Por: Seidy de Pina
O linchamento, que mais não é do que uma forma de violência coletiva que consiste em assassinar alguém sem um julgamento justo, cujo objetivo é punir um suposto transgressor, já ocorria desde a Idade Média na Europa, quando pessoas eram acusadas de bruxaria, heresia ou outros crimes e eram torturadas e mortas em público.
Hoje, apesar de já volvidos alguns séculos que nos separam da idade média, o linchamento continua, ainda, presente entre nós, não obstante o avanço da civilização e da democracia. Em boa verdade, esse fenómeno se adaptou aos novos tempos e às novas tecnologias, dando origem ao que se chama de linchamento virtual.
Esse fenômeno ocorre quando as redes sociais se tornam palco de ataques e ofensas contra alguém que cometeu um erro ou uma infração, ou que simplesmente desagradou a uma maioria. Nesse caso, a vítima não é morta fisicamente, mas simbolicamente, tendo a sua imagem, a sua reputação e a sua dignidade destruídas pela multidão digital.
Realidade preocupante em Cabo Verde
Em Cabo Verde, o linchamento virtual é uma realidade preocupante, que afeta os direitos e as liberdades fundamentais dos cidadãos, bem como os princípios jus-filosóficos do nosso sistema jurídico, tais como: o imaculado princípio do contraditório, por sua vez, honra e timbre do nosso sistema jurídico, que garante a todos o direito de serem ouvidos e de apresentarem a sua defesa perante uma acusação; o fundamental e estruturante princípio da presunção de inocência, que estabelece que ninguém pode ser considerado culpado até ao trânsito em julgado da sentença condenatória; por fim, o sagrado princípio da dignidade da pessoa humana, que reconhece a cada indivíduo um valor intrínseco e inalienável;
Certo é que o linchamento virtual constitui uma violenta violação de todos esses princípios, pois julga e condena as pessoas sem lhes dar a oportunidade de se defenderem ou de se redimirem; presume a culpa das pessoas sem provas e sem respeitar o devido processo legal; discrimina e estigmatiza as pessoas por motivos arbitrários ou preconceituosos; desrespeita e humilha as pessoas, negando-lhes o seu valor e a sua humanidade; expõe e viola as comunicações privadas das pessoas, invadindo a sua intimidade e a sua privacidade.
Necessidade de mudar a situação
Com isso, tenho por mim que o linchamento virtual revela, assim, que vivemos em dois mundos: o mundo físico e o mundo digital. No mundo físico, temos leis, instituições e mecanismos para garantir a ordem pública, a segurança nacional, a administração da justiça e a proteção dos direitos humanos. No mundo digital, porém, parece que ainda estamos na Idade Média, onde prevalecem as práticas medievais de linchamento, baseadas no medo, na intolerância, na violência e na impunidade.
Nas redes sociais vivemos como se ainda estivéssemos no primeiro estágio da civilização humana, pois qualquer um pode ser jornalista, juiz, advogado, procurador etc[.], visto que não há regra, nem respeito para com os outros.
No entanto, é preciso mudar essa situação e fazer com que os mesmos valores e princípios que regem o mundo físico sejam respeitados no mundo digital. Para isso, é necessário sensibilizar os utilizadores das redes sociais para o uso ético e crítico destas ferramentas que, ao invés de serem fontes de desinformação, de manipulação, de ódio e de violação dos direitos alheios, podem ser fontes de informação, de educação, de cultura e de cidadania.
Reforço dos meios de comunicação social tradicionais
Ademais, não deixa de ser verdade de que é necessário, também, reforçar o papel dos meios de comunicação social tradicionais, que devem cumprir os princípios do rigor, da isenção, da verificação e do contraditório na produção e na divulgação das notícias.
Ainda, é mister garantir que as autoridades competentes fiscalizem e sancionem as condutas ilícitas nas redes sociais, que possam atentar contra a ordem pública, a segurança nacional, a honra das pessoas ou a administração da justiça. Pois, o linchamento virtual é uma ameaça real e séria à democracia, aos direitos humanos e à convivência social em Cabo Verde.
Casos internacionalmente conhecidos
Histórias internacionalmente conhecidas como a da brasileira Fabiane Maria de Jesus, que foi assassinada por uma multidão no Guarujá após ser acusada falsamente de sequestrar crianças para rituais de magia negra; a da espanhola Olvido Hormigos, que foi humilhada e renunciou ao cargo de vereadora após ter um vídeo íntimo divulgado na internet; e a da norte-americana Monica Lewinsky, que foi alvo de escárnio e ódio por causa do seu envolvimento com o ex-presidente Bill Clinton, e que se tornou uma ativista contra o cyberbullying, mostram como o linchamento virtual pode afetar a vida pessoal, profissional e emocional das pessoas, causando danos irreparáveis ou muito difíceis de superar.
Assim sendo, cabe a cada um de nós fazer um uso consciente e responsável das redes sociais, respeitando os princípios jurídicos e os direitos humanos que nos regem como cidadãos livres e iguais em Cabo Verde.
Hoje, qualquer um de nós pode ser vítima desse flagelo, por isso devemos ter cuidado com o que dizemos e fazemos nas redes sociais, e também respeitar os direitos e a dignidade dos outros.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 829, de 20 de Julho de 2023