Por: João Serra*
Os cabo-verdianos sofreram, em 2022, uma perda real nos seus rendimentos mensais, em cerca de 8%, correspondente à taxa média de inflação registada no ano passado. Trata-se do valor da inflação mais alto dos últimos 25 anos, só superado pelos 8,7% em 1997. E a inflação elevada contribuiu para uma forte erosão do poder de compra das famílias, uma vez que não houve aumentos dos salários e das pensões para compensar a brutal subida do índice de preços no consumidor (IPC).
Na verdade, o custo de vida agravou-se em várias frentes durante o ano de 2022. No entanto, é nos preços da alimentação e das bebidas não alcoólicas que o aperto é mais forte. Com efeito, os preços no consumidor desse grupo de bens considerados essenciais tiveram, no mês de dezembro do ano passado, uma variação homóloga de cerca de 16% face ao mês de dezembro 2021, de acordo com o INE.
Contrariando as expetativas, a inflação continuou a acelerar em janeiro de 2023, mantendo-se num nível historicamente elevado. Também segundo o INE, nesse mês, a taxa de variação mensal do IPC foi de 8,3%, que compara com 0,9% registada em janeiro de 2022. Tal qual no mês de dezembro de 2022, as classes que se destacaram com maiores variações positivas foram as da alimentação e bebidas não alcoólicas, com uma taxa de variação mensal de 17,6%.
Ou seja, a grande diferença na inflação está no segmento dos produtos alimentares não-transformados e nas bebidas não alcoólicas, onde a variação é mais acentuada. Aqui há um enorme agravamento em relação ao que se passava em janeiro de 2022, altura em que a diferença face ao mês anterior (dezembro de 2021) era de 1,8%.
Como escrevi neste jornal, a perda de poder de compra é, geralmente, maior nas famílias mais carenciadas, fundamentalmente pelas seguintes razões. Por um lado, quem tem rendimentos mais baixos tende a dedicar proporcionalmente uma parte maior das verbas disponíveis ao consumo de bens básicos. Os gastos mais secundários vêm depois de satisfeitas as necessidades mais prementes. Em decorrência, o aumento de preços de determinados bens e serviços como, por exemplo, dos alimentos, energia, transporte e habitação, tende a reduzir o poder de compra.
Por outro lado, a subida dos bens essenciais adquiridos pelas famílias mais pobres tem sido, nos últimos tempos, muito superior à taxa de inflação verificada. Se as famílias da classe média podem substituir bens e serviços que sejam mais caros por outros mais baratos, as famílias mais pobres já compram os bens mais baratos existentes no mercado. Assim, essas pessoas não têm alternativa à subida de preços que, no caso de alguns alimentos essenciais, terão ultrapassado os 50% em 2022.
Para 2023, as expectativas iniciais apontam para uma desaceleração na velocidade de crescimento dos preços. Todavia, isso significa apenas que, eventualmente, os preços vão aumentar menos e não que vão baixar. Pois, é preciso perceber que a inflação indica o valor da subida generalizada de preços face ao período homólogo. Assim, mesmo que nos próximos meses, esse indicador baixe para perto de zero, os produtos continuem mais caros do que em 2022, na medida depois a comparação será feita com o mesmo mês do ano passado, em que os preços já estavam mais altos do que em 2021. Seja como for, vamos ter inflação encima de inflação.
Mas, se a inflação dói (e de que maneira) às famílias, está, claramente, a favorecer os cofres do Estado. É que a inflação é benéfica para o Estado enquanto credor tributário. E quanto mais a inflação vai subindo acima das previsões, mais dinheiro entra nos cofres públicos.
Tomemos como exemplo o IVA. Se o valor base dos bens e serviços aumenta e a taxa de imposto permanece inalterada, naturalmente esta vai incidir sobre um valor base mais elevado. Consequentemente, um bem que custava 300 escudos sem IVA e que passa a ser vendido por 400 escudos sem IVA, uma vez somado o valor do IVA (a uma taxa de 15%) ao valor final de venda ao consumidor, o Estado irá arrecadar, adicionalmente, mais 15 escudos (60 escudos – 45 escudos).
Na verdade, segundo o Relatório da Conta Provisória do Estado de 2022, publicado pelo Ministério das Finanças (MF), no mês de fevereiro de 2023, a receita do IVA aumentou, entre janeiro e dezembro, 37,8% face ao mesmo período de 2021, muito acima da previsão orçamental, corrigida no âmbito do OE2023, de 15,3%.
Mas, não é só o IVA que cresceu fortemente em 2022 face a 2021 e por comparação com a previsão do Governo. Também os demais impostos indiretos, que incidem sobretudo sobre os bens, tiveram fortes aumentos em 2022 relativamente a 2021. São os casos do imposto sobre o consumo especial e do imposto sobre as transações internacionais, com crescimentos de 56,6% e 27%, respetivamente.
No cômputo geral, o total dos impostos arrecadados em 2022 aumentou mais de 10 mil milhões de escudos (29,8%) relativamente a 2021 e mais de 5,8 mil milhões de escudos (15,2%) face ao total da arrecadação reprogramada pelo Governo para 2022. Assim sendo, pode estimar-se que a inflação contribuiu com, pelo menos, 10% para o aumento dos impostos em 2022. Já a parte restante do aumento das receitas fiscais deveu-se à retoma da atividade económica, que terá sido muito maior do que a inicialmente prevista.
Para mitigar os efeitos da guerra na Ucrânia, na vida das famílias e das empresas cabo-verdianas, o Governo tem adotado medidas para estabilização de preços dos produtos alimentares, do setor de eletricidade e combustíveis.
O custo total para implementação dessas medidas de mitigação terá sido de 80 milhões de euros (cerca de 8,8 mil milhões de escudos), a serem financiados pelos parceiros de desenvolvimento de Cabo Verde, de acordo com dados do MF.
Desconhecemos quanto desse montante foi realmente mobilizado e gasto, na medida em que não dispomos de dados para o efeito. De todo o modo, mesmo que gasto na totalidade, o que dá cerca de 160 euros de despesa “per capita”, pareceu-nos um valor relativamente modesto. Por um lado, quando comparado, “mutatis mutandis”, com o que outros países gastaram. E, por outro lado, quando se considera a folga orçamental obtida com o aumento extraordinário das receitas fiscais proporcionado pela inflação – uma espécie de “windfall tax” (“impostos vindos com o vento”) a favor dos cofres do Estado.
Em termos de gastos com as medidas de mitigação, tomemos, por exemplo, Portugal, que a nível europeu fica pior classificado nas contas das despesas “per capita”, em 15.º lugar, ainda assim com 862 euros por cidadão, que compara com Luxemburgo, que é o país europeu que mais gastou por cidadão (3.765 euros), de acordo com a análise do instituto Bruegel (fev.2023).
Outrossim, é preciso considerar que o valor previsto para o financiamento das medidas de mitigação não saiu das receitas fiscais, mas terá sido obtido via ajuda pública ao desenvolvimento.
Como já vimos, o valor pago em comida disparou e atingiu um recorde puxado pela inflação galopante. Isso significa que o nosso dinheiro, na verdade, vale menos e continuará valendo cada vez menos.
As famílias da classe média já foram forçadas a fazer um corte no volume de comida que todos os meses adquirem, para além de cortes em quase tudo que não seja absolutamente necessário.
As famílias mais pobres, que vivem em agregados familiares com rendimentos diários “per capita” iguais ou inferiores a 200 escudos, não podem sequer cobrir um cabaz tão básico de produtos essenciais, pelo que estão a atravessar grandes dificuldades a nível da alimentação.
O Governo, praticamente, já acabou com todas medidas de mitigação da crise inflacionista implementadas em 2022.
E perguntam as famílias: com a folga orçamental proporcionada pela inflação, não seria possível fazer um pouco mais para aliviar o sofrimento dos cabo-verdianos, redistribuindo-a pelos cidadãos mais afetados pelas pressões inflacionistas?
Praia, 07 de março de 2023
*Doutor em Economia
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 810, de 09 de Março de 2022