Por: F. Osvaldino N. Monteiro*
O exercício reflexivo deste texto ergue-se em torno das seguintes palavras-chaves: “nação”, “imaginação” e “sistema educativo”. Conceituemos desde logo as duas primeiras, tomando de empréstimo as definições propostas pelo Dicionário da Porto Editora. “Nação” é definida como um “conjunto de indivíduos historicamente ligados pela mesma língua, a mesma cultura e por tradições, interesses e aspirações comuns”. Por seu turno, “imaginação” é destacada como sendo a “faculdade de inventar, de conceber, unida ao talento de reproduzir vivamente essas conceções” (www.infopédia.pt).
Imaginar a nação é, quanto a nós, uma tarefa que antecede o contato direto de um indivíduo com os elementos que conformam essa mesma nação. Isto é, a nação é-nos dada a assimilar, acima de tudo, pela imaginação, enquanto apresentação e vivência de constituintes míticos, telúricos, lendários, costumeiros, histórico e fatuais, entre outros. As crianças, primeiramente na família e depois nos centros educativos, entram em contato com os tais elementos que, com o passar do tempo, os processos de crescimento e de desenvolvimento psicológico, intelectual, físico, emocional, identitário, tratam de essencializar, cristalizar e sistematizar. Portanto, juntamente com a família, atribui-se ao sistema educativo a função de promover, pelas vias pedagógicas e de relações sócio-emocionais patentes nos espaços educativos e de convívio social e coletivo, o aprofundamento deste processo imaginativo como ferramenta fundamental para a edificação da “nação” no aluno, sempre numa situação dialogante e intersubjetiva. Sendo a nação uma “comunidade imaginada” (Benedict Anderson), mas também real, na sua criação e (re)configuração o setor de educação desempenha um papel fundamental.
Vários fatores conduziram-me à verbalização da presente reflexão que, acima de tudo, emerge também como um processo imaginativo, de conceção. Enquanto docente com aproximadamente duas décadas de experiências em praticamente todos os níveis de ensino, quando analiso o sistema educativo nacional na sua última instância, isto é, enquanto meta pretendida pela Educação Nacional e pelo país, fico com algum desnorte sobre o que se pretende como “nação” enquanto campo de desfile dos nossos valores identitários, históricos, culturais, sociais… Ou seja: essa tal comunidade imaginada de pertença comum para a qual o sistema educativo, no cumprimento dos seus objetivos primários, deveria permanentemente promover o cruzamento e a articulação de seus valores históricos, identitários, naturais e culturais característicos enquanto sistema com âncoras assentes na idiossincrasia nacional. Com isso não pretendo defender um sistema fechado sobre si, até porque por razões históricas sobejamente conhecidas, Cabo Verde nunca constituirá ou deverá constituir um objeto de reflexão fechado sobre si mesmo.
Vasculhando as provas de avaliação sumativa de língua portuguesa do 4º ano de escolaridade no quadro de preparação para os exames finais da minha educanda, deparei-me com uma situação que não é de todo nem nova e nem surpreendente, mas que as azáfamas do dia-a-dia não me permitiram dar desejável atenção. Por exemplo, constatei que todos os textos utilizados nas cinco provas de avaliação sumativa de língua portuguesa realizadas durante os três trimestres do corrente ano letivo, eram estrangeiros.
Escrutinar o porquê de tais escolhas não constitui o objetivo da presente reflexão. Efetivamente, deparei-me com textos narrativos e poéticos que abordam os artefactos, as plantas, os cenários, os contextos, as casas, as árvores, as personagens, as histórias, as estórias que se encontram distantes da realidade da minha filha, dos nossos educandos. E, num exercício de visualização imaginativa tentei encetar a construção de realidades a partir dos elementos que tais textos propunham. De olhos na minha filha, com pensamentos vagabundeando pelo convite dos conteúdos daqueles textos, comecei a imaginar a velocidade, a coalescência dos elementos e os possíveis exercícios de construções imaginativas que ela estaria a fabricar a partir das leituras daqueles materiais. Pus-me a pensar: o exercício que ela está a fazer poderia ter como base os textos representativos da multidimensionalidade da história, da cultura, da identidade e do ambiente natural cabo-verdiano. Continuei a conjeturar que, ao menos, nas provas de avaliação sumativa, pela pressão positiva que elas exercem sobre o aluno (em termos de mobilização de pré-requisitos para compreender e interpretar o texto e os questionamentos), elas deveriam constituir momentos para proporcionar maior familiaridade do aluno com a sua realidade social, antropológica, ambiental e cultural. Dito de outro modo: incluir textos que, pelos assuntos encerrados, podem desencadear nos nossos alunos processos de reflexão contextualizada, relacionada com a sua vivência, as suas brincadeiras, o seu ambiente natural. Desta forma, os alunos recolheriam importantes subsídios que os permitiriam continuar a concrecionar o tal processo de “imaginação da nossa nação”.
A situação relatada acima obrigou-me a revisitar os anos que estive mais próximo da educação pré-escolar, enquanto encarregado de educação. Pus-me a refletir sobre os textos, as imagens, as músicas, os desenhos animados, as estórias, as lendas, as fábulas, os mitos…entre outros, que as nossas crianças aprendem e reproduzem neste nível de ensino, sem secundarizar as importantes habilidades múltiplas que certamente desenvolvem. Desenvolvem-nas, sem dúvida. No entanto, a questão é: a partir de que matrizes históricas e culturais desenvolvem essas habilidades? Ou melhor: desenvolvem-nas a partir de uma quantidade e qualidade desejáveis de recursos pedagógicos endógenos? Tenho visto, por exemplo, que as composições e as musicalidades brasileiras inundam as atividades pedagógicas e recreativas neste nível educativo, em todos os momentos comemorativos de efemérides importantes para a agenda pedagógica e para o país. De referir que, nada tenho contra tais escolhas. A minha preocupação é a parca existência de recursos pedagógicos ou com potencialidades pedagógicas baseados em elementos nacionais, regionais e locais para servirem como referências matriciais a partir dos quais se iniciam as crianças em aprendizagens estruturantes para compreender o seu país, a sua história e a sua identidade. Um fator diretamente ligado a esta situação é, sem dúvida alguma, a adequada preparação dos profissionais. A escassez desses recursos e a frágil preparação de muitos desses profissionais constituem, na minha opinião, obstáculos aos exercícios educativos de imaginação da nossa nação, na sua diversidade, pluralidade e riqueza cultural e histórica.
A educação pré-escolar, enquanto etapa fundamental da promoção da criatividade pelo livre exercício de imaginação, precisa de reforços nos quesitos atrás referidos: recursos pedagógicos endógenos e adequada preparação dos profissionais.
São incontáveis os estudos de referência que demonstram a importância de trabalhar a imaginação da criança nesta fase pois, terá um impacto determinante na sua vida futura. Evidências científicas mostram que as perceções do mundo real ou do contexto social são registadas e conservadas, na maioria das vezes, como imagens que são formadas a partir das experiências mantidas com o meio natural e sociocultural. Precisamos apostar numa endogeneização (se o termo for tolerável) contínua e profunda dos tais recursos pedagógicos. Necessitamos proporcionar às nossas crianças situações de aprendizagens relacionáveis com o seu meio, suas lendas, suas estórias, suas histórias, suas ribeiras, seus cutelos, suas montanhas, suas praias, suas gentes, seus familiares, seus animais, etc. Esta problemática mexe com os alicerces da filosofia, da história e da sociologia da educação cabo-verdianas. E mexe, de forma análoga e estruturante, com a política de produção de conhecimento a partir da nossa realidade.
Encontrava já a ultimar a presente proposta de reflexão, portanto terminado as próximas duas páginas que ainda o leitor não escrutinou, quando, surpreendentemente, chegaram às minhas mãos um importante material que, na sequência dos exemplos atrás apresentados, contribuem sobremaneira para percebemos como a “nação” enquanto concatenação dos tais valores referidos atrás, encontra-se desfasada na imaginação dos nossos alunos. Da conversa com uma aluna do curso de licenciatura em Ensino Básico, percebi que o professor da unidade curricular “Educação Artística” solicitou a elaboração de um diário gráfico, sem tema pré-estabelecido, portanto, desenho livre que deveria ser feito todos os dias, durante o prazo de realização da tarefa. Tive a curiosidade de desfolhar as páginas do referido diário. Percebi, de imediato, que se trata de um importante material para estudar a questão central do presente texto: as representações. Constatei que nas primeiras 10 páginas do diário rareavam desenhos relacionados com Cabo Verde, nossa história, nossa estória, nossas comunidades, …etc. Se os estudantes nos seus desenhos destacam marginalmente a realidade em que se encontram inseridos é porque o percurso que fizeram nos três subsistemas do sistema educativo nacional tais assuntos foram fragilmente (ou escassamente) tratados e abordados. Uma reflexão mais profunda em torno de tais diários será objeto de escrutínio numa outra ocasião.
Tenho por mim que a educação é, antes de tudo, uma ferramenta para imaginarmos a nação como referente coletivo comum, com setas voltadas para um passado que deve ser incorporado e rememorado criticamente e um futuro que deve ser projetado com base em miradas “retrovisoras” nesses valores do passado, mormente num país tão jovem como o nosso. Ao imaginarmos a “nação” pelo sistema educativo estamos a lançar as âncoras para a edificação da sociedade, da preservação ativa e inovadora do meio ambiente, da dinamização da cultura e, acima de tudo, do projeto de país que queremos ser e para o qual todos nós lutamos, individual e coletivamente todos os dias. Precisamos proporcionar exercícios pedagógicos de imaginação da nossa “nação” com base na idiossincrasia do aluno, estando certo que, no nosso caso, pelas razões históricas e identitárias, tais exercícios nunca significarão conceber a realidade social e cultural nacional como fechada sobre si mesma. Dissemo-lo atrás e repetimo-lo aqui: do ponto de vista epistemológico não há como analisar Cabo Verde como uma realidade fechada.
Sou de opinião que enfrentamos uma etapa da nossa história que impõe uma profunda ressignificação da NOSSA EDUCAÇÃO, com demandas que vão muito além dos ajustes normativos e legislativos. É evidente que temos imprimido nas nossas linhas de política educativa perspetivas de construção de uma nação global, que se quer competitiva e tecnologicamente avançada, onde as novas habilidades e competências são imprescindíveis. Ambição justa e plausível. Porém, tais ambições devem desenvolver-se em consonância com o propósito de conferir mais atenção aos valores fundacionais da nossa trajetória histórica, política, cultural e identitária. Tais valores devem ser cuidadosamente recolhidos em todos os momentos marcantes da nossa trajetória histórica. Tomando de empréstimo, mais uma vez, a expressão “comunidade imaginada”, devemos questionar se os nossos subsistemas educativos têm permitido construir esta comunidade enquanto pertença cultural, histórica, identitário e natural comum, num momento em que não devemos ter mãos a medir sobre as estratégias que o país deve adotar para a construção de consensos sociais, da coesão social e de solidariedade.
É nossa convicção que os recursos pedagógicos propostos e utilizados, isto é, os inúmeros textos narrativos, poéticos, descritivos e explicativos contidos nos manuais bem como as imagens, não proporcionam a um nível desejável situações de aprendizagens que despoletem nas crianças, adolescentes e jovens sentimentos sólidos de pertenças partilhadas aos valores nacionais. Outrossim, as estratégias pedagógicas propostas não se orientam pela promoção do diálogo e intersecção de práticas, conhecimentos e informações entre as gerações, no espaço da educação formal e não formal. Em casa, por exemplo, as crianças que dispõem de adultos presentes não aproveitam adequadamente o fundo do conhecimento familiar existente para o afinamento dessas teias de pertença a uma comunidade partilhada (cabo-verdiana e comunitária) pois as estratégias de aprendizagens propostas não abundam a este nível. Dito de outra forma, as situações de aprendizagens, pelos recursos pedagógicos previstos, pouco promovem a implicação do repertório cultural e de vida existente e disponível na família e, com isso, o processo de partilha e interação entre as gerações acontece a um nível bastante elementar. Não se pode subestimar esses repertórios, como nos alertara o historiador Joseph Ki-Zerbo. Os repertórios culturais gerados em interações ativas entre gerações constituem recursos e espaços de urdidura da nação, da passagem de valores estruturantes para o que se quer para um país. É preciso potencializar o espírito de construção e partilha conjunta do imaginário nacional de ontem, hoje e esta imaginação conjunta do amanhã com experiências, forças, habilidades, frustrações e ensejos de todos, num marco de comprometimento densamente mais alargado.
De igual modo, os espaços públicos devem jogar um papel importante neste processo, enquanto ágoras cívicas, isto é, “cidade educadoras”, das crianças, adolescentes, jovens e adultos. Devem constituir reforços deste tal processo imaginativo da “nação” iniciado na família e na escola. Contudo, os mesmos não se encontram configurados para isso visto que tem-se prestado pouca atenção à preservação da memória local (coletiva), bem como a existência de alguma tendência para a destruição (passiva ou ativa) do património local, portanto, comunitário; sem se esquecer que existe uma generalizada falência da sua potencialização enquanto locais de encontro, de construção de teias de identificação com a “polis”, que mais do que um espaço físico é, acima de tudo, um espaço de processos de interações sociais e de trocas reais e simbólicas com forte impacto na formação de uma cidadania ativa e atuante.
Estamos convencidos que pela via da promoção de situações de aprendizagens e de recursos que se entrecruzam na partilha das pertenças históricas, identitárias e culturais estaremos a construir uma sociedade mais coesa, mais solidária, mais dialogante e de paz. Os sistemas educativos, os recursos pedagógicos e os docentes devem guiar-se pelo princípio de partilha continuada e colaborativa dos elementos emocionais, históricos, culturais e identitários do país que queremos construir, sem se esquecer da cientificidade requerida. Exige-se mais ações inovadoras a este nível.
Neste momento da minha vida profissional e pelos elementos que continuamente recolho nas mais díspares e recônditas comunidades do nosso país, não incorro em grandes riscos se assumir que não existem elementos sólidos que me permitem afirmar que o sistema educativo nacional tem sido um campo de adequada sistematização e disseminação dos nossos valores históricos, culturais e identitários, condição determinante para a consolidação de outros valores considerados fundacionais e calibradores da nação.
Precisamos edificar o nosso Cabo Verde a partir de desenvolvimento de processos imaginativos e participativos férteis, tendo como ponto de partida o sistema educativo nacional. Temos de iniciar as nossas crianças na vivência dos nossos símbolos nacionais, das nossas lendas, dos nossos mitos, dos nossos provérbios, das nossas advinhas, das nossas músicas, das nossas danças, das nossas filosofias de vida, das nossas montanhas, das nossas ribeiras, das nossas personalidades políticas e culturais…Bases históricas, culturais e identitárias de pertença partilhadas devem ser ensinadas, promovidas e disseminadas sem secundarizar as suas dinâmicas intrínsecas e sempre ciente dos riscos do descaminho devido às tendências fragmentárias existentes, sejam elas de qualquer ordem.
São várias as repercussões do exercício de reflexão e imaginação incorporado no presente texto. Por um lado, desde logo, as relacionadas com a diversificação e a riqueza cultural dos recursos pedagógicos de apoio à educação pré-escolar, mesmo sabendo que nos últimos tempos algumas iniciativas (UNICF, por exemplo) têm contribuído para isso. Por outro lado, atenção maior deverá ser dada à divulgação pedagógica das excelentes produções científicas que são feitas, no país e na nossa diáspora, por nacionais e estrangeiros, mas que demoram a chegar às salas de aula. Questão essencial a não olvidar é a preparação sólida de docentes de todos os níveis de ensino, a partir de um modelo que deverá emergir de uma participação comprometida da nação, com necessária relevância histórico-culturais e solidez científico-pedagógica. Repercussões a nível de reconfiguração de um sistema educativo mais voltado para a realidade e o seu meio natural do país são igualmente óbvias e necessárias, até porque a reforma em fase de conclusão não está cumprindo cabalmente com esse desiderato. Adiciona-se ainda a esta lista de repercussões, a maior autonomia aos professores e às escolas numa gestão que se ajusta ao contexto onde se encontram inseridos e a criação de condições para a mobilização de recursos fundamentais para a concretização do projeto do país que sonhamos por meio de um “Djunta mó” generalizado, valor cultural que nos é intrínseco e que pode ser reerguido para imaginarmos juntos o futuro da “nação” pela grande via da educação.
Assomada, 5 de julho de 2023
*Professor do Ministério de Educação de Cabo Verde e colaborador de Instituições de Ensino Superior. Agradecimentos aos colegas e amigos pelas sugestões de melhoria.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 837, de 14 de Setembro de 2023