Por: João Serra*
No meu artigo anterior, intitulado “Uma resenha das causas do falhanço das nações”, publicado na edição de 15 de junho, concordei com a tese dos conceituados economistas Daron Acemoglu e James A. Robinson, segundo a qual o sucesso de um país surge quando as suas instituições são inclusivas e pluralistas, ou seja, incluem a maioria da população na comunidade política e económica, onde todos tenham as mesmas oportunidades, criando incentivos para quem investe em si e no seu futuro.
As condições mínimas para essas chamadas “boas instituições” são uma adequada constituição escrita, eleições democráticas, poder político centralizado e competente que acomode todos os interesses, tratamento igual de todos face à lei, reconhecimento e valorização do mérito, direito à propriedade, respeito pelos contratos, facilidade para abrir uma empresa, mercados competitivos e liberdade para que os cidadãos se expressem livremente e desempenhem as profissões pretendidas.
Assim, coloca-se a questão para o caso de Cabo Verde: temos “boas instituições”?
Do ponto de vista meramente teórico, se pensarmos nas condições mínimas que caraterizam as “boas instituições” – constituição escrita, eleições democráticas, poder político centralizado e poderes bem definidos, direito à propriedade privada e respeito por todos os indivíduos – podemos dizer que Cabo Verde reúne as condições de uma sociedade democrática e pluralista.
No entanto, na prática a situação é bem diferente. Senão vejamos:
1. Considerado o marco fundacional do Estado de Direito Democrático em Cabo Verde, a Constituição de 1992 incorpora um catálogo de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e o que de mais moderno existe em termos de direito constitucional. A Constituição contém um conjunto de princípios e valores que consubstanciam um Estado de Direito Democrático “de jure”. Assim, assume-se que temos uma boa constituição e que ela serve. Todavia, alguns críticos apontam-lhe como eventual “defeito de criação” o facto de permitir que os Deputados, praticamente, não tenham qualquer elo de responsabilidade com os eleitores. Isso impede a participação da população no controle da qualidade dos responsáveis políticos e nos atos que praticam.
2. Têm sido realizadas, regularmente, eleições para a escolha do Presidente da República, dos Deputados à Assembleia Nacional e dos órgãos autárquicos. Porém, questiona-se se as eleições são verdadeiramente democráticas, quando há indícios de que quem está no poder, o incumbente, tem sempre vantagem sobre os adversários, na medida em que, conforme sistematicamente alegado, usa recursos públicos a seu favor para ganhar eleições.
Na verdade, é notório que, próximo de atos eleitorais, as preferências vão para o que é imediatamente visível para o eleitor, nomeadamente inaugurações de obras, lançamentos de primeiras pedras, bem assim, para a atribuição e pagamento de certos subsídios e apoios sociais aos mais pobres, procurando condicionar o seu voto. Outrossim, os eleitores são enganados com promessas falsas e meias verdades, enfim, com o paraíso no futuro pós-eleitoral, quando se sabe, de antemão, que tal não é possível.
3. Em geral, o poder político centralizado tem sido pouco competente para atacar os problemas de natureza estrutural de que o país padece há já vários anos, promovendo as necessárias reformas. Em vez disso, a solução descoberta é o recurso continuado à ajuda externa, pouco se importando com a redução das gorduras do Estado e criação de uma capacidade produtiva endógena geradora de recursos a médio e longo prazo.
A medir pelo destaque que atualmente é dado, na comunicação política, aos financiamentos recebidos dos parceiros de desenvolvimento, Cabo Verde está a tornar-se cada vez mais em um país que vive orgulhosamente de mão estendida para a ajuda externa! Refira-se que a ajuda externa constituí, ainda, a principal fonte de financiamento dos investimentos públicos, entre 80 a 90%, tal qual há décadas.
4. Ora, nos últimos anos temos tido governos, praticamente, desinteressados das reformas estruturais e alinhados com uma atitude relativamente conformista face ao “status quo”. Na falta de ímpeto reformista, as decisões sobre o “imediatamente visível”, ou seja, sobre o que rende votos e/ou satisfaz determinados interesses de grupos são casuísticas e discricionárias, não distinguindo o essencial do acessório e assegurando que a riqueza continue sendo distribuída mais “para cima” do que “para baixo”, o que acentua as desigualdades sociais.
Nesse quadro, o poder político não responde aos interesses de todos e não há pejo algum na prática de atos reprováveis que tinham sido veementemente criticados em anteriores detentores do poder. E a perceção da corrupção é generalizada, tendo aumentado, ultimamente, em resultado de vários e fortes indícios de falta de transparência na gestão da coisa pública.
5. Nem todos os cabo-verdianos têm as mesmas oportunidades, porque não se combate a clientela a nível político-partidário e o nepotismo. Normalmente, desde a Independência Nacional em 1975, verifica-se em Cabo Verde a ocupação dos cargos no Estado e no seu aparelho administrativo por pessoas ligadas ao partido no poder, amiúde sem que tenham a necessária qualificação técnica e experiência profissional.
Mas atualmente, assiste-se o assalto da administração pública por “boys” cada vez mais incompetentes, numa dimensão nunca dantes vista e realizado com descaramento crescente. De facto, tornou-se a regra o compadrio, o nepotismo, a criação de intermediários improdutivos e de algum parasitismo em favor de interesses políticos e/ou pessoais, com quase total desprezo pela meritocracia e descaso para com a sociedade civil. A ausência da validação de um percurso meritocrático constituí um forte entrave ao desenvolvimento do país.
6. Numa entrevista concedida recentemente ao semanário Expresso das Ilhas, edição de 01 de março de 2023, a Doutora Fátima Brito Monteiro, investigadora e Presidente do Instituto de Estudos da Macaronésia (IEMACE) considera que “a sociedade civil cabo-verdiana, em termos de qualificação técnica e científica, está muito além do pequeno grupo de pessoas que constitui o governo. Quando não se aproveita esse capital que está fora do governo o resultado prático não pode ser o resultado qualificado. (…) Os políticos devem ser alimentados constantemente, não só pelos impostos da sociedade civil, mas também pelas suas qualificações, pelo conhecimento, pelo ‘know how’ e quando há obstrução dessa sinergia ou dessa transmissão do conhecimento para os governantes, a sociedade civil está a ser desaproveitada e a governação é pobre. Não pode ser rica, se não é enriquecida pelo conhecimento da sociedade civil.”
7. Para além disso, a Presidente do IEMACE observa que, em Cabo Verde, “o poder político conseguiu lograr o açambarcamento de todas as esferas de atividade social, pública e económica. Tem a sua pegada em absolutamente tudo, não permite que os outros se expandam, que floresçam, que tenham liberdade para manifestarem. Como o mercado de trabalho de facto é muito pequeno, o poder económico é relativamente frágil, as pessoas não arriscam. Os cabo-verdianos passaram a ser um povo extremamente medroso, porque só estão autorizados a expressar-se a um determinado nível e em determinada esfera. No Carnaval é a expressão total, mas depois ninguém se atreve a entrar no patamar que o poder quer controlar. Portanto, não se pode dizer que estamos numa sociedade democrática.”
8. Eu não diria que a nossa sociedade não seja democrática. Para mim, as nossas instituições são um misto de instituições inclusivas e de instituições extrativas, isto é, Cabo Verde é uma democracia sofrível e muito pouco meritória. Na verdade, nem todos os cidadãos são envolvidos na vida coletiva, expressam, sem condicionalismos, as suas opiniões e opções político-partidárias e desempenham as profissões pretendidas, seja porque as oportunidades são diferentes, seja porque há funções a que só alguns (os “boys”) acedem.
Praia, 18 de junho de 2023
*Doutor em Economia