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Santiago

Mundo do crime na Praia: Adolescentes da Ponta d’Água revelam realidade crua a youtuber estrangeiro

Um grupo de adolescentes do bairro da Ponta d’Água, na cidade da Praia, aceitou mostrar o seu quotidiano a um youtuber estrangeiro. Música, consumo de drogas, brigas com grupos rivais e assaltos fazem, segundo relatam, parte do seu dia a dia. Especialistas ouvidos pelo A NAÇÃO chamam atenção, entre outros riscos, para “glamorização” da violência juvenil.

A presentando-se como cantores e membros de gangues, os adolescentes guiaram o youtuber GabMorrison por diversos pontos da Ponta d’Água, incluindo escolas, campos de futebol improvisados e uma placa desportiva, enquanto compartilhavam detalhes das suas vidas. A surpresa surge quando, logo no início, um dos entrevistados admite abertamente que estão envolvidos na venda de haxixe na zona, entre outras práticas ligadas ao crime.

Apesar de caracterizarem o bairro como “muito suave”, os jovens não hesitaram em mencionar as brigas entre grupos rivais, o tráfico de drogas e outros desafios que enfrentam no dia a dia. “Se você não se envolver com coisas erradas, ninguém vai se meter consigo”, afirma um dos adolescentes.

O grupo levou o youtuber, que tem pronúncia francesa, a um estúdio onde eles e outros artistas, que alegam estar no auge, gravam as suas músicas que põem depois a circular nas redes sociais e não só. Quais artistas frustrados, os adolescentes reclamam a falta de oportunidades como um factor limitante para o reconhecimento de talentos no bairro.

Rivalidade

Mostrando Vila Nova, ruas, locais de encontro, os jovens revelaram tensões e conflitos locais, comparando os confrontos entre grupos rivais em Portugal e Cabo Verde. Enquanto em Portugal afirmam que os duelos acontecem por meio de músicas, em Cabo Verde, a falta de recursos financeiros leva os jovens a resolverem os seus problemas pessoalmente, “no físico”.

Durante a conversa, os jovens alertaram sobre a presença de pobreza e perigo ao longo da linha entre Ponta d’Água e Vila Nova, ressaltando o risco de assaltos para quem entrar sem ser conhecido ou sem estar acompanhado por alguém da zona. Quando questionados sobre a existência de regras na área, o autodenominado “chefe da zona” afirma categoricamente: “Aqui não existem regras”.

Alguns dos entrevistados se identificaram como estudantes, enquanto o suposto líder do grupo declara que permanece no bairro para ganhar dinheiro. Eles mostraram infraestruturas degradadas e acusaram os governantes de inação, exibindo uma igreja em construção, financiada pelos próprios moradores.

“Putos di Streat – PDS”

A reportagem seguiu para uma área próxima ao Centro de Saúde da Ponta d’Água, onde um grupo de adolescentes autodenominado “Putos di Streat – PDS” estava concentrado. Um deles, aparentando 14 anos, descreveu o quotidiano como repleto de “beef” (briga), assaltos e roubos em lojas.

Num beco próximo, mostraram uma arma artesanal e explicaram o seu funcionamento, revelando mais uma camada da complexa realidade vivida por esses jovens em Ponta d’Água.

Muita pobreza

Contactado pelo A NAÇÃO para reagir ao vídeo, o sociólogo Nardi Sousa comentou: “Os nossos jovens parecem tão ingénuos quanto ‘perigosos’ e a viver a prática do crime. Muita pobreza, cidades degradantes, sem projectos de vida”. Não sendo nova, esta é, contudo, uma situação que tende a perenizar-se, com o aumento da pobreza e desemprego.

Por seu turno, o especialista em segurança e criminalidade José Rebelo realça que, além do retrato de uma pobreza gritante que vai pelos bairros, a “reportagem” expõe a “ausência notável” da presença ou proximidade das autoridades e um “atraso significativo” destas. Particularmente, a nível de “políticas públicas aceitáveis” que possam contribuir para a coesão comunitária, protecção de grupos vulneráveis, neste caso, das crianças, adolescentes e jovens.

Glamorização do hip hop

Rebelo chama a atenção para uma certa “glamorização” da ideia que os entrevistados denotam sobre o poder reivindicativo da arte hip pop, quando, na verdade, esta é, muitas vezes, “a porta aberta” para vários caminhos sem retorno.

“Pessoalmente, falo em glamorização porque, pela ingenuidade de alguns dos depoimentos, sem desmerecer as suas importâncias, não me parece que estas crianças e adolescentes sejam os verdadeiros lobos deste submundo marginalizado. Contudo, pelo rumo que estão a tomar, pode- -se estar perante uma janela partida que, não sendo cuidada complexifica-se, na ameaça real à paz social que se almeja”, acrescenta.

Para este especialista, torna-se necessário um mecanismo público capaz de equilibrar a articulação entre os poderes estatais, os membros das comunidades e a própria família e esses jovens para estabelecer “uma verdadeira política  de cuidados à infância, adolescência, juventude, combate a pobreza e assunção dos espaços urbanos vazios que existem na sociedade cabo-verdiana”.

De referir que GabMorrison viaja o mundo entrevistando grupos criminosos organizados. Confira o vídeo no link: https://youtu.be/KMaQv-xzO-E?si=HZYs7D8oAU31NCP_

Geremias S.Furtado

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 860, de 22 de Fevereiro de 2024

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