Por: Luís Kandjimbo**
Com a presente reflexão pretendo trazer à conversa a relação, os vínculos e sentimentos de pertença que Jacques Derrida (1930-2004) e Abdelkébir Khatibi (1938-2009), na imagem, estabelecem com os territórios, populações, culturas e civilizações do Grande Magrebe. Pode o diálogo entre os dois filósofos ilustrar a singularidade disjuntiva da perspectiva de cada um deles e aquilo que se entende por Geofilosofia ou Geopolítica da Filosofia? A resposta poderá estar implícita no que se propõe em seguida.
Paisagem Linguística
O Grande Magrebe pode ser descrito como a fachada marítima que, no sentido oeste a leste, cobre o sul do Mediterrâneo, ao longo de quatro mil quilómetros, constituída por cinco Estados do Norte de África, nomeadamente, Argélia, Marrocos, Líbia, Mauritânia e Tunísia, com uma superfície territorial doze vezes superior a da França, no dizer do geopolitólogo francês, Yves Lacoste. Já na perspectiva civilizacional, esse vasto território tem uma população que usa quatro línguas, o berbere ou amazigh, o árabe, o francês e o espanhol no norte de Marrocos e no Sahara Ocidental. O árabe e seus dialectos coexiste com uma língua autóctone, o amazigh. Percebe-se que o bilinguismo e o plurilinguismo são fenómenos estruturais dos sistemas linguísticos de Marrocos e França, territórios dos dois lados do Mediterrâneo Ocidental, onde subsistem seculares rivalidades linguísticas e de poder, sendo as línguas e as identidades apenas duas das suas dimensões.
O paradoxo do pensamento independente
Em 2007, à guisa de avaliação da obra de Jacques Derrida, o filósofo francês Jean-Luc Nancy (1940-2021), escreveu um artigo tecendo considerações acerca da simultaneidade da independência da Argélia e da independência do pensamento filosófico de Derrida. Jean-Luc Nancy tinha razão, ao assinalar tal coincidência, se tivermos em atenção o lugar negativo que a Argélia colonial ocupa na narrativa autobiográfica de Derrida. No dizer de Jean-Luc Nancy, o ano de 1962 é o momento genético de dois acontecimentos. Em primeiro lugar, a autodeterminação do povo argelino. Em segundo lugar, a autonomia do discurso filosófico individual de um francês nascido na Argélia, sendo a manifestação dessa autonomia o seu primeiro texto de cunho filosófico que é a introdução ao livro «L’Origine de la Geométrie»[A Origem da Geometria] do seu mestre alemão, o filósofo Edmund Husserl (1859-1938).
Em todo o caso, para exprimir esse lugar negativo da Argélia colonial parece mais relevante ter em conta a carta que Jacques Derrida endereçou ao historiador francês Pierre Nora, seu antigo colega do liceu, a propósito do livro «Les Français d’Algérie» [Franceses da Argélia], publicado em Março de 1961.Trata-se de uma carta pungente e traumática, datada de 27 de abril de 1961, redigida num contexto político dominado pelas negociações entre a FLN, movimento de libertação nacional argelino, e o governo francês que tinham sido iniciadas seis dias antes, tendo em vista a independência da Argélia. O livro de Pierre Nora aborda um tema dilacerante para os chamados «pied noirs», comunidade de franceses forçados abandonar a Argélia de que a família de Jacques Derrida fazia parte. Portanto, o pensamento filosófico nascente de Derrida ocorre sob o signo do paradoxo numa tripla dilaceração, em que a identidade franco-francesa suplanta a franco-magrebina, a judaico-magrebina e a árabo-magrebina.
Geofilosofia franco-magrebina
A leitura dessa carta de Jacques Derrida para Pierre Nora conduz-nos à operacionalização da noção de geofilosofia, tal como a definiram Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guattari (1930-1992). Para os dois contemporâneos de Derrida a imagem do pensar filosófico que mais se aproxima da realidade não é a transmitida pela relação entre o sujeito cognoscente e o seu objecto. Se o sujeito produz o pensamento, no outro pólo da relação está o território e a terra. Pode dizer-se que a relação cognitiva estabelece-se entre o sujeito cognoscente e o território ou a terra. Segundo Gilles Deleuze e Félix Guattari são as dinâmicas da relação com o território e a terra que dão lugar a dois tipos de movimentos: um centrífugo, a desterritorialização e outro centrípeto, a reterritorialização.
O problema do vínculo que se estabelece entre o sujeito cognoscente e o território ou a terra é discutido por Derrida em «O monolinguismo do Outro». Admite que ambos, ele e Abdelkébir Khatibi, «vivem, em relação à língua e à cultura, num certo “estado”» que lhes confere um estatuto a que cabe o título de «franco-magrebino». Mas tem dúvidas, as mesmas que são reveladas na carta a Pierre Nora. Compreende-se assim que Derrida reafirme o seu cepticismo: «Para saber quem é franco-magrebino, é preciso saber o que é (ser) franco-magrebino, o que quer dizer franco-magrebino.» Perante os dramas vividos como judeu nascido na Argélia, em alternativa, não invoca a possibilidade de uma condição judaico-magrebina. Mas à interrogação subjacente dá uma resposta segundo a qual paira um silêncio sobre uma eventual unidade histórica da França e do Magrebe, ou seja, tal como entende Derrida, parece não existir qualquer traço de união entre as duas unidades geopolíticas. Entretanto, a ausência desse traço de união explica-se pelo facto de a memória das relações entre o norte e o sul do Mediterrâneo Ocidental carregar as marcas de terror, de lesões e feridas do colonialismo francês. Por isso, conclui Derrida, o «traço de união nunca bastará para encobrir os protestos, os gritos de cólera ou sofrimento, basrulho das lágrimas, dos aviões e das bombas.» Deste modo, prefere operar com uma reterritorialização da cidadania identitária como traição de uma «perturbação da identidade», tal como sublinha, a dado passo.
Bilinguismo do Outro
Partindo do pressuposto com que trabalha Derrida, segundo o qual o seu interlocutor fala da sua língua materna que não é o francês, Abdelkébir Khatibi vem dizer que a língua materna, o árabe ou o amazigh, está presente na língua estrangeira que é o francês. Por essa razão, a tematização derridiana do monolinguismo é, na verdade, um pretexto para explorar a complexidade do bilinguismo sobre o qual se debruça Khatibi no seu livro «Amour Bilingue» [Amor Bilingue]. Aí o filósofo e sociólogo marroquino sustenta que o uso da língua francesa cria uma oportunidade para revelar o isolamento em que o estrangeiro trabalha. A ideia de Abdelkébir Khatibi resume-se nisto: «A língua estrangeira dá com uma mão e retira com a outra». Isto porque a língua estrangeira transforma a língua materna após a sua apropriação pelo sujeito bilingue, tornando-a, consequentemente, intraduzível.
Donde Khatibi conclui que um escritor árabe de língua francesa jaz, alternada e inversamente, entre a alienação e a desalienação, tornando-se prisioneiro de um quiasmo. Por outras palavras, Khatibi defende que esse escritor não escreve na sua própria língua, mas usa a outra língua num contexto hegemónico. Deste modo, através da escrita do seu nome próprio, transcreve a transformação da sua identidade. Por força da alienação a que está sujeito, vê-se privado de uma fala materna e da sua língua árabe escrita.
Geopolítica da razão árabe
A situação quiástica em que se encontra o escritor árabe de língua francesa, como é o caso do próprio Abdelkébir Khatibi, revela três dos mais expressivos fundamentos de racionalidades e rivalidades civilizacionais, que opõem a Europa e o Mundo Árabe-Islâmico, isto é, as línguas, as religiões e a filosofia. No caso vertente, Khatibi faz a advocacia da razão árabe. Mas, a sua vigilância geofilosófica recomenda a denúncia de algumas armadilhas. É que a razão árabe não é nem a razão, nem a desrazão como é pensado no Ocidente. Ao invés, representa um pensamento que justifica a necessidade de uma descolonização, enquanto potência subversiva, da metafísica ocidental. Para Khatibi o Ser descolonizado constitui o outro nome desse Outro pensamento. É a ruptura do vínculo com a razão ocidental. A este propósito, o filósofo marroquino, Mohammed Arkoun (1928-2010), considerava que a razão ocidental e as estratégias geopolíticas do Ocidente eram causas da prevalência de forças terroristas no Magrebe. Por outro lado, sublinhava que para a introdução da modernidade na região, a contribuição das línguas e culturas ocidentais não era significativa. Por exemplo, o francês exerce uma influência intelectual, mas, ao mesmo tempo, alimenta o radicalismo crítico dos norte-africanos, além de a literatura magrebina de língua francesa coexistir com a produção árabe.
Enunciam-se aí alguns vectores da incompreensão mútua entre europeus e árabes, por conseguinte, entre magrebinos e franceses. Por isso, Abdelkébir Khatibi reitera a ideia já formulada. A descolonização do pensamento é uma exigência, tal como a desconstrução da imagem que se faz da dominação no Magrebe, quer na sua forma exógena, quer endógena.
Neste capítulo, o pensamento de Abdelkébir Khatibi inscreve-se na linha de outro filósofo marroquino, Mohamed Abed al-Jabri (1936-2010) que define a razão árabe como conjunto de princípios e normas fornecidos pela cultura árabe aos membros das comunidades dotadas de uma razão constituinte que a partilham, cuja base é uma razão constituída formada pelos dispositivos do sistema de conhecimento. Com efeito, ambas, a razão constituinte e a razão constituída são fenómenos através das quais se foram manifestando as diferentes comunidades ao longo da história da civilização árabe. A tradição cultural que dela emana está ao serviço da produção de teorias e conceitos com as especificidades que a caracterizam.
Portanto, se a Filosofia é uma geofilosofia e se o sujeito que produz o pensamento mantém uma relação indissolúvel com o território e a terra, tal como defendiam Gilles Deleuze e Félix Guattari, podemos concluir que a razão árabe dominante, no sul do Mediterrâneo Ocidental, vincula o sujeito cognoscente ao território magrebino, onde se registam rivalidades geopolíticas que se inscrevem na escala da longa duração.
O chamado «orientalismo», entendido como domínio especializado de investigadores que no Ocidente se dedicam ao estudo do mundo árabe, é um dos veículos do preconceito civilizacional europeu e dos modos de existência das rivalidades geopolíticas mediterrânicas, na sua expressão académica. Esta é a razão por que Abdelkébir Khatibi, na senda do mesmo pensamento de Mohamed Abed al-Jabri, formula severas críticas ao orientalismo, apontando para a necessidade de identificar os traços dominantes dos discursos de seus especialistas, de modo a desarmar as armadilhas ocidentais e situar a razão árabe em seu devido lugar.
* Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 24 de Julho, aqui republicado com a autorização do autor.
** Ensaísta e professor universitário