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As alegorias à etnia de Marcolino Moco: Lacunas e colapso da representação política*

Por: Luís Kandjimbo**

Nas últimas três semanas, os tópicos da nossa conversa têm gravitado à volta do conceito de etnia e outros conexos. Essa tematização da etnicidade e o modo como o fenómeno é tratado por pensadores e políticos Africanos suscitou a interpelação de um leitor. Ele manifestou o interesse em saber se o autor destas linhas teria lido o livro do jurista angolano, Marcolino Moco, na imagem, que é doutorado pela Universidade de Lisboa. Trata-se de uma obra publicada em 2015 com o seguinte título: «Angola. Estado-Nação ou Estado-Etnia Política?». A primeira impressão com que se fica, após a leitura do livro de Marcolino Moco, resume-se em quatro aspectos: 1) Formação dos partidos políticos históricos e sua forte base étnica; 2) Imperativo de clarificar as bases que sustentam a construção do Estado e da nação; 3) Denúncia de estigmatização fundada em identidades étnicas, nos processos de competição simbólica e política; 4) Necessidade de alternativas aos fundamentos étnicos de representação política. Portanto, Marcolino Moco tematiza a etnicidade política na disputa do poder para o controlo do Estado e distribuição de recursos simbólicos em Angola, bem como o preconceito étnico que impregna o comportamento de membros das elites que intervêm na competição política.

Constante idiossincrática 

Marcolino Moco

Apesar das incidências jurídico-constitucionais, a articulação de subsídios antropológicos e sociológicos, as reflexões e o itinerário das leituras de Marcolino Moco, basicamente, recuperam ideias de autores Africanos que me são familiares. No entanto, para o debate que as considerações de ordem jurídico-política suscitam, teria sido fecundo discutir o viés neopositivista das propostas jurídico-antropológicas do jurista cabo-verdiano, Wladimir Brito, professor da Universidade do Minho. Estou a referir-me aos seus argumentos sobre a «constante idiossincrática», enunciados num artigo publicado, em 2004, na «Scientia Iuridica-Revista de Direito Comparado Português e Brasileiro». Através deste texto Wladimir Brito apresenta as razões que permitem defender a instauração de um regime presidencial, tal como viria a ser consagrado na Constituição de 2010, com base numa presumível «legitimidade do tipo tradicional». 

Por «constante idiossincrática», Wladimir Brito entende «a colectiva representação e aceitação de um modelo-tipo de qualquer organização de uma sociedade e do seu modus funcionandi fundada na legitimidade do tipo tradicional, modelo cuja configuração formal e funcional é determinada por um pequeno número de elementos da sua estrutura nuclear, e cuja própria subsistência também depende desses elementos». Mais adiante acrescenta que, entre os elementos estruturais da «constante idiossincrática da organização política angolana», devem ser destacados a «chefia unipessoal e o seu conselho consultivo». Pode-se concluir que à legitimidade do tipo tradicional a que se refere Wladimir Brito está implícita uma forma de representação que tem o seu modelo nos processos de organização política das comunidades culturais e linguísticas angolanas.

A interpretação das propostas de Wladimir Brito convoca cinco dimensões do conceito de representação e respectivos domínios do saber: a representação social, no campo da psicologia; a representação política, no campo da filosofia ou da ciência política; a representação histórica, no campo da história; a representação jurídica, no campo do direito; a representação cultural, no campo dos estudos culturais.  O primeiro é útil quando o fenómeno vem à reflexão do ponto de vista dos chamados «grupos étnicos» ou «minorias étnicas». O segundo diz respeito a um elemento central das democracias liberais representativas. O terceiro aponta para as narrativas sobre a história das comunidades culturais e linguísticas angolanas, bem como a sua reprodução, numa perspectiva de longa duração. O quarto remete para a ficção jurídica da delegação de poderes e acção do representante em nome do representado. O quinto traz à liça a importância da imaginação cultural para a memória social.

Wladmir Brito

Não sendo possível abordar o sentido das cinco dimensões em que se pode analisar a representação, parece-me relevante prestar atenção ao tema da representação política. Apesar de ser transversal, o tópico não é, no livro de Marcolino Moco, exaustivamente tratado, à altura daquilo a que designa por «unidade na diversidade étnico-político-regional». 

Etnicidade e sociedades pré-capitalistas 

O conceito de etnia formulado por Marcolino Moco encerra um conteúdo sociológico, cultural e político, em seu próprio entender. Do ponto de vista analítico, identifico os seguintes traços definidores: a) grupos de seres humanos; b) características de proto-nações; c) típicas das sociedades pré-capitalistas; d) unidade de costumes, cultura e língua comum; e) influências ocidentais pós-modernas. No entanto, tal conceito reproduz a matriz do pensamento antropológico evolucionista ocidental, não parecendo, por isso, que seja universalizável. De resto, está longe das contribuições iconoclastas do discurso pós-moderno sobre as grandes narrativas ocidentais.

Ocorre-me imediatamente uma observação. As etnias e os etnónimos em Angola são categorias classificatórias. Neste sentido, não podem ser descritas como tipos de fenómenos de sociedades pré-capitalistas, na medida em que continuam a ser hoje realidades substantivas, tal como reconhece Marcolino Moco. Ao catalogar os referentes da etnia como fenómeno pré-capitalista, isto é, pré-moderno, cai na armadilha da etnonímia colonial, quando, por exemplo, não toma as devidas cautelas de suspeita semântica, relativamente ao uso dos etnónimos, tais como «ambundu» e «ovimbundu», invenções da narrativa historiográfica portuguesa dos séculos XVII e XVIII. Tratei da etnonímia dos chamados «ovimbundu» no meu livro « Alumbu: O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano: Para Uma Hermenêutica Cultural» (2019). 

Para todos os efeitos, quando se aborda os processos de representação política, a aplicação do critério de universalizabilidade dos conceitos de etnia e etnicidade recomenda estudos comparados dos fenómenos que constituem os seus referentes –  as comunidades culturais e linguísticas – no contexto das democracias representativas. Isto significa que há uma pergunta que deve ser respondida. Pode a representação política ser bem sucedida em democracias liberais nas sociedades heterogéneas e multiétnicas?

No que diz respeito à representação política, há que partir do pressuposto de que não existem sociedades homogéneas e monoétnicas no século XXI. Assim, as etnicidades não são reivindicações identitárias pré-capitalistas. São fenómenos consagrados pelo Estado moderno ocidental. Com a invenção do multiculturalismo, o Ocidente reconhece as suas próprias sociedades multiétnicas. Embora se saiba que, durante séculos, julgava-se que esse Estado seria eternamente homogéneo. 

Admitindo-se o largo espectro semântico das propriedades desses conceitos, uma reflexão sobre os mecanismos de representação política em África requer um sólido conhecimento empírico das realidades multiétnicas africanas, suportado por subsídios teóricos e filosóficos. Como vimos, a operacionalização do conceito de representação ocorre em diferentes domínios do saber, não podendo haver representação política universalizável aprioristicamente. 

Colapso da representação política

A este propósito, já na década de 60 do século XX, a cientista política norte-americana, Hanna Pitkin, promovia um debate, sintomático a todos os títulos, com um livro que lhe deu notoriedade, «O Conceito de Representação». Chamava a atenção para a desproporcional importância conferida ao conceito e seu uso frequente em reflexões sobre política, mas predominando um reduzido interesse pela discussão ou análise do seu significado. Pitkin vai mais longe. Nas comunidades científicas, era a sub-representação numérica de determinados grupos sociais, empiricamente comprovada, que constituía a fonte das discussões acerca da ideia da representação como espelho ou representação sociológica. 

Para Hanna Pitkin, o século XX registou acontecimentos que se traduziram no menosprezo da representação política nas chamadas democracias indirectas. O que deu lugar a um generalizado pessimismo consubstanciado na ideia segundo a qual não existem governos verdadeiramente representativos. 

Na mesma senda, encontra-se o filósofo português, Diogo Pires Aurélio, professor da Universidade Nova de Lisboa, com quem trabalhei no Departamento de Filosofia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Critica a indiferença que filósofos ocidentais do século XX, tais como John Rawls (1921-2002) e Jürgen Habermas e seus discípulos, manifestavam em relação à representação política. Diogo Pires Aurélio defende uma perspectiva que situa a representação no cerne da política, enquanto questão central da sociedade. A sociedade é aqui entendida como «conjunto de indivíduos que se atribui a si mesmo, de forma estável, uma identidade e uma vontade comuns, as quais precisam de ser representadas para que o conjunto deixe de ser uma abstracção e possa, de facto, decidir e agir enquanto todo».

Ao sintetizar a percepção que tem da crise da representação política, Diogo Pires Aurélio fá-lo a partir do lugar que ocupa na investigação filosófica, concluindo que o campo da filosofia política é lacunar, quando se trata de temas como partidos políticos, democracias liberais representativas e sociedades multiétnicas. 

Multiculturalismo, identidade e representação

A realidade que corresponde à «diversidade étnico-político-regional», segundo Marcolino Moco, no Ocidente, é eufemisticamente designada por multiculturalismo. Na Austrália, Canadá, Estados Unidos da América, Europa, essa palavra parece exprimir melhor a natureza ficcional da representação, num quadro de diversidade étnica e cultural. O filósofo canadiano Will Kymlicka é um dos mais importantes arautos do multiculturalismo. Trata-se de uma corrente da filosofia política que emerge no Canadá, nas décadas de 60 e 70 do século XX, para examinar as políticas públicas que permitem o reconhecimento de diferentes religiões, culturas, línguas, além da integração e representação das minorias étnicas de imigrantes, efectivando-se através de acções  de discriminação positiva ou acção afirmativa. Enquanto neologismo, incorpora o vocabulário da língua inglesa, duas décadas depois. Daí exporta-se para outras línguas.

Ora, a «unidade na diversidade étnico-político-regional» a que se refere Marcolino Moco exige um outro tipo de abordagens e respostas. Implica a escolha de um modelo de representação política que valorize o conteúdo da relação entre o representante e o representado. À luz do princípio da eleição política, a relação estabelece-se entre o órgão representativo e a comunidade de eleitores. É a imagem do espelho ou da representação sociológica. Dessa fórmula, extraem-se duas ideias. Em primeiro lugar, a  presunção segundo a qual o funcionamento das democracias de partidos políticos obedece ao princípio da identidade do povo soberano com um partido, mas afasta-se do princípio da representação porque o povo escolhe os seus  representantes, através da mediação dos partidos. Em segundo lugar, levanta-se a questão de saber qual o conteúdo dessa relação, se  assenta no mandato imperativo e controlo da acção do representante, o deputado, pelo representado, o eleitor, ou na autonomia daquele. 

Como se pode imaginar, o desafio reside no aprofundamento e renovação do debate, sempre em busca do óptimo Estado. A problemática da representação já tinha alimentado acesos debates, na primeira metade do século XX, com a controvérsia sobre o parlamentarismo e a crise da representação política que opôs dois filósofos europeus, Carl Schmitt (1888-1985) e Hans Kelsen (1881-1973). Nesta matéria, o pensamento europeu sobre a democracia representativa evoluiu pouco. Mas a crise da representação política no Estado de partidos, em África, está na origem de uma das mais originais reflexões filosóficas de Kwasi Wiredu (1931-2022) que advoga o processo de deliberação consensual num regime sem partidos políticos, em detrimento do princípio maioritário da representação política. Propõe-se aí o que se poderia designar como democracia consensual. Assim, Wiredu defendia o consenso que resultaria de uma reformulação dos modelos africanos antigos de deliberação, evitando que os facciosismos étnico-regionais possam dar lugar à eventuais tiranias de maiorias étnicas.

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