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“Febre” golpista em África

Nos últimos três anos, o continente africano foi sacudido por oito golpes de Estado militares, a maior parte na região oeste-africana. E, no espaço de um mês, apenas, aconteceram dois, no Níger e no Gabão. O facto desta vaga golpista acontecer em países francófonos leva a outras leituras. Há quem fale no fim da “France-Afrique”, espécie de aliança entre Paris e as suas antigas colónias africanas, substituída nalguns casos pela penetração da Rússia no continente. 

À pergunta, o que se passa nos países que passaram recentemente por golpes militares, qual a origem desta “epidemia”, como chamou o Presidente francês, Emmanuel Macron, e o secretário geral da ONU, António Guterres, são avançadas algumas respostas. Para o filósofo camaronês Achille Mbembe, os golpes de Estado são um sinal de mudança, o fim de um ciclo histórico que teve início com a descolonização, a partir do final dos anos 1950 e inícios de 1960. Numa entrevista dada ao canal de rádio francês RFI, este filósofo africano fala de um novo período em que o continente está prestes a entrar. 

Jovens mais informados

Achille critica aquilo a que chama de ‘neosoberanismo’, por parte dos dirigentes africanos, a visão empobrecida do que foi o pan-africanismo histórico, que trazia no seu seio uma visão de liberdade e democracia, mas também de justiça universal e solidariedade. Para o filósofo, o “neosoberanismo” orienta-se por um desejo de substituição de um ‘mestre’ por outro. 

Achille adianta, igualmente, as desigualdades entre as populações, que continuam a aumentar, e aqui destaca o que chama de ‘revolução invisível’ das mulheres, em andamento em África. Isto para além da profunda mudança demográfica e geracional, que escapa aos olhos e à percepção de quem detém o poder há muito tempo. Como foi o caso de Ali Bongo.

E este é um dos aspectos mais frequentemente apontados pelos analistas. A começar pelas novas gerações dos militares destes países, um factor de grande importância, comummente subestimado pelos dirigentes políticos. Esta mudança das gerações traz consigo uma nova visão da sociedade e um inconformismo com o estado calamitoso das economias e a falta de perspectivas futuras, da pobreza, do laxismo e do fosso entre as classes sociais. 

O acesso à informação, por parte da população jovem, cada vez mais escolarizada, dá-lhe outra capacidade de reflexão e sentido crítico sobre a sua sociedade e aqueles que deveriam estar à altura das suas responsabilidades governativas. O resultado é uma vontade cada vez maior de influenciar directamente o rumo das coisas, de agirem de acordo com as suas expectativas futuras. A acção passa, obviamente, pela instituição militar, pela força das armas.

Assim, a má governação destes países surge como causa principal que acende o rastilho do golpe de Estado. Mas há algo que também atrai a atenção, quando se analisam os países da África Ocidental onde ocorreram os últimos golpes. Aqui, a insegurança é constante, bem como os extremismos, como destaca a investigadora e activista dos direitos humanos togolesa, Farida Nabourema, da Universidade John Hopkins. O que faz com que o ambiente político acabe por se tornar tóxico e volátil. 

Instalado de forma sub-reptícia, o desvirtuamento do princípio da separação democrática de poderes deu lugar a pequenos ‘monstros’, diz a investigadora. Como a transformação do poder legislativo num ramo do poder executivo, e fazer do judicial um ramo do executivo. E aqui com o objectivo explícito de reprimir e perseguir adversários políticos, activistas sociais, jornalistas e outros críticos. Quando, no fundo, diz Farida, estas instituições deveriam era estar a proteger o Estado de direito e evitar tomadas de poder de forma abusiva e ilegal.

‘Presidencialização’ das forças armadas

Outro aspecto é a chamada ‘presidencialização’ das forças de segurança e defesa do país. Algo que logo nos primeiros anos das independências levou a que os parlamentos fossem ficando cada vez mais esvaziados de poder e ausentes, na sua capacidade de acção, de acordo com as suas atribuições. Este órgão, o parlamento, não tem a capacidade para controlar ou gerir as forças de defesa e segurança. Fica tudo nas mãos do Presidente, cujo regime conta com a protecção das forças de segurança.

 Justo Codjo, professor de Segurança Nacional, da Universidade de New Jersey City, destaca a perversidade do sistema de governo presidencialista absoluto, de nomear quem quer e demitir quem quer, utilizando as pessoas para os seus fins pessoais, de acordo com os seus objectivos. Em última análise, as forças de defesa e segurança veem-se afastadas do seu papel principal, que é o da defesa do território nacional.

No final, diz também Farida Nabourema, esses presidentes acabam por ser vítimas dessas estruturas de poder que eles próprios criaram, vítimas de um exército poderoso e da fragilidade das instituições que foram esvaziando no seu percurso. E, finalmente, são vítimas também das populações de quem se afastaram, negligenciaram e ignoraram. 

A consequência directa é a incapacidade de os chefes de Estado lidarem com crises extremas, sobretudo económicas, por alguma razão conjuntural, como foi o caso da Covid 19. Não existe uma autoridade forte, nem instituições fortes capazes de intervir e resolver o problema. E aqui, resta ao exército esse estranho papel de árbitro, e a quem as populações fazem o último apelo.

Neocolonialismo

Voltando à condição de países francófonos e ao seu passado comum com este país europeu, existe uma herança pesada, que muitos veem como um claro neocolonialismo. E tal leva a um descontentamento com o sistema actual e um apelo ao renascimento de uma nova forma de poder, fora das amarras da França. Há o desejo de uma revolta contra um sistema económico e político, que não tem permitido às populações uma melhoria da sua condição de vida e dignidade. 

E aqui temos a entrada de novos actores na esfera de influência da região, como a China e a Rússia. É a incontornável reconfiguração geoestratégica e a rivalidade entre as potências económicas – a lembrar o Complexo de Fachoda, entre a França e a Inglaterra -, que se acentuou nos últimos anos. Sobretudo com a descoberta e exploração de novas jazidas de ouro e diamantes na República Centro Africana, magnésio no Mali, do petróleo e do urânio no Burkina Faso. Recursos minerais importantes quer para os Estados Unidos, França, Rússia e China, com todos a quererem exercer controlo sobre essas regiões. Ou então, fazer tudo para que não caiam nas mãos dos seus rivais.

E são os jovens destes países, com mais acesso à informação, independentemente de serem verdadeiras ou não – através das redes sociais e novas tecnologias -, que se revoltam contra o que chamam de ‘neoimperialismo’ e ‘neocolonialismo’. Jovens civis e militares, naturalmente. 

De acordo com Farida, é esta geração que exige poder escolher os seus dirigentes, que o Estado proteja e garanta os direitos dos cidadãos. Uma geração que está pronta a bater-se e a lutar pelos seus objectivos. E na maior parte dos casos, nestes golpes de Estado, são estes jovens que fazem apelo aos militares para que tomem medidas e mudem a situação.

Perante isto, os militares golpistas têm dois caminhos, como explica o professor Justo Codjo: seguir um alinhamento com a França, com os seus interesses, como quase sempre acontece, o que leva a entrar em choque com as aspirações das populações; ou escolher um caminho de afastamento em relação à antiga potência colonial, com todos os riscos e consequências que essa decisão acarreta.

 

Joaquim Arena

Leia mais na edição semanal, versão digital do jornal A NAÇÃO, nº 837, de 14 de Setembro de 2023

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