Por: Germano Almeida
A propósito da condenação pelo Tribunal de Relação de Barlavento do deputado Amadeu Oliveira a escandalosos sete anos de prisão efetiva pelo crime de atentado contra o estado de direito democrático (como bom exemplo desse tipo de crime, pode-se recomendar o que aconteceu em Brasília domingo passado), o dr. José António dos Reis, psicólogo conhecido no país, produziu um texto que todos os caboverdianos, quer aqueles que se interessam pelo destino nacional, quer aqueles outros que fingem nada terem a ver com todas as asneiras que estão a passar aos nossos olhos, deviam ler e meditar.
Reis intitula a sua reflexão de “A supremacia da Constituição e a ética da e na Justiça”. ”A decisão judicial deve buscar a justiça”, cita ele; “a decisão judicial busca soluções sensatas, coerentes, razoáveis. Em uma palavra: justas”, cita ele ainda; “É a ética que postula no sujeito uma escolha racional; escolha esta que deverá ser pautada por valores objetivos(universais)de justiça, e não pessoais”, como que conclui.
“É a ética que postula no sujeito uma escolha racional” e o oportuno texto do JAR tem o mérito de nos fazer lembrar quão fácil é ler o código penal e simplesmente escolher uma pena. Conta-se a estória de um juiz de Santo Antão que diante de qualquer facto criminoso, aplicava sempre a pena máxima. Se o Código dizia dois a oito, ele sempre condenava a oito. Contanto que não saia do moroço, justificava-se. Mas era um juiz de antigamente, que não tinha passado pelos bancos da universidade.
O texto de JAR fez-me relembrar o conceito de “banalidade do mal” postulado pela filósofa judia Hannah Arendt a propósito da prisão e julgamento em Israel do nazi Adolf Eichmann.
Eichmann foi acusado da responsabilidade no extermínio de milhões de judeus dizimados em campos de concentração. Foi raptado, levado para Israel, julgado e condenado à morte por enforcamento. Arendt já vivia nos EUA e foi destacada para cobrir esse acontecimento que a todos os títulos parecia extraordinário: julgar um oficial de alta patente da Alemanha Nazi, o organizador-mor do holocausto…
Como ela diz, quem esperava que a aparência física e o comportamento de Eichmann correspondessem ao clichê do assassino em massa sádico-perverso, demoníaco e degenerado, ficou completamente desiludido. Eichmann era inteiramente “normal”, nem cínico nem mentalmente débil, nem muito inteligente nem estúpido; na sua vida privada era um pai carinhoso e um marido exemplar. E nem sequer tinha um particular ódio aos judeus. Simplesmente, matar judeus era o seu trabalho e procurava desempenhá-lo o melhor possível porque tinha a ambição de ser promovido na carreira. E por isso nunca entendeu por que tinha de ser condenado à morte, se tão bem tinha desempenhado o papel que lhe fora atribuído.
Eichmann não entendeu por que não foi elogiado em vez de condenado, porque nesse seu exercício profissional só viu o lado meramente utilitário, faltou-lhe incluir e reger-se pela dimensão moral, pelo valor ético das suas ações. Daí que para ele fosse banal matar judeus como se matasse baratas.
Ora aqui no nosso país, temos algumas vezes assistido a graves situações de banalização do mal. Quem leu o livro Famintos de Luís Romano terá certamente ficado arrepiado com a maneira banal como se encontrava pessoas, gente como nós outros, morrendo de fome pelas ruas e esquinas, perante a indiferença daqueles, caboverdianos como os outros, que detinham os meios de socorrer os famintos.
Mas lamentavelmente esse espírito de indiferença não desapareceu. Continuamos a praticar e assistir a maus comportamentos, sem tomar consciência da ausência de qualquer ética na sua execução, porque nos habituamos à sua banalização. Não tenho dúvida nenhuma de que em termos normais, uma sociedade que preservasse a defesa dos valores éticos, não teria assistido indiferente ao verdadeiro crime que foi a Assembleia Nacional, o órgão por excelência de defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, entregar sem o cumprimento rigoroso da lei, a saber, um prévio pronunciamento de um juiz, um deputado, ao poder judicial; e nem se assistiria sem revoltar-se a um juiz desembargador “legalizar-lhe” a prisão, cometendo desse modo um crime de prevaricação punido pelo artº 328º do CP, mas cuja sanção foi a sua elevação à dignidade de conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça. Mas também não veríamos sem protestar esse mesmo deputado a ser condenado a sete anos de prisão pela acusação fútil de ter cometido um virtual crime contra o dito estado de direito democrático, numa acusação e num acórdão que seriam risíveis, não fossem dramáticos.
E no entanto, esses deputados e magistrados que estão por detrás dessa banalização do mal, são pessoas normais, vivem em sociedade, têm família, filhos, amigos.
JAR exaspera-se com o juízo que o acórdão faz do Amadeu Oliveira: “O arguido, com o seu comportamento anormal e indigno…” Se ele soubesse do juiz que terá afirmado que por ele o Amadeu só sairá da cadeia num caixão!
Banalizar o mal não é apenas matar judeus nos campos de concentração ou deixar pessoas morrer de fome por desleixo na distribuição de alimentos. Também é aplicar a lei de acordo com as conveniências de cada momento, consoante se quer ou não “conter” certos indivíduos na sociedade, que diria da dimensão ética que enforma certos dos nossos magistrados?
Mas do mesmo modo que nunca nos lembramos da nossa constante banalização do mal, também nunca nos esquecemos da palavra “democracia”. Digo palavra porque nos resumimos ao uso da palavra. O Parlamento celebra com pompa e circunstância o dia da liberdade e da democracia, mas é esse mesmo Parlamento que decidiu, ilegal e arbitrariamente (porque através da sua Comissão Permanente), a entrega de um deputado ao poder judicial com o simples objetivo de o “conter”, e é esse mesmo Parlamento que mais de um ano depois de esse deputado estar na cadeia, que vota, numa paródia de voto secreto, a suspensão do seu mandato. Sim, precisamos de democracia, mas da realização do que o conceito pressupõe, não apenas o papaguear da palavra. Será a via de combatermos a banalização do mal que avança entre nós, e como um cancro feroz está destruindo as nossas instituições.