Por: João Serrra*
Não é necessário destacar que o título deste artigo foi inspirado na feliz escolha do grande escritor checo Milan Kundera, falecido no dia 11 de julho, do título para a sua obra mais famosa – “A Insustentável Leveza do Ser”, escrita em 1982.
“A Insustentável Leveza do Ser” é um livro onde se olha, com um olhar, umas vezes, melancólico e conformado, outras, amargo e revoltado, para o destino de um país, para o destino de um continente, para o destino de uma civilização.
É evidente que o objeto do presente artigo, diretamente, não tem nada a ver com o texto do escritor checo, preocupado com a possibilidade do desenvolvimento de relacionamentos e com o exercício da liberdade face à grande pressão da batalha política travada à época de “cortina de ferro”. Todavia, indiretamente, sim. Na verdade, o romance mostra-nos como, na vida, tudo aquilo que escolhemos e apreciamos pela leveza acaba se revelando de um peso insustentável.
E a escolha do atual Governo em injetar, direta e indiretamente, milhões de contos na TACV/CVA, sem que haja um fim à vista e num contexto de especial escassez de recursos públicos para financiar áreas vitais para a melhoria das condições de vida da população, é uma leveza que, muito provavelmente, se afigura de um peso insustentável.
De facto, ao que tudo indica, a privatização, por ajuste direto, da TACV – primeiro, a alienação da sua gestão em 2017 e, posteriormente, a venda de 51% do seu capital social aos islandeses do Grupo Icelandair, em 2019 – veio a constituir-se, seguramente, no maior fracasso das privatizações até então feitas em Cabo Verde: a gestão financeira da “companhia de bandeira”, entre 2017 e 2019, terá sido a mais catastrófica de sempre, tendo o défice de exploração da empresa praticamente triplicado, isto é, passado de cerca de 2,3 milhões de contos negativos em 2016 para cerca de 6,6 milhões de contos negativos em 2019. E os islandeses sequer trouxeram os 11 (onze) aviões a que se comprometeram.
E a culpa por esse descalabro, que ainda impacta, não pode ser atribuída à Covid-19, que só chegou em 2020 e da qual já recuperaram a grande maioria das companhias aéreas afetadas. Vale aqui citar Miquel Ros, fundador e editor do site de aviação e podcast AllPlane.tv, segundo o qual “a maioria das que faliram em 2020 provavelmente teriam falido de qualquer forma, apenas um pouco mais tarde. Muitas eram companhias aéreas que tinham tido problemas durante bastante tempo, ou negócios frágeis que não tinham a escala e o alcance para competir com grandes operadores.”
Por outras palavras, a pandemia de Covid-19, simplesmente, levou muitas companhias aéreas que se encontravam numa situação financeira delicada a desistir, portanto, não justifica, por si só, a atitude ainda muito menos diligente da Icelandair face à TACV/CVA, a partir de 2020.
Para já, só o Governo parece conhecer a verdadeira situação financeira e operacional da TACV, na medida em que, praticamente, todo o negócio que envolve a empresa é mantido de tal forma sigilosa a ponto de os próprios Deputados se queixarem de não ter acesso às informações de que precisam para o seu trabalho de fiscalização política do Governo, nomeadamente em sede da CPI.
Efetivamente, contrariando os princípios e práticas de transparência e de boa gestão da coisa pública geralmente aceites internacionalmente, bem assim, o quadro normativo existente em Cabo Verde, o Governo, alegadamente, tem sonegado aos partidos da oposição, em particular, e à sociedade civil, em geral, muitas informações de interesse público, nomeadamente contratos firmados, fugindo, assim, ao escrutínio político e público.
Assim sendo, na falta de dados oficiais, nomeadamente financeiros e outros relativos a compromissos contratuais, que deveriam ser de conhecimento público, só nos resta compilar os que foram publicados, nomeadamente pelos órgãos de comunicação social e que não foram desmentidos oficialmente.
Segundo dados publicados pelo jornal online Santiago Magazine (edição de 16 de abril de 2021), de 2016 a 2020 o Governo ‘enterrou’ mais de 10,6 milhões de contos do Tesouro do Estado na TACV/CVA. Desse montante, “8.352.590.341$00 foram diretamente transferidos para a tesouraria da companhia, e os restantes 2.339.278.441$00 foram parar à empresa Newco, criada para gerir e honrar os compromissos da antiga TACV.”
Para a nossa fonte, apenas “após a privatização, o Governo canalizou 4.445.981.496$00 para CVA”, acrescentado que “certamente o país inteiro está lembrado quando, no momento da privatização, o Governo, pela boca de Olavo Correia, ter declarado que uma das vantagens daquela parceria com os Islandeses era que nenhum centavo seria canalizado para a companhia a partir daquela data.”
A fonte, ainda, chama a atenção para o facto de “ao longo do mandato anterior, e sobretudo após a privatização da TACV, em março de 2019, o Governo autorizou vários avales aos Islandeses, em valores superiores a 13 milhões de contos”.
Depois de, supostamente, mais de 13 milhões de contos só em garantias e avales concedidos à TACV/CVA antes da renacionalização, ocorrida no dia 6 de julho de 2021, o Governo continuou a injetar dinheiro na companhia para impedir o afundanço geral e cumprir pagamento de salários, como forma de manter viva a chama de uma eventual retoma.
Por exemplo, pelas contas feitas pelo líder da bancada parlamentar do PAICV, João Baptista Pereira, “só em 2022, já se injetou 10 milhões de euros na TACV e vai se injetar mais 30 milhões até 2026, antes de se negociar um novo parceiro estratégico para reprivatizar a empresa”, afirmou, no dia 13 de março, durante o debate parlamentar com o primeiro-ministro sobre a transparência e a qualidade da Democracia em Cabo Verde.
Mas, a injeção de dinheiro público e a concessão de avales à TACV continua em 2023, tendo o Estado, só entre os meses de junho e julho, concedido dois avales à empresa no valor total de 1,250 milhões de contos.
E tudo aponta que a TACV/CVA continuará com dificuldades para honrar todos os seus compromissos financeiros, nomeadamente, os resultantes da operação corrente, as dívidas acumuladas do passado e o reembolso dos passageiros, na medida em que com apenas uma e mesmo duas aeronaves não gerará receitas suficientes para a normalização da situação financeira. Em face disso, julgo que, hoje, quase ninguém acredita que a TACV/CVA estará em condições de honrar as suas responsabilidades financeiras avalizadas pelo Estado.
Assim, pelas nossas contas, é bem provável que mais de 30 milhões de contos, entre avales e injeções financeiras do Estado à TACV/CVA, deverão, em seu tempo, serem acrescentados ao stock oficial da dívida pública, que, em 31 de dezembro 2022, ascendia a 295,444 milhões de contos, aumentando-o em mais de 10%. Para se ter uma ideia do valor em causa, 30 milhões de contos representam 38,5% do montante total do OE2023.
A TACV/CVA é uma empresa falida e inviável. Em 31 de dezembro de 2022, apresentava uma situação líquida no valor de cerca de 12,4 milhões de contos negativos, o que correspondia a 6,8% do PIB do ano, segundo dados oficiais.
A empresa tornou-se uma grande sorvedora dos parcos recursos públicos disponíveis. Ela representa um enorme fardo para o OE e potencia a insustentabilidade da dívida pública do país, já com elevado risco de “default” (incumprimento), pelo que clama por uma solução o mais rápido possível.
A pandemia de Covid-19 veio reforçar a ideia de que a competitividade do transporte aéreo internacional tem muito mais a ver com a competitividade dos aeroportos nacionais do que ter uma empresa própria. Neste sentido, se a nossa transportadora aérea desaparecer não há ninguém, nomeadamente emigrante cabo-verdiano ou turista que deixe de vir a Cabo Verde por não existir a TACV/CVA.
Vale a pena continuar a gastar milhares de milhões de escudos numa TACV/CVA? Julgo que não. Para além de continuar a ser um desastre financeiro, existem alternativas no mercado para o transporte aéreo internacional.
Praia, 23 de julho de 2023
*Doutor em Economia