Por: António Pedro da Costa Delgado*
Venho seguindo com pesar, inquietação e espanto o desenrolar da situação no Hospital Batista de Sousa/HBS, segunda estrutura hospitalar de referência do país, noticiado pela imprensa, da morte intempestiva de sete bebés em menos de um mês no seu serviço de Neonatalogia/ Maternidade. Manifesto o meu profundo pesar pela perda de cada uma das vidas recém-nascidas e envio um abraço de consolação às famílias respetivas pela dor da perda e consequente desconforto. Peço-lhes desculpas por remexer nesse assunto doloroso, que é, também um problema público de saúde-doença e faço-o com a intenção de contribuir para o seu eventual esclarecimento e prevenção de novos casos. É uma verdade dolorosa que essas crianças jamais serão recuperadas, mas temos de tudo fazer para que outras não sigam o mesmo caminho!
O anúncio do Sr. Primeiro-ministro de Cabo Verde na TCV, indicando a data e a forma de apresentação pública do relatório sobre as mortes noticiadas das crianças recém-nascidas na maternidade do HBS, despertou, com espanto, a minha atenção sobre o porquê um facto grave, é certo, mas do domínio técnico-científico de saúde, merecera uma atenção especial do Chefe do Governo, dando-lhe um cunho político e, muito provavelmente, condicionado o ato de trazer ao conhecimento público o ponto da situação. Que mensagem o Sr. PM quis passar?
A conferência de imprensa, a 05 de junho de 2023, da comissão encarregue do inquérito sobre a situação em pauta decorreu como anunciada. Não pude lê-la! Terá sido publicada? Também não encontrei cópia no site da TCV! Ela provocou várias reações, muitas delas discordantes, sobretudo pela forma despida de sentimentos de humanidade perante as crianças falecidas, ou de consolo e condolências às famílias, tecnicamente sem o cuidado para dar más notícias e utilizando uma terminologia médica, estrito sensu na apresentação da tarefa.
Na cadeia das reações, terá ficado o seu ponto alto, parece-me, o pronunciamento do Sr. Presidente da República, lamentando o ocorrido e exortando para a realização de um “inquérito independente” com vista a apurar todos os aspetos capazes de esclarecer esses fatídicos casos. Compreende-se que o Sr. Presidente da República, perante reclamações e manifestações de insatisfação diversa e suas próprias hesitações e questionamentos, tenha sentido a necessidade de vir à comunicação, dez dias depois do pronunciamento do Sr. PM, no papel de influenciador para a bondade do funcionamento dos diversos setores da sociedade cabo-verdiana, clamar pelo cabal esclarecimento e correção da situação e pedir uma investigação independente.
Entende-se a reação do Sr. Secretário de Estado Adjunto da Ministra da Saúde, logo de seguida para, certamente, justificar a independência da comissão, mas acabou por lançar mais dúvidas sobre a verificação dessa condição importante. Teve o condão, contudo de incitar novas investigações, agora no sentido se determinar as causas dessas mortes. Normal e bem que o tenha feito. Apenas este não se referiu à criação e composição de nova(s) comissão(ões) de investigação, aos termos de referência lógicos nem, tampouco, mencionou um prazo para os primeiros resultados virem à luz quanto à grande questão que colocou, a das ‘CAUSAS’ da sepse.
Muitos ainda aguardam pela publicação das conclusões e das medidas preventivas e corretivas a tomar, seja em termos de saúde, seja as que resultem de investigações outras de instituições, para estarmos mais atentos e prevenir a repetição de algo semelhante, incluindo o apuramento das responsabilidades. Refiro-me, nomeadamente às entidades políticas, às estruturas de administração do HBS, às instituições públicas conexas ao problema, aos cidadãos comuns interessados com destaque para os familiares das crianças vitimadas, aos profissionais de saúde e de outras áreas afins, para que cada um esteja ciente dos autênticos elementos descobertos e possamos todos, contribuir para uma vigilância da nossa saúde e para soluções adequadas ao nosso país, sem uma preocupação obsessiva para encontrar culpados. Se existirem e lá onde existirem, devem ser justamente responsabilizados pelos erros, omissões e consequências, sem titubeio.
Entretanto, enquanto se espera sem desesperar pela publicação desses produtos, a minha consciência profissional e de cidadão deste país obriga-me a não me calar perante as evidências e dúvidas, a ponderar, destacar alguns aspetos, interrogações, caminhos e partilhá-los, como subsídios para uma solução e como exigência cidadã para que as coisas sejam bem-feitas.
A conferência de imprensa da comissão, suponho nomeada pelo Sr.ª Ministra da Saúde e composta por profissionais de reconhecida competência e respeitáveis nas áreas clínicas respetivas, apresentou um diagnóstico clínico de “Sepses”, do qual não tenho razões para duvidar. Só que a ocorrência, em menos de um mês, de sete (7) casos com o mesmo diagnóstico e em recém-nascidos todos considerados prematuros, sugere uma anormalidade catastrófica que os obrigava a apontar uma análise epidemiológica, para além da clínica, que interpelasse a uma avaliação das causas do fenómeno e indiciasse subsequentes ações e intervenções. Não ouvi isso!
Tudo faz pensar, até prova em contrário, que se esteve perante uma infeção hospitalar, o que carecia de uma investigação urgente e sobre este ponto nada constou.
Não houve uma ponderada preocupação e atenção para traduzir “por miúdos” a terminologia médica e evitar confrontar os ouvintes interessados na conferência, sobretudo os não profissionais de saúde ou eruditos, os familiares feridos na sua suscetibilidade e cidadãos comuns, com uma terminologia erudita e de complicada interpretação, que ouvi. Mas não ouvi uma palavra de conforto e de pesar pelo sofrimento de famílias e de uma menção respeitosa aos seres humanos que perderam a vida ao nascer. Não houve a demonstração de uma cultura de humanização na saúde, muito menos a manifestação do saber dar más notícias.
Pode até parecer, que se queria, a todo o custo nessa conferência, apresentar uma saída mascarada com uma terminologia complexa, para uma situação grave, mas relativamente rara felizmente, acentuando a prematuridade como uma “fatalidade divina inevitável”, na tentativa de desculpabilizar a instituição de saúde, limpar sua imagem oficial e resolver o assunto duma assentada. Gostaria de ter ouvido, de forma educativa à atenção desse público auditor, o significado dos termos utilizados e bastava ter ido ao google para explicitar[], [].
Perante o diagnóstico de sepses e a ocorrência de um número de casos acima da média, como foi verificado no HBS no curto espaço de um mês, a abordagem correta teria sido de se considerar-se estar perante uma EPIDEMIA e a atuação certa consequente seria para combater a causa (ou causas) da epidemia depois de conhecida, prevenindo a ocorrência de mais infeções. Alguns dir-me-ão que se trata de um ‘surto epidémico’ e responderei que é apenas querer ‘adoçar a pílula’, a abordagem será sempre a mesma;
No lidar com as doenças infeciosas há dois elementos essenciais a reconhecer – o agente e o vetor. Qual terá sido o agente patogénico identificado que infetou as sete (7) crianças, recém-nascidas de mães diferentes, sublinho? Como esse agente patogénico passou de uma criança à outra, qual (ou quem) foi o vetor que o fez circular na sala de neonatalogia? Qual é o nível de desempenho desse departamento em termos de vigilância epidemiológica e de biossegurança[]?
Consultei o Relatório Estatístico de Saúde 2020[] importante documento regularmente publicado pelo Ministério da Saúde, embora com atraso, que traz a cada ano, uma série de informações referentes aos dez anos anteriores. Embora as informações sejam apresentadas no total do país por ano, e não haja informações detalhadas por estruturas, depreende-se que, nos dez anos que antecederam, situação semelhante a esta não foi registada. Não esqueçamos os casos verificados no HBS, no início deste ano, de que pouco se falou.
Nessas circunstâncias, recomenda-se uma investigação eminentemente epidemiológica e urgente e espero que seja o que vem sendo feito no domínio da vigilância epidemiológica. Exige-se investigações de outros departamentos e setores do Estado, que se mostrarem necessárias, para apurar diversas responsabilidades por falhas e omissões.
Até agora não tive acesso a qualquer pronunciamento da Direção do HBS, seja a que acabou sendo demitida, seja da nova que foi empossada, entidade responsável em primeira mão por tudo o que se passa nesse hospital central, autónomo, na dependência direta do ministro da saúde e nos diga o que um inquérito administrativo, ou o que couber, indicia no departamento onde ocorreram os factos escalpelando-os, doa a quem doer.
A posição da Entidade Reguladora INDEPENDENTE da Saúde/ERIS é, no mínimo, escabrosa e indigna! Ao dizer que se absteve de realizar as suas obrigações porque confiava na comissão criada pelo MS (ou algo parecido) assume hipotecar a sua independência e abdicar das suas competências e obrigações, fundamentos para os quais foi criada, sendo certo não ter sido criada para confiar ou desconfiar!
As ordens dos profissionais de saúde, de médicos, enfermeiros, psicólogos, farmacêuticos (…) ainda não se fizeram ouvir, do ponto de vista técnico, deontológico, ético e de humanização, em defesa de um serviço de saúde de elevada qualidade e respondendo, cada vez mais, às necessidades dos cidadãos e garante do direito à saúde a todos.
As entidades políticas, no meu entender, em vez de criarem um ciclo de ações e reações, à partida, tornando-o um facto político, entendo que deveriam ter reservado a sua intervenção para fases posteriores à sequência técnico-científica de apuramento dos factos, na prossecução de um cabal esclarecimento da situação, do apuramento de eventuais responsabilidades e indicação de medidas de política de saúde necessárias. A Sr.ª Ministra de Saúde não se terá manifestado publicamente. O pronunciamento do Chefe do Governo, pareceu-me inoportuno porque cedo demais e ao emprestar um cunho político a uma questão iminentemente técnico-científica, cuja correta resolução cabe dentro de medidas de saúde pública importantes para o futuro imediato do setor saúde. Abriu o caminho e vieram as outras reações.
Entramos já em uma nova era de epidemias, que nos vão apoquentar a vida nos próximos tempos, e cresce a exigência do aprimoramento da capacidade, da competência e da disponibilidade dos sistemas e serviços de saúde e de todos os intervenientes nos ODS, os mais e os menos envolvidos, cada um no seu ramo, para encarar as situações graves e estarmos todos preparados com argúcia, ponderação e sabedoria, para prevenir e responder aos flagelos que nos ameaçam. O mais importante é, em diálogo permanente, perspicaz e positivo, encontrarmos soluções e aprender as lições que a prática nos dá, a bem da Nação.
S. Vicente, 06 Setembro 2023
* Médico, Mestre em Saúde Pública, PhD em Saúde Internacional