Após várias tentativas e de ter sido anunciado por mais de uma vez, a vida do rei do reggae, Bob Marley, estreia, finalmente, no próximo dia 14 de Fevereiro, para a alegria dos seus milhões de fãs, em todo o mundo. Incluindo os de Cabo Verde, onde a música, o culto de Bob Marley e a filosofia rastafari vem ganhando, cada vez, mais adeptos.
Não é qualquer jovem actor que tem a oportunidade de viver, na tela, o percurso de 36 anos de vida de um dos maiores ícones da música internacional, dos últimos cinquenta anos. O londrino Kingsley Bem-Adir tem 37 anos, um ano mais do que Bob Marley, quando morreu, em 1981. Será a cara de Marley, o sorriso de Marley e os gestos tão conhecidos de Marley, o carisma de Marley, nos palcos.
Não parece ser uma mudança brusca de personagens ou na carreira de quem vem de participar no tão badalado Barbie, Secret Invasion (onde interpreta um terrorista) ou One Night in Miami (no papel do também icónico Malcolm X) e que também já foi Barack Obama, num pequeno papel, num filme da HBO. No entanto, há novos desafios, como aprender o ‘pidjin’, o dialecto, a entoação de Bob, a energia, a forma jamaicana de falar o inglês.
Para não falar em manter vivo o magnetismo emanado pelo rei do reggae. Tal como uma actriz não cabo-verdiana, que tivesse que aprender a falar crioulo, como a Cesária Évora, para a interpretá-la no cinema.
Para além de ter de cantar um pouco no filme, para o qual teve aulas de um profissional, o actor inglês foi a Jamaica para estar com elementos da família de Bob Marley e músicos, para mais consultas sobre o artista. Quando lhe perguntavam, quem era ele, Kingsley apenas tinha a seu favor o facto de ter crescido com jamaicanos, em Londres. O que não era muito. E garantir que iria dar o seu melhor.
Ante-estreia, Príncipe Harry e Megahn na plateia
De facto, os espectadores da ante-estreia, que decorreu no cinema Carib 5, em Kingston, na Jamaica, terão aprovado o tão aguardado filme One Love, a vida do lendário Bob Marley. Presentes no evento, que se destinou também a homenagear o cantor e compositor, estavam Brian Robbins, o presidente e CEO da Paramount Pictures, para além do Duque de Sussex, o Príncipe Harry, e a mulher, Meghan, prestigiando a sessão especial de cinema.
Realizado por Reinaldo Marcus Green, o filme tem na co-produção Ziggy e Cedella Marley, filhos de Bob Marley, eles também bastante satisfeitos com o resultado. O objectivo, disseram realizador e produtores, é fazer com que a mensagem de Bob Marley e a sua música continuem a inspirar gerações. Assim como servir de marco na história do reggae.
O cantor e compositor jamaicano, Bob Marley (Robert Nesta Marley), é considerado uma das figuras mais icónicas do nosso tempo. A sua imagem ultrapassou há muito o espaço da sua ilha natal, a Jamaica, assim como as Caraíbas e o continente americano, para se tornar num símbolo para milhões de jovens contestatários, pelo mundo fora. Ou, mais simplesmente, pelos amantes do estilo musical reggae, que não olha à cor da pele, popularizado por Marley, nos anos setenta.
Após dar os primeiros passos na música, ainda adolescente, no final dos anos de 1950, este filho de um capitão da marinha inglesa e de uma jovem jamaicana de 19 anos, iria reunir um grupo de músicos à sua volta, trazendo uma autêntica revolução à música popular, então praticada: o ska.
Estes eram estilos musicais ouvidos na capital do país, Kingston, assim como o chamado dance hall, das matinés animadas dos subúrbios, produzidos sobretudo em pequenos estúdios improvisados em bairros, como Trenchtown.
Da Jamaica para o mundo
Marley experimentou todos estes estilos, seguindo igualmente uma linha de baladas muito em voga, na época, e que ia beber nos sons da música negra americana de Detroit, em grande expansão, como a soul e o rithm n blues. No início dos anos sessenta, na companhia de Peter Tosh e Bunny Wailer, Beverly Kelso, Cherry Smith, e Junior Braithwaite, forma os Wailers. Mas aqui ainda estávamos bem longe do estilo reggae, compassado, que haveria de popularizar.
Tocavam essencialmente o ska, um ritmo mais rápido e de dança mais fácil, em festas e discotecas. O final da década vê apenas Marley, Peter Tosh e Bunny Wailer na banda. Rita Marley, a esposa de Bob, entra para o grupo, em 1966. Irá ser uma das três ‘I Threes’, as vozes do coro, que irão dar uma nova frescura às suas composições, nos anos seguintes.
Mas é em 1970, que o grupo consegue as primeiras músicas com o novo som reggae, sobretudo com a chegada da nova secção rítmica, constituído pelos irmãos Barret, Aston e Carlton, baixo e bateria, respectivamente. Mas é já em Londres, para onde os Wailers se haviam mudado, que o produtor inglês Chris Blackwell, da editora Island, vai investir no seu potencial. Catch a Fire e Burnin’ são os dois discos que colocam Bob Marley – agora como líder do grupo e seu principal compositor -, e os Wailers na rota do sucesso.
Em poucos anos, Bob Marley passar é de ser uma curiosidade musical que vem da Jamaica, para ser uma das maiores estrelas da música do então chamado Terceiro Mundo. Temas como No, Woman no Cry, Get Up, Stand Up, Roots, Rock, Reggae, Uprising, Redemption Song, serão verdadeiros hinos, adoptados por multidões. Ao mesmo tempo que vê a força das suas mensagens, das suas letras, chegarem mais longe, inclusive no mundo da política caseira.
Vítima de atentado
A sua figura ganha enorme importância e dois dias antes de um concerto gratuito, organizado pelo então primeiro-ministro Michael Manley, para acalmar as tensões entre grupos políticos rivais. A casa de Bob Marley é invadida por homens armados, que disparam contra os presentes. Rita Marley, o próprio Bob e o manager Don Taylor são atingidos pelos disparos, com o músico a sofrer apenas ferimentos leves.
Apesar disso, o concerto realizou-se como programado, para uma audiência de 80 mil pessoas. Em 1980, Bob Marley é convidado pelo então primeiro-ministro, Robert Mugabe, a dar um concerto histórico no Ufaro Stadium, durante os festejos do nascimento do Zimbabué independente dos ingleses e da minoria branca.
Concertos e digressões sucedem-se, pela Europa e Estados Unidos, fazendo de Bob Marley a grande estrela da música da Jamaica, e por esta altura, de todo o mundo. Os seus discos vendem-se aos milhões. O seu impacto foi reconhecido pelas maiores estrelas do show buzz da época, como Mick Jagger, dos Rollings Stones, ou Eric Clapton – que haveria de gravar I Shot the Xeriff, de Marley, um dos seus maiores sucessos. Até à sua morte, inesperada, em 1981, de um melanoma, aos 36 anos.
Marley e o ‘reggae crioulo’
A plasticidade do estilo reggae fez com que este fosse um dos géneros a entrar, facilmente, na música de Cabo Verde, nos últimos 40 anos. Terá mesmo sido aquele que se impôs, de forma gradual, entre os mais jovens, ganhando um espaço cada vez maior e uma multidão de adeptos.
Os primeiros discos chegaram através dos marinheiros cabo-verdianos, nas suas viagens pelo mundo, já nos meados dos anos 70 do século passado. Em países como a Holanda e Portugal, cedo passam a ser escutados em convívios destas comunidades cabo-verdianas, com forte aceitação.
Bob Marley será dos artistas internacionais, cujo sucesso mais se multiplicou, nos anos após a sua morte. As suas causas, a luta contra o apartheid na África do Sul, a exploração do homem negro, o racismo, a pobreza, o regresso a África, a difusão do rastafarismo, encontram eco também em Cabo Verde e conhecem uma enorme divulgação com o advento da internet, do vídeo, e das redes sociais.
Valores espirituais
Mas também com a chegada do pensamento alternativo, da ecologia e de um estilo de vida mais perto da Natureza. Aliás, como o próprio tema ‘One Love’ proclama, a sete ventos. O apelo ainda válido e reconhecido, pelas novas gerações, contra aquilo a que ele chamou de ‘rat race’, a corrida do rato. Aqui uma alusão à vida stressante, de correria, nas grandes cidades imposta pelo capitalismo selvagem sobre os trabalhadores e as pessoas, em geral.
Apesar de vir da Jamaica, a filosofia espiritual que acompanha o ritmo sincopado do reggae, o teor das suas letras, o apelo às raízes africanas, à mistura de um misticismo bíblico rastafari (caso de bandeiras com a efígie de Bob Marley, em manifestações da Tabanca), que engrandece o paraíso primordial, acabam por ir conquistando muitos adeptos nas ilhas. Do Mindelo, Praia, a Lisboa e Roterdão, Boston, Bob Marley encontra o seu lugar ao lado de outras figuras míticas, como Amílcar Cabral e outros símbolos do pan-africanismo.
Muitos artistas cabo-verdianos acabaram, mesmo, por gravar músicas neste estilo, ou tocar nas suas actuações, nas ilhas e na diáspora. O destaque vai para Paulino Vieira (Recordai), Africa Star, Black Power (Norberto Tavares). O próprio Catchás, responsável pela electrificação do funaná e fundador do Bulimundo, confessou o papel a grande influência que Bob Marley teve na sua vida, enquanto músico. Mais recentemente, o fenómeno deu mesmo lugar ao chamado ‘reggae crioulo’, grupos que seguem a filosofia rastafari e tocam esse estilo – todos inspirados por Bob Marley.
Os mais conhecidos serão Jorge Lizardo, líder da banda Delidel Touch (Holanda) e Nish Wadada (Eunice Vieira), oriunda e agora radicada em São Nicolau. Os seguidores de Bob Marley serão muitos nas ilhas.
A título de curiosidade, Ky-Mani Marley, um dos filhos de Bob Marley, deslocou-se a Cabo Verde, em 2018, para a gravação de videoclips, em três concelhos de Santiago, Ribeira Grande, Santa Cruz e Tarrafal.
O cantor jamaicano, Gregory Isaacs, terá sido a primeira grande estrela do reggae a actuar em Cabo Verde. Decorria o ano de 1994, quando chegou pela mão do empresário Kubilas, para concertos na Praia e no Mindelo.
Misticismo rastafari ‘cabralista’
Não é difícil identificar na componente filosófico-religiosa do reggae, nas suas letras de forte intervenção social e anti-racista e anti-colonizador, um espelho da própria luta pela libertação das ilhas. Indo mais longe, no misticismo cabralista, a começar pelas cores do PAIGC, inspiradas da Etiópia e Gana (verde, vermelho, amarelo, negro), ou seja, Amílcar Cabral e Bob Marley, a mesma luta. Wailers significa aqueles ou aquelas que choram.
É a mesma filosofia que alimenta os ‘rastafari’ crioulos, a luta do badio contra o senhor das terras. A própria imagem das tranças, os dreadlocks, é dos símbolos mais adoptados igualmente pelos ‘marleyanos’ crioulos. Não deve ser por acaso que, a par de Amílcar Cabral e Che Guevara, o ícone de Bob Marley é dos mais cultuados entre os jovens e taxistas. Não podia ser mais emblemático.
Joaquim Arena
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 857, de 01 de Fevereiro de 2024