Considerado a voz de ouro de África, o maliano Salif Keita é, sem dúvida, o nome mais aguardado do cartaz do Kriol Jazz Festival 2024. Palco do festival, há 13 anos, o Platô promete ainda uma grande afluência de fãs e curiosos da música do norte americano Steve Coleman e do brasileiro Hermeto Pascoal, duas grandes lendas da worldmusic.
Seguindo o ritual desde a primeira edição do Atlantic Music Expo (AME) há 10 anos atrás, a quinta-feira, 4, anterior ao fim de semana de dois dias de festival pago do Kriol Jazz Festival (KJF), fica marcada por simbolizar o encerramento do AME e a abertura oficial da festa do Jazz, na capital cabo-verdiana.
Do espírito de músicas do mundo, que desde segunda- -feira,1, invadiu o centro histórico do Platô, com dezenas de actuações, workshops e palestras do AME, a Pracinha da Escola Grande prepara-se a partir de hoje para vibrar ao som do Jazz, nas suas mais variadas formas, formatos, instrumentos e sonoridades, num total de oito países representados.
É a 13ª Edição do KJF que este ano tem o maliano Salif Keita, muito conhecido pelo seu dueto com Cize, na música “Yamore” (e não só) como um dos nomes mais sonantes do cartaz e a voz mais aguardada do cartaz deste ano.
Mas a festa, que muitos gostam de chamar da “música de qualidade” promete ainda várias outras actuações com foco nos ritmos africanos e cubanos, passando pelo jazz norte-americano e ainda pelos ritmos incontornáveis do Brasil, e com Cabo Verde à mistura, naturalmente, não fosse esta a festa do jazz crioulo, um dos festivais mais reconhecidos, actualmente, no continente.
No primeiro dia do cartaz gratuito, 4, quinta-feira, sobem ao palco Jorge Pardo e Armando Órbon de Espanha, e Soren Araújo Trio, de Cabo Verde.
Já no segundo dia, 5, sexta- -feira, o festival entra no seu formato pago, com uma mescla de ritmos variados previstos. Tibau Tavares, natural da ilha do Maio, com um pé na Europa, acompanhado de Munganga Band faz as honras da casa ao estrear o palco, abrindo caminho a Salif Keita, como já referimos o nome mais aguardado do KJF 2024.
Salif Keita, músico e activista de referência mundial
O maliano, ao qual muitos se referem como a voz de ouro de África, dispensa apresentações e é bem conhecido dos cabo-verdianos, com vários sucessos pelo caminho, incluindo “Yamore” em dueto com a saudosa Cesária Évora, mas sem descurar inúmeros sucessos da sua carreira de mais de três décadas e com um percurso marcado pela superação, activismo e intervenção social através da sua música e das suas palavras sobre a situação do Mali e a sua condição de albino.
Neste contexto, aos 74 anos (completa 75 em Agosto), foi e continua a ser um exemplo da luta pela integração, não discriminação e não violência contra as pessoas albinas em África.
Nasceu em Djoliba, Mali, em 1949, mas foi viver para Bamako em 1967, para se juntar à Super Rail Band e, mais tarde, em 1973, juntou-se a banda Les Ambassadeurs.
Keita e Les Ambassadeurs acabariam por fugir da instabilidade política do país, em meados da década de 70, para Abidjan, Costa do Marfim. Na altura, mudaram o nome da banda para Les Ambassadeurs Internationales. Nesta altura, a sua reputação extravasou as fronteiras de África e ganhou fama a nível internacional.
Em 1977 Salif Keita recebeu inclusive o prémio Ordem Naciona do presidente da Guiné, Sékou Touré, tendo se mudado para Paris em 1984. Desde então, nunca mais parou de cantar, e contar, através da sua música, os problemas do continente e do seu país, Mali, que até hoje continua mergulhado numa crise profunda de violência e guerra.
“No meu país, a música e a guerra têm uma relação próxima desde o século 13. Os soldados iam para a guerra ao som da música como motivação e, ao mesmo tempo, os músicos tinham o papel de acalmar a população local. Mesmo nos tempos mais difíceis, os músicos conseguiam sair do Mali e tocar em festivais…”, disse numa entrevista ao site brasileiro Metropolis, em 2013.
Na altura, referiu ainda que ele e outros artistas como o nigeriano Fela Kuti têm esse papel e missão de falar em nome dos oprimidos, daqueles que não têm voz para se expressar.
A sua música cruza fronteiras da África Ocidental, Europa e América, e sobressai pela riqueza das sonoridades que só instrumentos como os balafons, djambês e os corás conseguem transmitir, quando mesclados com a música electrónica e os sintetizadores presentes no álbum Talé (2012) ou Mouffo (2002). É esta mescla numa viagem pela sua vasta discografia de sucessos que é aguardada pelos fãs do KJF.
Steve Coleman e Hermeto Pascoal também muito esperados
Depois de Keita, segue- -se o saxofone de Steve Coleman, das ruas de Chicago onde cresceu imbuído nos ritmos da diáspora africana que têm acompanhado a sua carreira, ao longo dos tempos, desde que começou a tocar com 14 anos de idade. A fechar a noite de sexta estarão os ritmos “calientes” de Cuba com o Afro Cuban Jazz Project, que irá pôr toda a Pracinha da Escola Grande a dançar, certamente.
Já no sábado, 6, cabe ao grupo Pret e Bronk acompanhados de Jennifer Solidade de fazerem as honras da casa. Segue-se o multifacetado Hermeto Pascoal, do Brasil, conhecido por ser um verdadeiro camaleão dos sons e instrumentos, viajando entre o jazz, forró, samba e worldmusic, através da flauta, piano, saxofone, acordeão, etc.
Segue-se uma nova viagem pelos ritmos cubanos com o Kriolatino, numa mescla de artistas cubanos e cabo-verdianos que prometem pôr, também, toda a gente a dançar.
No cair do pano desta 13ª edição do Kriol Jazz estará o grupo ganês Santrofi que tem conquistado vários festivais europeus, privilegiando as origens do vintage “Ghana’s Highlife Music”, entre o afrobeat e o funk, rit mos que irão certamente contagiar o público habitué do Kriol Jazz Festival.
Os bilhetes já estão à venda nos locais habituais. À semelhança do ano anterior, o custo dos bilhetes é de três mil escudos (3000$00) por dia, e cinco mil escudos (5000$00) dois dias. Este ano há uma promoção para estudantes universitários em que o bilhete de um dia custa 2000$00 e dois dias 3000$00, como forma de atrair novos públicos também.
Kriol Jazz Festival luta pela sobrevivência financeira
A logística de organizar o Kriol Jazz Festival (KJF), passados 13 anos, continua a não ser fácil, segundo o promotor e mentor do projecto, Djo da Silva. Em entrevista esta semana à Rádio Alfa (do grupo A NAÇÃO), deixou transparecer as inúmeras dificuldades de logística que têm surgido ao longo dos anos, quando se quer trazer para o arquipélago nomes sonantes de vários cantos do mundo. Isto, como disse, tendo em conta que Cabo Verde “é um país de ilhas no meio do Atlântico” e “não é um país de fácil acesso”.
“Quando queremos trazer um artista que tem de sair de Los Angeles (Steve Coleman) e apanhar três voos para chegar a Cabo Verde, não é fácil (…) Igual, para trazer um artista de. Tem de passar por Espanha, Portugal, até chegar a Cabo Verde…”, exemplificou, avançando que, mesmo assim, a organização faz “um esforço”, na expectativa que o público venha a corresponder, de modo a não deixar cair o KJF.
Sobre o cartaz deste ano, não tem dúvidas que Salif Keita é a “estrela” maior. “Pelo que estamos a ver do feedback das pessoas, o público gosta muito do cartaz de sexta-feira, porque tem Salif Keita, muitas pessoas estão a falar dele e é a primeira vez que vem para Cabo Verde. Mas também aqueles amantes do jazz estão à espera de Steve Colman e Hermeto Pascual”, observou.
Sobre o preço dos ingressos no festival, apontado por muitos como um festival de elite, para um público com maior poder económico, Djo da Silva afirma que não há condições para baixar preços, especialmente na conjuntura actual.
“Tudo tem o seu custo. O festival tem um custo alto, o meu prazer era poder oferecer o festival a toda a gente mas, infelizmente, em termos de custo, ainda não conseguimos ter patrocinadores suficientes para cobrir os custos, mas espero que um dia cheguemos lá”.
Conforme esse promotor, antes da pandemia o orçamento em caixa que recebiam dos patrocinadores rondava os 35 mil contos, mas com a crise os patrocínios diminuíram. “Depois da pandemia, hoje em dia, perdemos 10 mil contos de financiamento por causa da economia das firmas que nos patrocinam, do Governo e da Câmara Municipal”, lamenta.
Com 10 mil contos a menos, Djo da Silva garante que o objectivo é continuar a fazer o mesmo festival. “Por isso tivemos de aumentar o preço, porque é impossível fazer o KJF com aquilo que recebemos”, finaliza.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 866, de 04 de Abril de 2024