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Legitimidades e categorizações antropológicas O conceito de Etnia é um recurso político?- I*

Por: Luís Kandjimbo**

O filósofo ganense Kwame Anthony Appiah (na imagem) vai mais uma vez ser nosso interlocutor, a propósito do capítulo de um livro «Explorations in African Political Thought. Identity, Community, Ethics», (2001), [Explorações do Pensamento Político Africano. Identidade, Comunidade e Éica], organizado pelo etíope Teodros Kiros. O capítulo tem o seguinte título: « A Identidade Étnica como Recurso Político».

No referido texto, Kwame Anthony Appiah levanta um problema que releva da Filosofia da Antropologia. Trata-se da legitimidade do poder tradicional e da identidade étnica dos sujeitos que a suportam na comunidade Asante ou Ashanti do Ghana. Neste sentido, é o conceito de etnia, enquanto categoria, que importa colocar no centro das atenções. As suas propriedades permitem referir os elementos que estruturam o poder tradicional dessa comunidade. Aprofundarei a leitura do texto de Kwame Appiah, no texto que se segue. 

Filosofia da Antropologia

A etnia e seu esquema conceptual é um tópico que sugere o cruzamento de outras perspectivas. Por isso, antes de qualquer abordagem que vise expurgar os conceitos antropológicos das suas cargas semânticas, revela-se necessário um exame crítico das escolas, suas teorias e respectivos autores, bem como a avaliação das suas projecções em África.

Verificaremos mais adiante que a problematização do conceito de etnia e outros conexos, no contexto africano, requerem o domínio das perspectivas filosóficas, dos debates, dos fundamentos e das escolas dominantes, ao longo da história. Um dos problemas que abala a prática da Antropologia, mesmo no nosso continente, diz respeito à sua dimensão ética.  Por outro lado, a constituição da Associação Pan-Africana de Antropologia que teve lugar em 1990, nos Camarões, viria atestar os ecos contestatários contra os fundamentos que sustentavam as escolas dominantes da antropologia ocidental, nomeadamente, a norte-americana, a britânica e a francesa. Como se sabe, a história da Antropologia é uma narrativa sobre uma ciência social que, ao serviço do colonialismo, exportou seus conceitos e aparatos teóricos às civilizações não-ocidentais.

O evolucionismo é uma das correntes inaugurais do pensamento antropológico ocidental cujas bases são constituídas pelos princípios da teoria da evolução das espécies de Charles Darwin (1809-1882), a que se juntam o norte-americano Lewis Morgan (1818-1881), o britânico Edawrd Taylor (1832-1917). O culturalismo americano, o funcionalismo britânico, o estruturalismo francês, bem como as correntes marxistas e dinâmicas representam os filões do desenvolvimento da Antropologia ocidental. Tudo começa sob o signo do positivismo e da obsessão pelo método empírico. Por isso, justifica-se que as nossas interrogações comecem ou recomecem com a revisão do aparato teórico e conceptual que torne possível a obtenção de respostas adequadas. 

Etnia e antropologia colonial

O conceito de etnia e as categorizações que dela derivam têm origens, etimologicamente, do termo grego, «ethnos», que significa povo, nação. O sentido que adquirem na sua aplicação às realidades africanas corresponde a invenções tardias dos colonialismos europeus. Por isso, nas línguas e tradições europeias, a sua história permite estabelecer diferenças no vocabulário e no seu uso. Em alguns casos serve para designar igualmente as tribos, noutros casos o seu referente é a nação. De um modo geral, é uma unidade lexemática que no dicionário antropológico ocidental é reservada a povos e civilizações não-ocidentais.

A formulação escrita dessa unidade lexemática, «ethne» ou «ethnie», ocorreu em França. Foi o francês Georges Vacher De Lapouge (1854-1936) que a usou pela primeira vez em 1896, no seu livro «Les Sélections Sociales» [As Selecções Sociais],  que reúne as lições do seu curso de Ciência Política proferido da Universidade de Montpellier de 1888  a 1889. Com uma conotação classificatória eufemística, atenuava-se o efeito excludente da categoria darwinista de raça que, por sua vez, colocava no topo da hierarquia o eugenismo do que se veio designar por «raça branca». 

Em matéria de disciplinarização do conhecimento, o conceito de etnia tornou-se operatório em domínios como a Etnologia, a Etnografia e a Antropologia. Em virtude de terem estado ao serviço do colonialismo, imputa-se aos seus especialistas a responsabilidade pelos efeitos decorrentes do eurocentrismo linguístico. Para o filósofo e cientista político queniano Ali Mazrui (1933-2014) é daí que emanam outros cinco sub-tipos de eurocentrismos: 1) eurocentrismo classificatório; 2) eurocentrismo semântico; 3) eurocentrismo ortográfico; 4) eurocentrismo terminológico; 5) eurocentrismo demográfico. Por essa razão, nas ciências sociais há correntes que, presentemente, consideram a Antropologia como disciplina perfeitamente dispensável, podendo falar-se já de uma «era pós-antropológica».

Em Angola, a história da Antropologia colonial comporta um acervo relativamente abundante de trabalhos que revelam o seu carácter instrumental. Ilustram-no os trabalhos publicados durante a década de 60 do século passado. Por exemplo, Mesquitela Lima (1929-2007), «Etnografia Angolana (Considerações acerca da sua Problemática Actual)», 1964 e de Carlos Lopes Cardoso (1933-1984), «Carta étnica de Angola», 1962-1963.    

Portanto, o conceito de etnia em África foi um recurso político no período colonial e, ao que parece, continua a sê-lo, no período que se segue às independências políticas, isto é, há seis décadas que correspondem ao surgimento e consolidação do Estado moderno de inspiração ocidental. 

Assim, por comodidade de linguagem, foram adoptados as cinco variantes do eurocentrismo, especialmente o 4), o eurocentrismo terminológico. O vocabulário político africano vem revelando a apropriação e uso de conceitos como etnia, étnico e etnicidade, longe de qualquer suspeita e sem os submeter a qualquer tipo de depuração semântica.

 Etnias ou ex-nações? 

A história contemporânea de Angola inscreve-a nas seis décadas que correspondem ao surgimento e consolidação do Estado moderno. Quando em 11 de novembro de 1975 proferiu o discurso da proclamação da independência de Angola, Agostinho Neto (1922-1979) lançava as sementes para a tematização de um pensamento sobre a diversidade étnica e a unidade nacional. Ele afirmava o seguinte: «Respeitamos as características de cada região, de cada núcleo populacional do nosso País, porque todos de igual modo oferecemos à Pátria o sacrifício que ela exige para que viva».

Agostinho Neto retomaria o tema sucessivamente, em outras ocasiões. Na tomada de posse dos corpos gerentes da União dos Escritores Angolanos, em Janeiro de 1979, enunciou aí a sua teoria das ex-nações. No primeiro momento, reconhecia a existência de um Estado sem nação: «Mas, no meu entender, será necessário aprofundar as questões que derivam da cultura das várias nações angolanas, hoje fundidas numa […] Como o botânico, ou o zoólogo, o cientista ou o filósofo, reunamos os elementos todos, analisemos, e cientificamente, dentro dos próximos dois anos, apresentemos os resultados. E chegaremos à conclusão que Angola tem uma característica cultural própria, resultante da sua história ou das suas histórias».

No segundo momento, valoriza a dimensão espiritual das ex-nações que merece ser objeto da atividade hermenêutica dos intelectuais: «Se se prolonga a atitude alheia em relação ao nosso povo, não será possível interpretar o «espírito» popular, saído do estudo e da vivência. Narrar a interpretação política do momento é fácil, mas chegar ao íntimo do pensamento de várias ex-nações é muito menos fácil».

O que para Agostinho Neto são as ex-nações corresponde ao que uma certa Antropologia designa igualmente por etnias. A categorização das comunidades populacionais antigas supõe a existência de um Estado cujo território não coincide com as fronteiras da população que o habita. No entanto, ergue-se sobre as ruínas de uma ideia de soberania preexistente. Agostinho Neto entendia que o Estado angolano não era monoétnico e, por isso, não podia ser um Estado-nação. Admite, no entanto, a possibilidade de um Estado nacional que se caracteriza pelo lugar que ocupa no «processo de incorporação burocrática», através do qual se realiza a homogeneização cultural, o projecto de nação fundida numa só, a unidade nacional. A determinação dos fundamentos desse projecto devia ser obra dos intelectuais porque está subjacente a necessidade de se definir a natureza da relação que se estabelece entre o intelectual e as ex-nações. Trata-se de uma tarefa que incumbe aos intelectuais. A resposta concentra-se na compreensão do sentido das seguintes proposições: «Narrar a interpretação política e chegar ao íntimo do pensamento de várias ex-nações». 

Etnias têm história 

A década de 80 do século XX testemunhou a publicação de obras que são reveladoras do tipo de inquietações que palpitavam nos meios académicos europeus. Por exemplo, Jean-Loup Amselle et Elikia Mbokolo organizaram «Au Cœur de l’Ethnie. Ethnies, Tribalisme et État en Afrique» (1985) [No Meandros da Etnia. Etnias, Tribalismo e Estado em África]. No ano seguinte, uma equipa de historiadores da Universidade de Paris I, publicou «Les Ethnies Ont Une Histoire», (2003) [As Etnias têm História] reuniu as comunicações apresentadas a um mesa redonda internacional realizada em 1986. Na introdução ao livro em que se reúnem as comunicações dessa mesa redonda, Jean-Pierre Chrétien escreve: «O conceito veiculado pela palavra ‘etnia’ situa-se algures entre os grupos de parentesco e as colectividades organizadas em Estados». Mas recomenda que no contexto africano que o conceito seja submetido a uma abordagem preliminar que consiste em compreender e criticar o seu emprego nos discursos africanistas.

No vigésimo nono capítulo do livro «As Etnias têm História», Angola suscita interesse do historiador britânico Gervase Clarence-Smith, através de um título que é sugestivo: «O Problema Étnico em Angola». Ele faz o uso do conceito de etnia sem o submeter a uma análise crítica. Limita-se a reproduzir o lugar comum que consiste em tematizar as etnicidades e suas dinâmicas associando-as às clivagens político-ideológicas registadas entre os três movimentos de libertação, FNLA, MPLA e UNITA, aos quais associa rótulos de reperesentatividade de três etnias angolanas, respectivamente, comunidades de língua Kikongo, Kimbundu e Umbundu. Esta matriz etno-cartográfica carrega armadilhas do quíntuplo eurocentrismo a que se referia Ali Mazrui. Está na origem de identidades étnicas, enquanto recurso político, atribuídas a algumas autoridades do poder tradicional microlocalizadas que, sem qualquer legitmidade, reivindicam a representação de macrocomunidades culturais, homogéneas do ponto de vista linguístico, mas com diferenças e variações nos seus ecossistemas, organização social, política e económica.

* Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 1 de Maio, aqui republicado com a autorização do autor.

**Ensaísta e professor universitário

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 768, de 19 de Maio de 2022

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