O poder pode não dizer que fazer, ou dizer, mas existe um “silêncio negociado” que impede as pessoas de tocarem em determinados aspectos da vida política e social. Os riscos da liberdade de expressão num meio pequeno como Cabo Verde onde tudo é partidarizado, inclusive o direito de livre expressão.
João Almeida Medina, jornalista de formação e actualmente professor da Uni-CV, em São Vicente, questiona se, de facto, existe sociedade civil em Cabo Verde, quando esta não está reflectida num grupo de indivíduos que partilham o mesmo sentido de Mundo e lutam independentemente dos seus vínculos políticos e partidários.
Em declarações ao A NAÇÃO, a propósito da polémica do “desconvite” a António Espírito Santo pelo Jornal de Domingo, fala de um historial em Cabo Verde, a que chama de uma “sociedade orientalizada”, onde organizações de base social têm um fraco poder de negociar com a sociedade política, ou seja, com o Governo e outras instituições de poder.
“Aparecem focos aqui e ali, mas sem um pensamento por trás, sem uma estratégia de acção e as tácticas certas. São análises conjunturais e propostas do imediato”, defende.
Por outro lado, diz, as pessoas que se colocam numa postura crítica em relação ao poder, os chamados independentes, acabam por ser cooptadas pelo poder, silenciam-se e desaparecem da esfera crítica.
“E a Comunicação Social, no seu todo, é o resultado de tudo isto”, acrescenta. “Os meios de comunicação públicos têm estado naquilo que eu chamo de um silêncio negociado, ainda que não haja uma negociação formal, ainda que não se diga que não se deve escrever isso de forma aberta ou não se deve dar voz a este ou àquele”, defende Almeida Medina.
Autocensura
É um silêncio negociado porque, segundo diz, “as pessoas sabem que há aspectos do poder ou da vida social cabo-verdiana que não se deve mexer”.
“Outros o chamam de autocensura, mas, para mim, colocar a questão sobre a autocensura é pensar que se trata de um ónus individual, como se um jornalista decidisse que não deve falar de isso ou aquilo. Mas, todos sabemos que o jornalismo em si é uma actividade grupal, que depende de várias pessoas”, sublinha, salvaguardando que um jornalista pode ter um texto bastante crítico e esse texto não ser publicado tal e qual por decisão dos editores.
“Depois, quando se tem uma direcção nomeada por um Governo, com base na confiança política, há toda uma estrutura criada e toda uma cultura de redacção ajustada ao poder e por mais sentido crítico que se tiver, acaba-se por sucumbir à cultura e à forma que um grupo partilha a sua visão do Mundo”, defende.
Para Almeida Medina, temos uma rádio e uma televisão públicas muito focadas naquilo que é a sociedade política, estritamente ligado aos partidos com assento no parlamento. Facto, aliás, referido pelo último relatório da ARC, sem que ninguém tenha pegado nesse documento para a devida e merecida análise.
“É tão desanimador que temos temas, como a economia, por exemplo, que são debatidos na Assembleia Nacional e depois convida-se deputados dos partidos para discutirem na televisão pública, ou na Rádio, acabando todos por fazer politicagem sobre uma matéria tão importante para a sociedade cabo-verdiana”, elucida.
Para este analista, com isso, é como se a sociedade cabo-verdiana não fosse capaz de pensar fora dos espartilhos dos partidos políticos que, além do Parlamento, acabam por dominar todo o espaço de influenciação pública.
A questão que fica no ar é se haverá, em Cabo Verde, pensamento fora do quadro partidário, num país tudo que se disser é visto, antes de mais, como uma tomada de posição a favor do partido A, B ou C. Aliás, é disso que fala Felisberto Vieira, quando se recusa a representar o PAICV.
O drama de encontrar debatedores
José Mário Correia, director da Rádio Alfa e apresentador do programa Economia Viva, na mesma estação, diz que é extremamente difícil encontrar analistas dispostos a expressarem o seu pensamento numa perspectiva crítica, verdadeira, relativamente a qualquer que seja o assunto, seja ele político, económico ou social.
“O país é muito pequeno, todos se conhecem, as pessoas são amigas e são todas familiares umas das outras, de alguma forma ou de outra. Então, fica extremamente complicado encontrar alguém predisposto a arriscar o seu capital de amizade, de interesses comestíveis, etc., emitindo uma opinião que pode não agradar a quem está particularmente no poder”, refere.
A classe política e os decisores, de um modo geral, segundo diz, “ta graba faxi”, como se diz em crioulo.
“Emites uma opinião verdadeira, oportuna, que responde aos objectivos globais da comunidade, no dia seguinte precisas de resolver um problema – numa perspectiva pessoal ou institucional – e lá está um ‘carrasco’ à tua espera para contigo ajustar as contas, ou no mínimo pedir-te contas sobre uma opinião que emitiste em algum lugar. Justamente, porque vê na tua opinião um exercício partidário, com o intuito de o prejudicar”, indica.
E se os partidos, para além do parlamento, dominam também a esfera mediática, José Mário Correia diz que é inevitável que a a massa crítica “caia simplesmente na amorfia, ostraciza-se, estigmatiza-se e desaparece”.
“No fundo, há muito que a sociedade cabo-verdiana está a caminhar para a ausência de autonomia relativamente ao Estado, organizando-se sempre de forma dependente, não voluntária. E isso interessa ao poder político, qualquer que seja ele. Os políticos, os governantes, querem uma sociedade calada, que não tenha voz”, defende.
O jornalista, que tem um programa de debate aos sábados, na Rádio Alfa, diz enfrentar grandes dificuldades para encontrar pessoas dispostas a debater questões da vida política, económica ou social, particularmente, as pessoas que estão ligadas ao poder em Cabo Verde, num claro exercício de medo de represálias por eventual opinião que vá em contramão ao que partido no poder defende.
Mesmo assim, defende como ideal a não perder de vista, nos debates sobre os assuntos de interesse do país, “as pessoas não podem ser convidadas em representação de interesses políticos, sob pena de minar, de forma grave, discussões de interesse colectivo”.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 832, de 10 de Agosto de 2023