Por: João Serra
O sistema bancário cabo-verdiano, apesar de aberto ao mercado, não é um “player” a nível internacional. Ou seja, por si só, ele é muito pouco afetado pelos acontecimentos nos mercados financeiros externos. Por operar quase exclusivamente no mercado doméstico e com recursos obtidos internamente, é, sim, fortemente afetado pela situação macroeconómica e macrofinanceira do país. Porém, ele pode ser, mesmo assim marginalmente, impactado pela turbulência na banca internacional, caso haja dificuldades com a banca portuguesa, mormente com a Caixa Geral de Depósitos (CGD). Como se sabe, a CGD é, praticamente, proprietária de dois bancos nacionais – o BI e o BCA, sendo este último o maior banco comercial a operar no país e, como tal, um banco de natureza sistémica.
Já o balanço do banco central (BCV), eventualmente, poderá ser grandemente atingido pelas subidas das taxas de juro nos mercados internacionais, na medida em que boa parte dos ativos externos da instituição, no valor de mais de 600 milhões de euros, é constituída por obrigações e títulos de entidades de natureza pública ou similar, ativos esses que sofreram uma forte desvalorização com as subidas das taxas de juro promovidas pelo Fed e pelo BCE.
Com efeito, um aumento da taxa de juro de 1% para 2%, representando um incremento de só um ponto percentual, não deixa de ser um aumento de 100% dessa taxa. E os efeitos dos aumentos passam a ser ainda mais significativos, quando as taxas de juro sobem, tão rapidamente, de um para dois, três, quatro, etc.
No entanto, se os bancos cabo-verdianos sofrem muito pouco com as flutuações na banca internacional, já a evolução da economia nacional está muito associada à conjuntura internacional.
Na verdade, a nossa economia depende particularmente da situação na ZE, para onde Cabo Verde exporta mais de 80% das suas mercadorias, e de onde importa mais de 70% dos bens de que necessita, para além desta área geográfica ser também um dos principais financiadores dos esforços de desenvolvimento do país. De igual modo, a Europa, no seu todo, emite mais de 90% dos turistas que visitam Cabo Verde, e a viagem para turismo dos cidadãos europeus é, em certa medida, condicionada pela situação económica e social dos respetivos países. E essa situação pode ser impactada por uma eventual crise financeira internacional.
Até ao momento, não existem dados concretos de que a falência do SVB e a integração do CS no UBS possam ter um efeito de contágio para os restantes bancos da Europa, em geral, e na ZE, em particular.
Seja como for, qualquer problema nos mercados financeiros é um risco acrescido, pelo que é muito importante que seja minimizada a turbulência que se gera em torno do setor bancário da Europa que possa afetar os respetivos países. Pois, com as interações que os mercados têm e os riscos que estes enfrentam, há necessidade de continuar a monitorizar e de se estar atento a essa dimensão.
Também importa olhar para a banca nacional e analisar a sua resiliência face a um hipotético choque interno e externo.
Segundo consta do Relatório de Estabilidade do Sistema Financeiro 2021 (REF2021), publicado pelo BCV em finais de agosto de 2022, “o sistema financeiro manteve-se resiliente em 2021…Apesar da intensificação e amplificação das vulnerabilidades e riscos, denotou-se forte capacidade de adaptação do setor financeiro a choques exógenos, sem registos de materialização de riscos sistémicos suscetíveis de comprometer a estabilidade financeira.”
E pode-se confirmar isso através de uma análise muito rápida a três indicadores fundamentais da resiliência bancária, tendo como referência a situação existente aquando da crise financeira internacional de 2008.
Com a aprovação, nos últimos anos, de uma série de regulamentos visando a prevenção do incumprimento, os bancos reduziram consideravelmente os empréstimos em situação de incumprimento, que se situavam, em 2021, em níveis relativamente baixos para a realidade do país – o rácio de malparado (NPL – “non performing loans”, em inglês) atingiu os 7,2% do total do crédito. Isto é, por cada 100 escudos de crédito dado à economia, “apenas” 7,2 escudos era crédito problemático.
Em resultado do aperto da regulação e do aumento dos níveis de exigências, para que as instituições de crédito tivessem mais fundos próprios e reduzissem a exposição ao risco, os bancos, em 2021, também estavam mais robustos do que na crise de 2008, com o rácio de solvabilidade a situar-se em 21,4%, quase o dobro do regulamentarmente exigido que é de 11,25%.
Como é conhecido, o negócio tradicional de um banco passa por receber depósitos dos clientes e emprestar esse dinheiro aos particulares para, por exemplo, comprarem casas, e às empresas para financiarem os seus negócios. Ou seja, o banco transforma o depósito captado junto dos seus clientes em empréstimos. E o indicador que mede essa capacidade de “negócio” de um banco, é o rácio de transformação, que, em 2021, estava nos 56,9% para toda a banca. Isso significa que, por cada 100 escudos de depósitos, há 56,9 escudos emprestados a clientes e a render juros para a banca, o que deixa margem para conceder mais créditos e para suportar eventuais flutuações nas poupanças dos clientes.
Para além disso tudo, o sistema bancário cabo-verdiano continua ainda a ter dois sistemas para fazer a regulação: a reserva de capital e as disponibilidades mínimas de caixa (DMC). Em 2021, as DMC situavam-se nos 10%, muito acima do 1% existente na banca europeia, para não falar dos EUA onde essa exigência deixou de existir. E, quando um banco tem 10% das reservas em dinheiro, há 10% de reservas que não perdem valor.
As DMC, conjuntamente com a reserva de capital, são amortecedores muito grandes perante as perdas que o banco possa sofrer. Já quando as reservas obrigatórias são inexistentes ou se situam em 1%, é muito mais difícil fazer face às perdas, porque tal nível de reservas permite aos bancos criar muito mais crédito e muito mais depósitos, o que coloca um problema acrescido.
Mas também, Cabo Verde é um dos poucos países, dentre aqueles com um estágio de desenvolvimento mais ou menos similar, que já tem constituído e operacional um Fundo de Garantia de Depósitos (FGD), enquanto um elemento estratégico crítico de garantia da estabilidade do sistema financeiro nacional.
Orgulho-me de ter presidido o CA do BCV, na qualidade de Governador, que apresentou ao Governo o projeto de lei que acabou sendo aprovado pela Assembleia Nacional. O FGD constitui, a par da construção da Nova Sede do BCV (NS), dois marcos indeléveis da nossa passagem pela instituição. No entanto, é de elementar justiça realçar os contributos de qualidade, aportados pelos colaboradores do BCV, para que tal fosse possível. Refiro-me, em especial, aos quadros do Banco afetos ao ex. Gabinete de Resolução e à ex. Comissão de Acompanhamento da Construção da NS. A todos eles, o meu reconhecimento e muito obrigado pelo empenho, competência e dinamismo demonstrados.
Todavia, a banca nacional não tem só aspetos relativamente positivos. Ela tem também as suas vulnerabilidades. E isso foi reconhecido no REF2021 através da seguinte constatação: “Os resultados dos ‘stress test’ confirmam a elevada vulnerabilidade do sistema bancário à materialização do risco de crédito setorial, em situações de ‘stress’, e a particular exposição ao risco de concentração da carteira relativamente aos maiores devedores. Os mesmos resultados apontam, contudo, para a baixa exposição ao risco de liquidez.”
Termino, dizendo que as autoridades nacionais (Governo, BCV) têm de estar atentas. Ora, hoje existe uma interdependência entre todas as economias abertas e Cabo Verde é uma pequena economia aberta. E qualquer situação de crise financeira que acontece lá fora terá, de um modo ou de outro, as suas repercussões internamente, porquanto o país está muito exposto em relação à Europa.
Praia, 07 de abril de 2023
*Doutor em Economia