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Coisas de um país guiado por políticas públicas, muitas vezes adquiridas em segunda mão

Por: João Santos

Dormia, ou, então, parecia querer dormir; o recosto não traduzia um típico descanso do guerreiro; seria do cansaço? Estranho. O cansaço não advinha do trabalho, seguramente. Esse, não há e ele não tem. Faz parte do grande número dos que não têm. Não imagino a categoria, muito discutida, a que pertence.

Há uma propensão enorme para a relativização do problema. Politicamente dá imenso jeito enviesar a discussão. A mim em nada interessa. Trata-se, aliás, de um simples item estatístico ou, mais concretamente, de uma das espécies do género desemprego.

Olhava fulminantemente para ele. Pormenorizadamente observava-o! Os gestos reclamavam uma interpretação qualquer, a melhor, diria, mas sem efabulações. Rapidamente compreendi que, afinal, não dormia. Queria apenas que o tempo passasse, que o dia e as horas escoassem, insensível à responsabilidade pela situação. Não responsabiliza ninguém e, muito menos, a si. Mas parecia querer deitar-se, acomodava-se, enquanto lambia os lábios afocinhados.

A língua tem essa fantástica virtualidade de molhar, por ínfimos momentos, mesmo a mais áspera parte do objecto por que passa. E engolia, o cuspo da sua saliva, insuficiente, contudo, para se alimentar.

Uma maior irrequietação parece agora dominar-lhe. Quer sair e deixar o local. Mas, iria para onde? Dá uns dois passos à frente, um atrás. Acaba por ficar praticamente no mesmo sítio. Está verdadeiramente sitiado, concluo. A uma mosca que lhe pousa no rosto, afasta-lhe com um moderado abano da cabeça. Mas, de repente, um mosquito pica-lhe. Só podia ser coisa de um mosquito. Como que sobressaltado, coça, coça, por instantes, cada vez com maior vigor.

Volta a recolher-se, não sem antes levar as mãos ao queixo, que mais umas patas pareciam, para o assegurar enquanto estendia o seu olhar para longe; que, afinal, não é assim tão longe, pois o horizonte é curto; estica o pescoço, mas o horizonte não cresce, não consegue esticar o olhar sobre além.

Recompõe-se, volta à posição inicial, encostando a cabeça para um dos lados do ombro. De olhos semicerrados parece que agora sonha. Sonhar é, paradoxalmente, sempre mais estimulante que olhar a dura realidade circundante. Nem que por inadvertência os olhos se arregalam porque imaginou uma situação nova. Nada alterou, senão a consciência cada vez mais pesada de que não há alternativa.

Por momentos lembrei-me de uma conimbricense noção de trabalho, a de Avelãs Nunes, como “actividade inteligente do homem em sociedade, …”. Que o cansaço que revelava não era resultante dessa actividade inteligente, mas da incapacidade de inteligentemente se transformar e adaptar as forças da natureza com vista à satisfação das necessidades, e as dele, particularmente. O seu cansaço era o de uma cabeça pesada. A consciência pesa e imobiliza, quase sempre. Mas sonhar permite, mesmo depois dele acordar, por um instante que seja, perguntar como seria experimentar na realidade o que o sonho lhe deu. Volta a fechar os olhos. Desta feita por um brevíssimo tempo.

Parece decidido a sair. Como que por um iluminado impulso interior parece que encontrou a decisão. Ao segundo, terceiro passo, tropeça, quase cai. Retrocede um, não, meio-passo. A postura inicial volta a dominá-lo. Desta vez estica-se todo e deixa as mãos, estas não seriam umas patas (?), deixa as mãos, dizia, servirem-se-lhe de base para o queixo apoiar. Uma baba escorre-lhe por um dos cantos da boca e, com a ajuda da sua longa língua, sorve-a. Seguida e repetidamente a língua volta a lamber. Lambe, lambe, mas engole em seco.

Já não parece querer dormir. Fixa o olhar num ponto qualquer do nada que pela frente tem do sítio que o sitiou. É a indiferença total. Levanta-se, sorri para mim, ronda-me, aproxima-se para cada vez mais perto de mim, qual modo como o cão amigo na presença do dono se aproxima abanando o rabo (!). Só não me “fareja”. Mas salta para mim umas palavras fortes como que de umas patadas se tratassem, a bater-me, não na cintura, mas no coração. Não sei se consegui esconder a tristeza provocada; sei que lhe retribuí a afectividade. Bebia, como quase sempre, um “groguinho d’ terra”. Ofereci-lhe um. Sugeriu que lhe trocasse a oferta por outra; pediu-me um “cachupa”. Não tenho que chegue para tal, respondi-lhe. Então, uma sopa, pode ser? Por favor, insistiu, visando sensibilizar-me ainda mais. Pedi-lhe um instante. Quis ficar sozinho. Fiz apelo à minha tutoria “binomial”, do que dentro da minha consciência individual e privada resta. Convidei-lhe uma refeição comigo, em minha casa. Aceitou!

Não fora o facto deste relato ser um exemplar da humana tragédia por que muitos passam ninguém aventuraria afirmar que isto não é Vida de Cão. De um súbdito cão de uma república que parece afirmar ser, afinal, uma IMPOSSIBILIDADE. As responsabilidades do país e pelo país não se compadecem com diferimento de espécie alguma. Depois de feita a refeição, continuamos a conversar, pois não tinha muito mais para lhe oferecer. Dei-lhe, por outro, alguns conselhos pessoais, como que a servir-lhe um cafezinho. Gostou das minhas palavras. Ah!, um pormenor não me escapou; ele tinha um braço faneco. Porque gostou, quis aplaudir; fez o gesto correspondente; e perguntou-me se se ouvia o som de uma só mão.

Ouvi os aplausos, sem estrondo.

Essas são as palavras que escrevi do meu país, a pensar no meu país e nos governantes do meu país; a pensar no desejo incontido de muitos jovens cabo-verdianos deixarem o seu país.

Esse  desejo de “evasão” tem que ser hoje compreendido, não com base em razões de natureza histórica, meramente, mas porque verdadeiramente o país se revela incapaz de absorver os seus talentos. O que, por conseguinte, reclama maior/melhor imaginação de modo a que possa internamente encaixar o maior número possível dos seus quadros. A perda poderá revelar-se irreparável, a curto médio e longo prazo.

O chamado BRAIN-DRAIN (fuga de cérebros) passou a ser um fenómeno que, mais do que dividir opiniões sobre razões de natureza económica num mundo cada vez mais interdependente, deve ser encarado com base em razões de natureza fundamentalmente política.

Se juntarmos ainda a elevada emigração de mão-de-obra menos qualificada, a pergunta que necessariamente se sucede é se isso não constituirá um obstáculo ao nosso desenvolvimento. A formação de quadros, a todos os níveis, devia ser visto como um investimento e não como um custo para o país, se, para este último caso, não consegue encontrar estímulos que os determine a fixar-se entre nós.

O problema tem que ser avaliado e discutido sob esses dois planos e, para o efeito, traçadas as melhores políticas. Ora, se os nossos talentos procuram outros países e os dos outros países não nos procuram, perdemos, no mínimo, duas vezes. Não pode haver indiferença perante esta situação. Todavia, a sua discussão continua a ser feita com base numa linguajar que se assemelha entre si, porque os partidos se estremam em absolutos nas suas opiniões e adoptam a mesma atitude intolerante. Falta o meio-termo, falta a temperança, falta a honestidade e a decência políticas, falta o patriotismo, em suma.

A este propósito, convinha escutar o Presidente da República, Doutor José Maria Neves, que, nesta como noutras situações, não se tem cansado de chamar atenção para a necessidade de encontrarmos maior afectividade no exercício de funções políticas. Sendo a democracia a “institucionalização do conflito”, este, pode ser exercido com afecto, mas sem paixões, ainda que os principais actores políticos se mantenham divergentes nas suas opiniões; porque a “paixão partidária” torna as pessoas semelhantes entre si; porque de todas as paixões, a mais uniforme em seus efeitos, é o espírito de partido.

E, este problema, por ser de interesse nacional, ultrapassa, em tudo, o espírito de partido. É um problema do poder, mais concretamente, do nosso Soft Power nacional. Parafraseando Napoleão Bonaparte, diria que o bom governante é aquele que se eleva acima das lutas partidárias e  traça o caminho da verdade, como o pastor que conduz o seu rebanho.

E, é desse tipo de governante que Cabo-Verde precisa.

Praia, 15. Agosto. 2023

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 832, de 10 de Agosto de 2023

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