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Colunistas

O estado constitucional, a separação de poderes e o jurisconsulto Olavo

Por: Germano Almeida

 Não é a primeira vez que o Olavo me chama para troca de palavras. Tenho recusado. Hoje vou abrir uma exceção, mas será só desta vez, não haverá bis, eu e ele não nos ocupamos dos mesmos valores. É que nós não somos colegas. Olavo diz-se jurisconsulto, seja o que for que esta designação para ele signifique. Eu sou um simples licenciado em direito. Ele quando escreve cita os grandes do direito com quem parece conviver tu cá tu lá, trocar impressões, estabelecer princípios, inventar costumes que depois transforma em dogmas constitucionais. Eu só invoco o bom senso. É o único apetrecho que tenho e que ele não tem: BOM SENSO! De modo que toda e qualquer arenga entre nós fica impossível: enquanto eu deliro, ele dogmatiza! 

E nessa sua dogmatização, o jurisconsulto arreda para longe o que devia ser seu apanágio, a saber, o bom senso; prefere a hermenêutica. Duas palavras que ele já mostrou que conhece e gosta: hermenêutica e delírio! E é em nome dessa fantasia, a que ele chama de “hermenêutica”, que se permite justificar, sem pestanejar, a condenação de um homem a sete anos de prisão. Não pelos atos cometidos e que poderiam configurar-se como crimes, crime contra o estado de direito democrático, mas porque as diferentes configurações da deusa hermenêutica assim o exigem.

 Porém, como a sua última peleja visa a decisão que veio do Tribunal Constitucional, falaremos dela. Mas antes permito-me dizer-lhe uma coisa: a sua cega fé no sentido de que tudo que sai dos juízes que estão nos tribunais é justiça, é comovedora, porém, completamente tonta. Eles enganam-se muitas e muitas vezes, e nem sempre de forma inocente. Como qualquer de nós, eles também têm vícios, têm interesses pessoais, e sobretudo são gente como nós. E em todos os tempos têm tido esta fraqueza: não só precisam como também gostam de agradar aos políticos! Mas para ficar a fazer uma ideia mais precisa da coisa, sugiro-lhe ler o jornal “Público” do dia 21.03 passado. É sobre juízes constitucionais portugueses, porém os nossos são abóboras da mesma cordeira, não é impunemente que copiamos Portugal em tudo. 

  Mas sobretudo nesse caso do deputado Amadeu Oliveira, a má fé tem imperado: desde a sua entrega pelo parlamento nacional aos tribunais que o condenaram sem lei nem piedade, gesto que o jurisconsulto defendeu sempre com o uso da sua “hermenêutica”, até agora que o TC foi capaz de defender como costume instalado e a gerar e a parir uma forma de norma não escrita com força para revogar a norma constitucional escrita e escarrapachada. Para agradar a quem? Ao poder Legislativo, que saiu pessimamente nesta fotografia e não melhorou com o photoschop do TC, pelo contrário, ficaram ambos nas ruas da amargura. E digo-lhe que estou à vontade para dizer isso, porque sequer sou advogado do Amadeu Oliveira. Melhor, não escrevo a soldo de ninguém. Escrevo porque sou um homem livre que pensa pela sua própria cabeça, e o desprezo pela justiça que se vem verificando em todo este processo, forçosamente deveria dizer alguma coisa, não só a mim mas também ao espírito de alguém que se diz “jurisconsulto”. A menos que para si jurisconsulto seja apenas um nome bonito!

 Mas nesse acórdão não há apenas desprezo pela Justiça. Há clara manipulação! Toda a gente sabe como o direito é manipulável. Porém, nesse caso Amadeu Oliveira não tem havido limites, todos os varapaus judiciais se uniram para o vergastar de forma inclemente.

 Mas não deixei de reparar que o insigne jurisconsulto evita defender esse acórdão do TC que será de má memória, igualzinho àquele outro que nos deu dois primeiro-ministro. Acusa-me de delírio, cita o anterior presidente da República a dizer que aquilo que o TC decidir está decidido, e tchau! Ora, é o mesmo PR que na sua magistratura moral apregoava que nada pode acontecer fora da Constituição! Porém, isso é apenas tautológico, o camarada Mao Tse Tung já tinha ensinado há muito tempo uma outra tautologia, a saber, o poder está na ponta da espingarda. Portanto o que diz não é novidade nenhuma. Outros figurões da História conseguiram pôr os tribunais a decidir o que queriam. Portanto, em querendo, sabemos que o TC pode até chamar as polícias, o exército, a marinha e obrigar à aceitação geral do que decide.

 Questão muito diferente é dizer que aquele acórdão é certo, é correto, que não tem porém, em suma, que convence. Ora, que esse acórdão seja capaz de convencer seja quem for, isso o jurisconsulto não teve coragem de dizer. Pede apenas obediência cega em abstrato. Na verdade, numa linguagem frouxa, como se estivesse apenas a transmitir um recado com o qual está em desacordo. Mas não é assim, ilustre jurisconsulto, antes de Amílcar Cabral já tínhamos aprendido em casa a pensar pelas nossas próprias cabeças. Cabral apenas reforçou.

 E pensar pelas nossas próprias cabeças obriga, no mínimo, a não aceitar que seja uma boa decisão um acórdão que teve a audácia de transformar em lei, desse modo derrogando a Constituição da República (a que ironicamente chama de Magna Carta da República), uma aberração a que deram o nome de “costume”.  

  Ofende que cidadãos a que a sociedade elevou à dignidade de juízes constitucionais procedam como se estivessem a decidir sobre assuntos do seu quintal, hoje varre-se, amanhã suja-se. Neste caso, a confiança social foi traída por quem tinha particular dever de a defender e preservar. Parafraseando Baltasar, pode-se dizer que os messias desiludiram. Essa, por exemplo, de a CP aprovar inúmeros atos relativos aos mandatos dos deputados para não impactar negativamente a funcionalidade do Plenário, não lembraria ao diabo, mas passa a ser de antologia e é simplesmente o regresso às nossas saudosas caboverduras de má memória. 

  Transformar resoluções relativas ao levantamento de imunidades e suspensão temporária de mandatos, ou resoluções para deputados serem ouvidos na condição de testemunhas ou arguidos, numa prática de a CP funcionar no intervalo das reuniões plenárias para exercer os poderes em relação ao mandato dos deputados, é um juízo temerário contra o qual os deputados deveriam agir, sob pena de ficarem reféns do poder judicial.

O acórdão confunde o costume (em crioulo) de violar a Constituição com um costume constitucional. Mas tendo em conta que a atual Constituição, por vicissitudes diversas da sua aprovação, só passou a ter validade nacional a partir de 2010, temos que esse ancestral costume constitucional (“prática reiterada e a convicção da sua obrigatoriedade”) não tem mais de dez aos de existência, tempo manifestamente insuficiente para lhe atribuir a perenidade de um costume a sério mas que em tempo algum poderia “ter efeito derrogatório contra o sentido literal claro da norma do nº1 do artº 148º da Constituição”.

PS: As Farpas são uma boa leitura, mas sugiro-lhe não perder O Conde d’Abranhos. Vai descobrir que são parentes. 

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