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Santiago

Carla Fernandes sobreviveu à VBG quase que por milagre

Carla Fernandes é uma jovem, da Achada Grande Frente, sobrevivente de Violência Baseada no Género (VBG), que relata, ao A NAÇÃO, a sua triste e incrível história. No início deste ano, esteve quase um mês, entre a vida e a morte, no hospital da Praia, depois de ter uma faca cravada na cabeça, desferida pelo seu então companheiro. Sarena, individuo possessivo, foi condenado a 20 anos de prisão no passado dia 23 de Outubro.

31 de Janeiro de 2023 é certamente o dia mais infeliz dos 32 anos de existência de Carla Fernandes, residente na Achada Grande Frente. Para quem teve uma faca cravada na cabeça, espetada pelo companheiro, dificilmente esta jovem mãe, de uma filha menor, seria uma sobrevivente capaz de contar a tragédia por que passou e da qual ainda procura recuperar-se, com a ajuda dos familiares, médicos e do ICIEG. 

 “No dia em que tudo aconteceu, eu estava na minha casa com a minha filha de 14 anos, que se estava a preparar para ir à aula de educação física. Ainda era cedo quando a porta bateu. Eu sabia que era ele, o Sarena, meu companheiro na altura. Não me lembro de ter tido nenhuma discussão com ele no dia anterior. Logo que abri a porta, ele começou a esfaquear-me. Primeiro no ombro e depois na cabeça. Depois disso não me lembro de mais nada, até acordar no hospital Agostinho Neto”, recorda Carla, com tristeza e lágrimas nos olhos, nove meses após o sucedido. 

“Segunda vida” para ser a voz de outras vítimas

Entre as sequelas, tanto físicas como psicológicas, com histórico de uma Acidente Vascular Cerebral (ACV) que paralisou o seu lado esquerdo, a nossa entrevistada, que trabalhava como empregada doméstica, ficou praticamente debilitada. Depois de 21 dias hospitalizada, não lhe restou outra saída senão adaptar-se à uma nova realidade: deixar de ser pessoa independente, para regressar a casa da mãe e ser cuidada. A única rotina fora de casa têm sido as consultas e sessões de fisioterapia. 

 “Desde que saí do hospital, tornei-me um peso para a minha família. Se não me darem de comer, não como; se não me lavarem, não me lavo. A recomendação médica é repouso total, então fico com bastante tempo para pensar na minha vida, em tudo que me aconteceu”, lamenta. 

Depois de tanto pensar, hoje, Carla acredita que Sarena “encomendou” a sua morte. Mas Deus “assim não entendeu”, para que ela possa ser a voz de muitas outras mulheres, cabo-verdianas, que perderam a vida pelas mãos dos companheiros, enfim, para que a sua tragédia possa servir de exemplo a muitas outras mulheres que possam estar “na mira” de igual violência, sem se darem disso conta.

 “Sarena não era má pessoa”, diz ela do ex-companheiro, Raúl Barros, de 39 anos de idade. “O problema ele sempre foi ciúme… Ele tinha ciúme por tudo e por nada, e quase todas as nossas brigas eram por causa disso. E eu considerava pouco”, afirmando que essa não foi a primeira vez que tinha sido vítima de VBG. 

“Já tinha suportado outras agressões. Nos primeiros tempos, levava tudo na brincadeira. Depois foi ficando mais frequente. Mas nunca esperei que isso viria a acontecer”, revela, assegurando que chegou a registar entre duas e três queixas nas autoridades. 

 “Da última vez que ele foi chamado, fomos nós os dois e ele recebeu avisos de que corria sério risco de ser preso por causa do que andava a fazer comigo. Inclusive, isso aconteceu nos últimos dias antes de ele me ter esfaqueado. Eu mesma não confiava que ele fosse capaz de fazer o que fez comigo”. 

Esta é, segundo os entendidos, a última fase dos processos de VBG, Violência Baseada no Género, “depois de muitas outras que antecedem a agressão mais grave, muitas vezes resultando-se em mortes” (ver a caixa com Jacob Vicente, na página E05). 

Hoje, em situação de fragilidade, a depender dos familiares para as coisas mais básicas, Carla Fernandes diz que só lhe resta aprender com os erros que cometeu. Apesar da dor e do sofrimento, admite que ter sobrevivido àquele 31 de Janeiro é “mais uma oportunidade”, “concedida por Deus”, para ela tocar a vida para frente, “mesmo sabendo das dificuldades que preciso enfrentar”. 

De todos os sonhos, voltar a andar

Questionada sobre os seus sonhos, Carla diz que sempre teve muitos, mas que depois do infortúnio de há nove meses, hoje, todos eles se resumem em apenas um: “Tudo o que eu mais quero é voltar a andar”. 

E explica, após um longo suspiro: “Quero voltar a ter a minha liberdade, cuidar de mim, da minha filha e voltar para a minha casa. Não quero ser um peso para a minha mãe e os meus irmãos. Quero ser a pessoa que sempre fui… independente. E enquanto este dia não chega, estou nas mãos de Deus”.

Mais uma boca, menos uma mão…

Em representação dos familiares, Zé Lito Fernandes, um dos irmãos de Carla, avançou ao A NAÇÃO que a situação financeira da família não permite ajudar da melhor forma na recuperação da irmã, mas que mesmo assim cada um vai fazendo o que pode. 

“Graças ao apoio do ICIEG, ela tem conseguido fazer fisioterapia. É uma grande ajuda. Mas, existem outras despesas; por exemplo, ela vai para a fisioterapia de segunda a sexta e, devido ao seu estado, tem de ir e vir de táxi. São 600 escudos por dia”, afirma Zé Lito. Contas feitas, são 12 mil escudos, uma boa parte do seu salário, sendo ele a única pessoa que trabalha “formalmente” numa casa em que a família é numerosa. 

Conforme avançou, são 17 pessoas debaixo do mesmo tecto, inclusive a Carla, financeiramente sob os cuidados dele, enquanto segurança privada, mas também da mãe que vende alguns produtos em casa, uma irmã que faz refeições quentes para vender, um irmão e um sobrinho que são pescadores.

Dentre os apoios, o que a própria Carla considera “mais urgente” é o acompanhamento psicológico. “Tem sido complicado fazer fisioterapia. Às vezes chateio-me e sinto que estou sem paciência, tenho a impressão que a recuperação está a caminhar de forma muito lenta. A minha família tem-me ajudado, assim como a família do próprio Sarena. Mas não tem sido fácil”, justifica a nossa entrevistada.

Zé Lito

Familiares arrependidos por não terem “metido a colher”

Quando aconteceu, o caso de Carla Fernandes rapidamente se propagou pelas redes sociais. Zé Lito, o seu irmão mais jovem, recorda: “Nesse dia, logo pela manhã, saí preocupado para saber o que havia acontecido na minha rua e haviam pessoas a gritarem que ‘Sarena dja mata Carla’. Eu e o meu irmão mais pequeno corremos para a casa da Carla e já tinha chegado a Polícia. Os agentes quiseram impedir-nos de entrar, mas não conseguiram. Logo que entrámos, vimos muito sangue e foi horrível constatar o que tinha ouvido entre os gritos. O mais triste foi saber que já tínhamos muitos sinais desta tragédia sem ninguém fazer nada”. 

Segundo Zé Lito, a família tinha conhecimento de alguns conflitos entre Carla e Sarena, e sabia, inclusive, de queixas de VBG registadas nas autoridades. 

“Eu, particularmente, já tinha chamado a atenção do Sarena, algumas vezes. Mas, como eles eram um casal, eu como irmão, procurava não me intrometer na relação deles, partindo do princípio de que podia aconselhar-lhe, mas nunca decidir pela Carla, porque a vida era dela, na briga entre um homem e a mulher quem está fora não deve meter a colher”.  

Zé Lito conta que, além disso, por causa da relação atribulada dela e do Sarena, Carla vinha se afastando dos parentes, sem revelar situações mais complicadas de violência que enfrentava com o companheiro. “Sentimos o afastamento, mas não questionamos, até o dia em que o pior aconteceu”, afirma.

 Não esperar por um pedido de socorro “com palavras”

Hoje, diante da sua experiência, Zé Lito tem dúvidas se não devia ter agido com mais empenho. Para ele, a lição que fica é para “estarmos sempre atentos às pessoas à nossa volta, para oferecer ajuda sem esperar um pedido de socorro com palavras”.

 “Hoje Carla está aqui connosco e só nos resta agradecer a Deus por ela estar viva. Ela é uma pessoa muito religiosa e acho que foi a sua fé que a salvou. Uma pessoa fraca não suportaria tudo o que a minha irmã vem suportando”, garante.

Por parte da família, o nosso entrevistado garante ainda que Carla está a ter todo o apoio possível, sobretudo emocional – “aquele moral de sempre” – para que ela possa voltar a ser “aquela pessoa alegre e divertida que sempre foi”.

Confira a reportagem na íntegra na edição nº 844 de 2 de Novembro

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