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Diáspora

Salah Matteos: O “black panther” cabo-verdiano

Foi amigo e companheiro de Malcolm X e militante da Nação do Islão, até descobrir na figura de Amílcar Cabral o herói que lhe faltava. O revolucionário Salah Matteos, abandonou a América e o combate pelos direitos civis para se embrenhar nas matas da Guiné, em busca do líder do PAIGC. Neto de cabo-verdianos do Fogo e da Brava, Salah testemunhou de perto os acontecimentos mais conturbados dos últimos 70 anos. O reconhecimento oficial chegou em 2005, com a atribuição da Medalha de Amílcar Cabral, pelos serviços prestados a Cabo Verde.

Salah Matteos tem 90 anos, mas fala como um homem de 50 e tem a memória de um jovem de 30 e poucos. Especialmente quando evoca os acontecimentos que o levaram, em 1955, a juntar-se à Nação do Islão. Movimento dos negros americanos então liderado por Alijah Mohamed, mas cujo porta-voz era Malcolm X, figura icónica desse período, ainda hoje. E o ponto alto desses acontecimentos, que acabaram por atirar para a ordem do dia a questão racial nos Estados Unidos da América (EUA), foi o rapto do jovem Emmet Till, no Mississipi, por racistas brancos, seguido do seu brutal assassínio.

O homem que esteve na frente da luta pelos direitos civis na América e percorreu a Guiné com a água pela cintura, ao lado dos guerrilheiros do PAIGC, hoje recorda as ideias de Cabral pelas páginas das redes sociais.

Ao telefone para o A NAÇÃO, Salah é ajudado pelo filho mais novo, Aaron Amílcar Cabral Matteos, a estabelecer a comunicação e a ligar o carregador do telemóvel. Não vá este ficar sem bateria. Mas o antigo revolucionário vai mostrando como ainda não esqueceu a língua dos seus avós. O filho explica-nos que o pai mantém duas páginas no Facebook, para fugir ao limite permitido para as amizades nesta plataforma. “É um comunicador nato, já vai ver”, avisa-nos. E mal a conversa se inicia, Salah diz: “OK, pode perguntar-me tudo o que quiser…”

Nesse ano de 1955, Salah Matteos, neto de cabo-verdianos da Brava e do Fogo, acabava de ser desmobilizado da guerra da Coreia, para onde se voluntariara, aos 18 anos. E a América que ele encontrou já não era aquela que havia pactuado com linchamentos no Sul do país, durante anos, ou segregara soldados negros, inclusive os cabo-verdianos, durante a Segunda Guerra Mundial. O impacto deste acontecimento, em especial, foi de tal ordem que galvanizou as novas gerações de afro-americanos e levou-os a aderir em massa a movimentos de luta pelos direitos civis. A fúria e a contestação de Salah juntou-se à de milhões de negros americanos.

Nação do islão

Salah tornou-se num ‘soldado’ disciplinado da Nação do Islão. A sua antiga veia contestatária encontrara o seu espaço de realização, nesta organização. Distribuía panfletos pelas esquinas da cidade, com as palavras o líder, Elijah Mohamed (ver QUEM É QUEM, pág. 6), impressas. Não bebia, não fumava e tornou-se amigo da estrela ascendente do movimento, o jovem Malcolm X, e da irmã deste, que ele já conhecia de Boston. Salah mudou-se para Nova Iorque para estar junto de Malcolm X e aprender mais com ele. Frequentou bibliotecas, continuou a estudar, leu vários livros, cultivou-se e tornou-se ‘tenente’ na organização de Elijah Mohamed.

Por esta altura, a comunidade cabo-verdiana pode dizer-se que era uma realidade bastante remota na sua vida. Muito cedo Salah deixou o pequeno meio crioulo e embrenhou-se nesse outro mundo que ficava muito para lá da rua e da casa dos avós: “nhas dono di Brava e di Fogo”. O espírito curioso levara-o para longe do aconchego do lar de Nha Carolina e Nho Lino, ‘tocador di rabeca’. Quando era menino, lembra, era só crioulo que falava com o seu ‘dono’ e ‘dona’.

Salah frequentou a escola por pouco tempo, optando por conhecer a vida de frente, aprender com a experiência, como então se fazia.

E foi após a sua segunda visita a África, entre Julho e Novembro de 1964, que Malcolm X (ver QUEM É QUEM, pág. 6) lhe falou, pela primeira, vez de Amílcar Cabral, conta Salah. Nessa altura, o porta-voz da Nação do Islão encontrara-se com líderes e intelectuais africanos, por entender que todos os negros faziam parte do mesmo movimento político. “Quando ele chegou, mandou-me chamar e fui encontrar-me com ele no hotel onde estava. Estivemos muito tempo a conversar sobre África e outros assuntos.’’

Mais tarde, em 1965, Salah tomou conhecimento da luta armada, que decorria em África, em Angola, Guiné e Moçambique, principalmente, através de um professor cabo-verdiano de Filadélfia, natural de Santo Antão, Paul, chamado John Peter Santos. Mas ainda antes disso, conta Salah, “depois de Nova Iorque, talvez 1963, 64, mudei-me para Filadélfia porque o filho de Elijah Muhammad, que era meu amigo e me fez ‘ministro’ na organização, teve de ir para Chicago. Ele era objector de consciência e não queria apresentar-se para cumprir o serviço militar. Pediu-me para ficar em Filadélfia.’’

Morte de Malcolm X

Salah recorda que um dos momentos mais marcantes da sua vida, foi um telefonema de Malcolm X. ‘’Ele ligou-me e disse-me que não queria que eu fosse ter com ele no dia seguinte. Eu perguntei, mas porquê? E Malcolm respondeu, ‘faz o que eu te digo’. Eu tentei ir na mesma ter com ele e assistir ao seu discurso, em Manhattan. Mas aconteceram várias coisas estranhas nesse dia, uma grande confusão, que me impediram de viajar para Nova Iorque. Nós sabíamos que ele vinha recebendo várias ameaças de morte, inclusive de dentro da organização da Nação do Islão. Dias depois, alguém ter-me-á dito que a pessoa que me iria levar para Nova Iorque, com quem tinha combinado, a organização desconfiava que ele fosse um detective do departamento da polícia de Filadélfia, infiltrado.’’ Um dos mistérios da sua vida, recorda Salah, que nunca será desvendado.

Depois do assassínio de Malcolm X, a 21 de Fevereiro de 1965, por elementos da Nação do Islão, num salão de Manhattan no dia seguinte a terem falado ao telefone, Salah abandonou a organização de Elija Mohamed. “Foram nove anos de militância e a Nação do Islão não é uma organização de onde se sai facilmente e sem problemas; há muita disciplina, muitas regras. Mas, tive fortes razões para isso. Descobri que nem tudo o que eles diziam eles cumpriam. E todas as religiões, como sabemos, bebem da mesma fonte. O meu instinto levou-me noutro sentido; eu não tenho religião e não quero pertencer a uma religião, mas a uma legião, o que é muito diferente.’’

Ao contrário do que muitos pensam, depois da Nação do Islão, Salah nunca se juntou aos Black Panthers, outra organização que lutava pelos direitos civis dos negros americanos, recorrendo à violência, inclusive, para responder à violência dos brancos. Ele conta como eram próximos nos seus propósitos. “Eles respeitavam os meus conhecimentos e a antiga militância na Nação do Islão e conversávamos muito.’’

Mas, depois da Nação do Islão, a haver alguma organização à qual Salah desejasse juntar-se eram os ‘freedom fighters’, os guerrilheiros do PAIGC, que nas matas de África tinham começado a luta contra o colonialismo português desde 1963. E essa seria a descoberta da sua vida.

Da Nação do Islão para o PAIGC

Com a morte de Malcolm X, Salah voltou-se para Amílcar Cabral. A luta deste líder africano com quem ele partilhava as suas origens africanas fascinava-o, desde que Malcolm X lhe falara dele. Nisso, durante as campanhas de sensibilização dos afroamericanos pelas universidades, Salah conheceu Mamadou Dia, um estudante senegalês de economia, de quem ficou muito amigo. “Ele terminou o doutoramento na universidade de Pennsylvania, em Economia. E quando regressava, disse-me que quando eu quisesse ir a África, teria todo o prazer em receber-me’’.

Nessa mesma altura, Salah já era pai de família e ganhava a vida como condutor de autocarros na cidade de Filadélfia. Mais tarde, foi maquinista de comboios e condutor de carros eléctricos, na mesma cidade. Mas o que se desenrolava nas matas do continente africano e essa figura heroica que ele descobrira em Cabral, deixavam-no inquieto e sem dormir.

Durante algum tempo, Salah continuou a frequentar reuniões numa igreja episcopal de Filadélfia, liderada pelo padre e activista comunitário, Paul Washington. Participavam nelas também outras figuras do movimento black power, como Stokely Carmichael e Angela Davis. Certo dia, Salah falou ao padre dos seus projectos e da sua vontade em encontrar-se com o seu herói, Amílcar Cabral. A igreja episcopal ajudou-o com 2 mil dólares, para cobrir as despesas com as passagens.

“Também fui fazendo as minhas economias, fazia os meus planos ‘gatchadu’, sem dizer nada a ninguém. E certo dia, liguei para o meu chefe e disse-lhe que não iria trabalhar no dia seguinte. Perguntou se eu estava doente. ‘Não’, respondi, todo contente, estou é a caminho de África!’’

Corria o ano de 1969. Salah pensou em ficar os 30 dias previstos para a viagem com o seu amigo senegalês Mamadou Dia, que residia na cidade de Thyès. Mas encontrar guerrilheiros do PAIGC ou passar pela organização do partido até chegar a Amílcar Cabral, não era tarefa fácil.

Nisso, Salah iria descobrir como a realidade africana, a luta de guerrilha e a organização dos movimentos de libertação tinham a sua complexidade.Mas, o antigo soldado da Nação do Islão não tinha atravessado o Atlântico para desistir assim tão facilmente.

“Eu queria encontrar-me Amílcar Cabral a todo o custo. Deixei a casa do Mamadou Dia e fui para Dacar. Quando fiquei sem dinheiro, fui viver para uma casa no mato, como as outras pessoas do país. Tudo o que eu tinha, relógio, sapatos, dei em troca de comida. Dei-lhes as minhas roupas e vesti as deles, africanizei-me, vivi desta maneira durante muito tempo. Mas estava feliz, porque perseguia o meu sonho: estava em África e esperava vir a encontrar-me com Amílcar’’.

Entretanto, Salah aprendeu o wolof e percorreu Dacar, Thyés e outras cidades senegalesas, junto dos cabo-verdianos e de outras pessoas, a conhecer a vida do continente, a ouvir as suas histórias, e também em busca de informações sobre o PAIGC. Foi fazendo alguns contactos, com eventuais elementos de ligação, mas não obteve qualquer resposta nem grandes avanços. ‘’Na altura, deviam perguntar quem era este americano que se queria encontrar com eles e porque é que haveriam de confiar em mim. Eu podia ser um espião qualquer, ao serviço do governo americano.’’ A desconfiança, na altura, era grande.

Joaquim Arena

Leia mais na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 839, de 28 de Setembro de 2023

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