eram os nossos tamagochis, telemóveis, quando crianças, em Santo Antão”. O pai, que era secretário da Câmara, e os tios, já criavam pombos na Ponta do Sol. 

E junto com o irmão, Octávio, ficavam a ver as largadas e à espera dos pombos. “O meu pai tinha um livro sobre pombos em língua espanhola, Las Palomas Mensajeras, mas não consegui compreender muito.” Mas recorda Buna e o senhor Julinho, que criavam ‘pombas de terra’. 

A competição começou mais a sério com o irmão Octávio, hoje um columbófilo pouco activo, com ambos já a residir na Praia, onde Afrikanu haveria de criar a primeira associação columbófila, em 2007 (AKP – Asociason Kolunbófilu di Praia), e a fazer concursos. Hoje, tem 19 pombos no seu terraço, na Achada de São Filipe.

Por seu lado, Marcelino de Pina, natural do Fogo, mais conhecido por ‘Dono’, barbeiro no Platô, conta que mal saía da escola ia ver os pombos com um irmão e um primo. Hoje tem 50 pombos no seu pombal de Eugénio Lima. Mas este ano não irá participar nas competições, não está preparado, nem tem voadores suficientes, diz. Quem se senta na sua cadeira, tem garantido histórias de pombos e largadas para ouvir. 

Fala dos animais como se de entes queridos se tratasse. E é capaz de se emocionar quando evoca um casal ou outro que lhe morreu, assim de repente, num canto do pombal, sem qualquer razão aparente. Ou de um voador que, depois de uma travessia de mar, desde o Sal, lhe morreu, dias depois.

Custos e despesas

Airton explica como, fisicamente, os pombos reprodutores são mais robustos, “peito forte e preparado para competir. Por isso, tem o seu custo, preços que variam, como por exemplo de 50 a 10 mil euros, e há para todos os bolsos”, diz. Mas há o preço de ‘terra’, para ficarmos só pela realidade das ilhas. E aqui, um borracho pode ficar por 2, 4, 5 mil escudos, já um adulto voa para os 10, 12, 15 mil escudos, dependendo do ‘pedigree’. 

“E é preciso também levar em conta se a sua descendência já está adaptada à realidade das ilhas, a competição em Cabo Verde é diferente, é sobre o mar, de onde são largados para rumarem a terra, ou seja, um bom pombo português pode chegar às ilhas e não ter sucesso, é preciso trabalho de adaptação para contexto de competição.”

Afrikanu ri-se quando a conversa é sobre preços. “O pombo mais caro que comprei, junto com o meu irmão Octávio, foi um casal por 400 euros cada, em 2009, compra feita online e fomos depois buscá-los às Canárias. A ideia era podermos melhorar a nossa linha de pombos, aqui.” 

Fala em falta de experiência, na época, e adianta que há pombos que atingem valores superiores mesmo aos de alguns cavalos de corrida, “…Um milhão e 250 mil euros, recorde mundial…” diz, depois de pesquisar na internet. “Em Cabo Verde há a cultura do pombo de fantasia, que não são pombos de concurso, é apenas para ver, podem custar 3, 4 , 5 contos”.

As despesas com os pombais de Airton são divididas entre ele e o outro associado, com cada saco de 25 kg de ração a custar 2500 escudos, o que dá para 25 pombos. Mensalmente, o pombal gasta quatro sacos de ração. A esta despesa de alimentação, há que juntar ainda os medicamentos, antibióticos e vitaminas para reforço da alimentação, que os atletas voadores também não dispensam, se querem seguir ganhando provas.

O sucesso destes atletas, como Airton prefere chamá-los, também depende de uma boa alimentação, como em todas as modalidades desportivas. E este é o factor que encarece mais esta actividade, quando levada mesmo a sério, já que a ração vem de fora. “É uma mistura de vários grãos, cevada, milho, para se poder uma alimentação balanceada e saúde forte, porque sem uma boa alimentação dificilmente um reprodutor poderá dar um bom voador.” Para produzir um borracho, tem de estar em forma, fisicamente. 

Treinos e provas

Sócios da AKP, associação de Djuntamon Afrikanu

A associação de Airton é jovem, foi fundada em 2020, com as competições a terem início logo em 2021.  Não se fala muito dos motivos da cisão da primeira associação de Afrikanu e Octávio, de que resultou esta nova, do presidente Ailton. Existe cooperação entre todos, numa modalidade ainda a dar os primeiros passos em Cabo Verde.

Em Santiago, são seis equipas, duas da Assomada e quatro da Praia. As provas deste ano de 2024 começam já na próxima semana, depois de um tempo de preparação, do treino indispensável, no último mês, tal como qualquer atleta de outra modalidade. E é aqui que a ‘endurence’ ou resistência do pombo correio é tratada e posto à prova. Os treinos vão aumentando as distâncias de 50 quilómetros, que é também a distância mínima das provas. 

Afrikanu conta como leva os seus pombos para treinos, na Assomada, Cruz de Pico. “Depois de um descanso de dez minutos, solto-os e fico observando-os. Os borrachos de três meses ficam a voar sobre o pombal, depois soltamo-los, os mais crescidos, à distância de 5 quilómetros, depois de São Domingos, Órgãos, Assomada, que já é 20 quilómetros, depois passamos para o mar, para se habituarem com o mar, do farol de Moia-Moia.”

As provas oficiais contam com uma ajuda importante de gente alheia à modalidade. E o seu contributo é vital, como explica Airton Tavares. “Reunimos os pombos todos no meu terraço e são encestados, e cada uma das equipas pode enviar 24 atletas, seleccionados entre os melhores. Estes são registados com a anilha electrónica e um chip, os pombos são depois levados nos cestos e entregues no barco que os irá soltar no ponto de largada combinado, com as coordenadas fornecidas por nós. E assim, os pombos voam, regressam para terra, para o seu pombal, e o momento da chegada é controlado também, oficialmente, através de um relógio”.

O campeonato consiste em duas provas de 50 quilómetros, duas de 60, duas de 75, duas de 90 e duas de 100 quilómetros. E todas contam com o patrocínio da companhia de navegação CVInterilhas, e do diligente marinheiro, que se encarrega da largada dos pombos em alto mar. Outro patrocinador é uma empresa de telecomunicações nacional, na forma de recargas para os membros. 

Mas os troféus para os vencedores, taças e medalhas, são adquiridos pela própria associação, através das quotas dos seus membros. Para além destas provas, diz Airton, ainda existem outras noutras secções ou idades. 

“Organizamos, também, provas de ‘Yearlings’, pombos jovens de menos de um ano, Campeonato do Pombo AS e o que chamamos o Campeonato do Columbófilo, todos feitos em simultâneo com as provas maiores. E ainda fazemos concursos de resistência, normalmente do Sal e a Boa Vista, que é uma prova à parte do campeonato. Para saber, em 2021, o campeonato foi até 150 quilómetros e fizemos um concurso de resistência, a partir do Sal, de 200 quilómetros.”

Perda de atletas

Airton pega no balde e mal penetra no pombal o alvoroço aumenta. Por entre assobios e incentivo aos animais, com palavras meigas, conta como a maior parte dos seus pombos veio de Portugal, em número de 15, como oferta de columbófilos amigos, quando voltou em 2016 e antes de fundar a associação. Em 2019, começou a ganhar concursos. 

No entanto, há um outro lado desta relação entre columbófilo e atletas voadores de que se fala com algum cuidado e distância. A taxa de perdas de pombos-correio é muito alta, a cada largada. Provavelmente, será esta a maior preocupação de um criador, mesmo se ele procure não se deixar levar demasiado pelo afecto. 

E aqui, Afrikanu recorda como as largadas do Sal sempre tiveram muitas perdas. “Do Maio, quase todos chegam, assim como do Tarrafal e há pombos das Canárias que vêm ter a Cabo Verde, e de daqui que já foram parar a Dacar…” 

O problema, explica, poderá estar nas grandes fossas marinhas, que deverão interferir com a navegação através dos campos magnéticos da Terra, dos pombos. “Certa vez, fiz uma largada do Maio para a Praia e perdi o meu bando todo, foi terrível, nem queria acreditar. Ainda lá fui e andei a ver se encontrava algum, mas sem resultado.”

Todos falam da fossa de mais de mil metros de profundidade, na saída do Sal, e também perto da Boa Vista, que interfere com o campo magnético que guia os pombos. Em resultado dessa atrapalhação, uns pombos largados para irem para o Fogo ficam mesmo na Boa Vista, outros no Maio. “E outros, talvez por falta de coragem, não se lançam sobre o mar. De um número de uns 100 lançados em Sal-Rei, talvez uns 10 cheguem à Praia”, afirma Afrikanu.

Das dezenas de pombos lançados no Sal, com destino à Praia, muitos não chegam ao destino. “Certa vez, perdi 50% do meu plantel”, recorda. Os desvios na rota dos pombos, explica o columbófilo, podem ter que ver com a profundidade do oceano, que altera o seu sentido de orientação, já que estes se orientam pelo campo magnético da Terra. 

“Alguns nem chegam a deixar o Sal, outros podem ficar-se pela Boa Vista, outros podem pousar nalgum barco e apanhar uma boleia para outra direcção, mas o fundo do mar pode mudar-lhes o sentido de orientação.”

Por isso, cada columbófilo prepara a sua equipa ciente dos riscos de perdas, que muito provavelmente irá acontecer. “É um risco com que contamos, sobretudo os nossos pombos campeões, mas não nos fixamos na perda, mas sim em trazer o pombo de volta. Se formos viver com receio disso, então não vale a pena competir. Treinamo-los conscientes de que os podemos perder, fico triste, claro, mas é um risco inerente à competição e à modalidade.”

Marcelino ‘Dono’ de Pina

Equipas prontas

Já no final dos treinos, Airton revela que as equipas estão quase prontas para as primeiras provas. “Optámos, por uma questão estética, nomear cada columbófilo pelo nome de equipa, ao invés do nome individual. Assim, temos a minha equipa, Lobo de Ferro, a Asas da Cidadela (José Augusto Fernandes), Burcan (Gerson Monteiro), Vulcão do Fogo (Marcelino ‘Dono’ de Pina), MVP (Odair Teixeira) e Raiz di Polon (Albertino Moreno).”

Djuntamon Afrikanu, ou Toni Pires, tem ideias de retomar à competição, mesmo se a sua associação, com apenas três columbófilos, se mantém praticamente inactiva. Ficou sozinho, como diz, mas quer retomar as largadas como antes. “Posso cooperar com a associação de Airton, mas não quero fazer parte dela.” 

Questionado sobre o que faz o pombo regressar ao pombal, aponta uma razão principal: “A fêmea, usamos o sexo oposto para estimulá-lo; alguns autores dizem que é o ninho, mantém-se o macho e a fêmea separados e dá-se a fêmea ao macho só quando este voltar da largada. Quando o meter na caixa ele já sabe que vai encontrar a sua fêmea à chegada. Não é por ser fiel, pelo contrário, mas por algum tempo formam o tal casal…”.

A ligação dos cabo-verdianos com pombas virá desde os primeiros povoadores. Por isso, pombos (pomba) também fazem parte de algumas letras de músicas do cancioneiro de Cabo Verde: funaná, mornas e coladeiras, ‘Assim cuma Pomba na sê ninho’, ‘Oi Pomba, oi pomba’, ‘Pomba na Varanda’, etc.

Depois de alimentar os pombos, Airton desce para mostrar, finalmente, a sua sala de troféus, onde faltam as medalhas por ‘falta de espaço’. Os mais preciosos, destaca, são o da vitória no primeiro campeonato regional de Santiago, e o do seu voador de grande fôlego que fez 2 horas e 51 minutos entre Sal e Praia. Mais precisamente, nota Airton, “1211 metros por minuto.”

Joaquim Arena

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 867, de 11 de Abril de 2024

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