Apesar das perspectivas económicas optimistas do Banco de Cabo Verde (BCV) para 2024, a realidade da maioria das famílias vislumbra-se outra, com a inflação e os baixos salários a continuar a ensombrar o dia a dia dos cabo-verdianos. Estas são as projecções do consultor Amílcar Aristides Monteiro que defende uma “profunda reforma fiscal”, que permita salários e rendimentos mais elevados no país.
Consultor em Gestão do Desenvolvimento, Amílcar Aristides Monteiro traça, ao A NAÇÃO, um cenário “realista” sobre as perspectivas económicas que os cabo-verdianos podem esperar em 2024, cruzando para isso a chamada macro e microeconomia e os seus impactos no desenvolvimento do país.
Na sua análise, o nosso entrevistado advoga que é preciso haver “consensos” sobre a realidade que nos enforma, pois, caso contrário, “corremos o risco de não perceber as ameaças e a retardamos o processo de transformação da economia”, que urge e não é de hoje.
“Claramente, o país tem conseguido driblar as crises, com a ajuda dos emigrantes e da cooperação internacional, mas é preciso que o país ponha foco na independência económica e crie bases sólidas de produção de riquezas, resolvendo, de vez, pendências que limitam o desenvolvimento das ilhas como os transportes e o financiamento da atividade económica”, começa por dizer.
Vulnerabilidade a factores externos
Por outro lado, a conjuntura económica mundial, reflectida no contexto especial de guerra na Europa, não deve ser, por isso, descurada. Especialmente se se tiver em conta que a economia cabo-verdiana assenta, “fundamentalmente”, em uma economia de serviços, “dependente de fluxos externos”, entre os quais remessas dos emigrantes, investimentos, ajuda externa ou dívida pública.
“Para garantir a sustentabilidade, será crucial desenvolver uma base produtiva interna capaz de mitigar ameaças externas. As perspetivas de crescimento permanecerão otimistas até que eventos mundiais impactem os pressupostos do BCV, do Governo e dos parceiros de desenvolvimento”.
Alavancagem ao turismo
Neste contexto, esse especialista defende um debate “nacional” sobre os pressupostos de desenvolvimento da economia, de modo a se consensualizar o que significa crescimento económico e quais os indicadores que refletem a realidade, especialmente se tivermos em conta a alavancagem da economia ao turismo.
“Durante a COVID-19, foi possível ver claramente o impacto da conjuntura externa no PIB, quando os ramos de actividade com forte ligação com o exterior entraram em depressão (queda de 20% do Produto Interno Bruto) causada pela paralisação dos transportes, do turismo, do alojamento e da restauração, sendo que o crescimento posterior verificado em 2022 resulta precisamente da retoma em pleno destes ramos que voltaram a crescer rápido”, argumenta.
Monteiro defende assim que “matematicamente” é possível que a economia cabo-verdiana, como um todo, continue a crescer, mas reitera que é “crucial reconhecer que a sustentabilidade está intrinsecamente ligada ao desempenho individual de diversos sectores”.
Maior participação no PIB de outros sectores
Nesse quadro, exemplifica que se áreas de actividade como agricultura, lazer, cultura e outras baseadas em propriedade intelectual, mantiverem “participações irrisórias e declinantes no PIB”, o crescimento não será sustentável. “A geração de valor em cada parte da economia é fundamental para garantir uma prosperidade duradoura e equitativa”, sustenta.
A par disso, o problema da balança comercial cabo-verdiana que, recorda, “é historicamente deficitária”, antevê um alerta “importante” para a necessidade de formulação de políticas e estratégias de desenvolvimento.
“Este indicador reflecte a dependência externa e destaca a necessidade de aumentar a capacidade de produção interna e a exportação de bens, serviços, capital e propriedade intelectual. A condição de importador líquido de alimentos evidencia um desafio significativo que precisa ser abordado para melhorar a situação económica. Enquanto não se atacar esse problema, a dependência contínua da ajuda externa é provável”, antevê, destacando que isso exige que o Governo desenvolva estratégias, a longo prazo, para alcançar a sustentabilidade económica.
Perante o quadro acima descrito, este analista não tem dúvidas que a inflação e os baixos salários vão continuar a assombrar a maioria das famílias cabo-verdianas, pelo menos, até que haja uma “profunda reforma fiscal que permita salários e rendimentos mais elevados em Cabo Verde”.
Governo quer crescimento económico de 4,7%
De notar que, aquando da apresentação do Orçamento de Estado para 2024, em Outubro passado, o primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva garantiu que o objectivo do Executivo era ter um crescimento económico de 4,7%, superior ao previsto para as economias emergentes e em desenvolvimento, que é de 4%.
Na altura, o mesmo destacou que a inflação, que assolou o país em 2022, tem vindo a reduzir, sendo que a previsão para 2024, é de 2,8%, em linha com a previsão do Fundo Monetário Internacional (FMI).
Já a dívida pública, segundo disse, retomou a trajectória descendente, com a estimativa de 114,7% em 2023 e previsão de 110,5% para 2024. Já em relação à taxa de desemprego, a previsão é de 8,2% para 2024, contra os 12,1% verificados em 2022 e os 8,7% em 2023.
De notar que, conforme anunciado em 2023, o salário mínimo do sector público aumenta para 16 mil escudos, e está previsto atingir 17 mil em 2025. Já os salários dos funcionários da Administração Pública registarão uma actualização de 3% em 2024, enquanto o salário mínimo do sector privado está previsto subir para 15 mil escudos, em 2024.
Turismo deverá crescer em 2024
Amílcar Aristides Monteiro acredita que o turismo deverá crescer em 2024, pese embora, discorde da ideia de que o aumento do número de turistas se traduza em mais rendimentos ou ganhos para a economia. “Atingir 1 milhão de turistas pode ser significativo, mas os ganhos efectivos para a economia dependem do padrão de gastos dos turistas. 100 mil turistas, a gastar US$1000/dia podem gerar 5 vezes mais rendimento do que 1 milhão de turistas a gastar US$20/dia e a consumir 10 vezes mais água e energia”, analisa.
O turismo, adverte, é uma actividade que “consome muitos recursos” e que, por isso, no seu entender, exige que o Governo continue a investir em infraestruturas e serviços, o que acaba por competir com as prioridades do próprio Governo para com as necessidades da população.
“É um factor que demanda o aumento da dívida na promessa de geração de rendimentos futuros, pelo que há que pensar o turismo de forma integrada, com o funcionamento interno da economia. Caso contrário temos uma economia a dois ritmos, em benefício dos visitantes e em detrimento dos cidadãos que pagam impostos e que aspiram a viver num país com futuro”, interpela.
Contudo, admite que 2024 parece ser um ano favorável ao aumento do número de turistas em Cabo Verde, particularmente, para os dois polos turísticos do Sal e da Boa Vista, que absorvem a maior fatia do movimento de hospedes no país.
“Para as restantes ilhas do arquipélago a situação continuará pouco favorável visto que o gargalo dos transportes internos não comporta o desejado aumento”, perspectiva, alertando mais uma vez para o calcanhar de Aquiles, no que toca ao turismo e mobilidade interna, sem uma política de transportes eficiente.
A diversificação da economia, que continua atrelada ao turismo, continua a ser assim um desafio que vamos continuar a enfrentar em 2024 e não é de agora.
“A diversificação da economia pressupõe que todos os ramos de atividade económica contribuam de forma equitativa e haja espaço para crescer em todas as áreas. Além de Cabo Verde não ter um Ministério da Economia que garanta o planeamento e a coordenação económica, o Estado tem promovido uma política de liberalização da economia que não está em linha com a realidade das ilhas, o que conduz a disfunções gritantes. Senão, porque é que a economia da cultura de Cabo Verde não contribui com mais de 1% do PIB?”, conclui, interpelando o Governo.
Olavo Correia antevê ano “difícil”
Olavo Correia, vice-primeiro-ministro e ministro das Finanças, admitiu esta semana que o ano de 2024 venha a ser “difícil” e “desafiador” para o país em termos económicos. Considerações tecidas na conferência de imprensa, no passado dia 2 de Janeiro, na Praia, sobre o Orçamento de Estado para 2024 (OE’2024), onde reconheceu que o contexto internacional é “desafiante” e de “muitas incertezas” e, há semelhança de 2023, com impactos em Cabo Verde.
Tal como o Banco Central já havia alertado para os efeitos de retracção da economia mundial, também Olavo Correia destacou o aumento da inflação, dos bens de primeira necessidade, e dos juros nos mercados internacionais, assim como dos combustíveis, como impactos directos na economia, face especialmente ao contexto de guerra na Europa, e não só.
“O momento é difícil e desafiante, mas somos capazes, e toda a nação tem de estar mobilizada, nós não vamos responsabilizar ninguém. À partida somos todos parte desta nação, e vamos engajar todos, enquanto nação”, apelou, instando os cabo-verdianos a trabalharem de forma mais célere.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 853, de 04 de Janeiro de 2024