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Palavras de imagem e sinestesias: Ideofones, tema para explorar imaginação Angolana*

Por: Luís Kandjimbo**

Sobre o tópico que hoje proponho – os ideofones – lembro-me de ter conversado com o malogrado Costa Andrade, Ndunduma we Lépi, o poeta e ensaísta angolano, natural do Huambo, há mais de duas décadas. Essa é a circunstância que desencadeou as minhas interrogações com interesse para o estudo dos ideofones.

O tópico

Foi a propósito do seu livro «Dizer Assim…», uma colectânea bilingue, Umbundu/Português, de provérbios, adivinhas e contos, publicada em 1985, na colecção «Cadernos Lavra & Oficina» da União dos Escritores Angolanos. Espontaneamente, ocorreu-nos falar acerca das expressões enfáticas, interjeições ou onomatopeias sinestésicas do Umbundu. Ele foi proferindo expressões que referiam percepções dos sentidos e eu completava-as enunciando o ideofone correspondente.

Os ideofones existem em todas as línguas Bantu de Angola. Lamentavelmente, pouca atenção lhes tem sido dedicada. Vamos tê-los como tópico de conversa. Deste modo,  estaremos a reconhecer a riqueza patrimonial deste segmento do sistema linguístico angolano que coexiste com outros elementos constituintes do sistema cultural, até porque está muitas vezes ao serviço da imaginação e da liberdade criativa.

O uso da imaginação criativa constitui assunto frequente nas conversas dos que se dedicam à criação artística, visual, performativa, cinematográfica, musical e literária. No pólo da produção, são vários os materiais com que se trabalha e que suscitam reflexões nesta matéria. O manejo da imaginação com as línguas é um deles. Mas, no pólo da recepção, nem sempre os usos dos produtos da imaginação se revelam suficientemente explorados. Por essa razão, parece interessante trazer à conversa os ideofones. São enunciados onomatopeicos, corrente e imaginativamente, usados para reforçar o sentido de uma expressão línguística ou, por vezes, de uma simples palavra, enunciada em determinada circunstância para manifestar um estado de espírito.   

Não sendo possível tratar exaustivamente os ideofones de todas as línguas nacionais, trataremos apenas de alguns extraídos da língua Umbundu.

Ideofones como estados mentais

Do ponto de vista nominal, a definição do ideofone foi formulada, em 1935, pelo linguística sul-africano, Clement Martyn Doke (1893-1980), que se dedicava ao estudo das línguas Bantu.  Por ideofone entende-se a representação fonética da ideia que uma pessoa pode ter do significado de uma expressão linguística, enunciada perante determinada situação. Pode ser uma onomatopeia que reforça o sentido de um predicado, adjectivo ou advérbio, correspondendo a um som, ao cheiro, à acção, ao paladar e à imagem visual, ou a um determinado estado ou intensidade.

Os ideofones são actos de fala e eventos eminentemente linguísticos a que estão associados imagens mentais que permitem identificar propriedades que são atribuídas a determinados objectos imaginados ou situações imaginárias. Ao reflectir sobre os ideofones, intressa-me  o conteúdo desses estados mentais.

Enquanto fenómenos linguísticos, é possível elaborar uma tipologia de ideofones. Por exemplo, há propostas como a que se segue: a) ideofones puros; b) ideofones onomatopeicos; c) substantivos, advérbios e verbos ideofónicos. Na língua ciLuba da República Democrática do Congo, os ideofones e as onomatopeias são consideradas «palavras de imagem».

Em seguida, temos alguns exemplares de ideofones da língua Umbundu com particular destaque para a sua dimensão sinestésica, isto é, combinação de expressões que permitem identificar a percepção dos cinco sentidos.

Cores

1) Ciatekãva (cor preta) – ideofone: Mbum

2) Ciakusuka (cor vermelha) – ideofone: Nguén

3) Ciakusuka (cor vermelha) – ideofone: Nguriun

4) Ciayela (cor branca)- ideofone: Phé

Cheiros

1) Cianeha (objecto que exala urina) – ideofone: Chion!

2) Waneha (pessoa com roupa exalando urina) – ideofone: Chion!

Som

1) Movava ciyalinga (ruído de animal que mergulha nas águas do rio) – ideofone: Mbuim!

2) Ombweti (golpe com cacete ou objecto semelhante) – ideofone: Uipu!

Estado

1) Mwiayela (limpeza de espaço, visualidade) – ideofone: Phé!

2) Mwaneha (higiene, cheiro) – ideofone: Chion!

3) Wakolua (embriaguez) – ideofone: Tupi!

4) Wapita apa (ironia sobre quem deambula sem destino) – ideofone: Tumbua, tumbua!

5) Ombenje (o recipiente cheio) – ideofone: Tó!

Movimento/Comportamento

1) Atako (movimento das nádegas de mulheres vaidosas) – ideofone: Pwaka, pwaka!

2) Wanda (referência ao enviado que não regressou) – ideofone: Ñgwa! ou Kuví!

3) Opopia (qualificação negativa de participação em conversa) – ideofone: Fionkó, fionkó!

4) Wohila ko (comportamento de quem está calado) – ideofone: Ñgun!

Otãi (alguém que está de pé em silêncio) – ideofone: Miu!

Ideofones e Filosofia Mente

Pode dizer-se que os ideofones projectam estados mentais da imaginação individual ou social. Na filosofia africana, os estados mentais têm sido debatidos no âmbito da tematização dos problemas da cognição, da  mente e da linguagem. Num texto publicado em 1987, o filósofo ganense Kwasi Wiredu (1931-2022) considerava que na comunidade Akan do Ghana, a mente distingue-se da alma e do espírito. Além disso, alma e espírito, não são entidades puramente imateriais, tal como se entende nas filosofias ocidentais da mente. Para Wiredu, o conceito de mente apresenta dois sentidos: 1) ideativo; e 2) disposicional. É ideativo quando se concebe a mente como sendo constituída por pensamentos. A mente não pensa. O pensamento é que é pensado quando há pensamento. O que distingue a mente tem uma estrutura corporificada em determinado indivíduo. Os pensamentos constituem os elementos de que a mente é feita. Mas, a mente também é disposicional. Isto quer dizer que qualquer pessoa tem uma potencial capacidade para pensar.

Portanto, para Kwasi Wiredu a filosofia da mente deve ter no seu horizonte a sistemática actividade que consiste em clarificar conceitos e teorias sobre almas ou espíritos, partindo de uma base empírica. É necessário admitir que uma definição coerente de espírito ou alma implica saber se essas entidades existem realmente. Esta é a tese do quase-fisicalismo de Kwasi Wiredu. Ele não defende o fisicalismo. Na filosofia ocidental, o fisicalismo é uma corrente de pensamento segundo a qual a física é a matriz de todas as ciências. Por isso, os estados mentais e a imginação devem ser tratados como fenómenos físicos.

No entanto, o clássico problema ocidental «mente-corpo» não se coloca na Filosofia da Mente em África, na medida em que a mente não é concebida como uma entidade. Na mesma perspectiva de Kwasi Wiredu, dir-se-ia que em língua Umbundu, de igual modo, a mente é sobretudo uma competência disposicional. Pode traduzir-se como «utima», «uloño» ou «olondunge». Derivam daí «ovisimilo», os pensamentos. Como tal, a mente, «uloño», enquanto competência disposicional, permite articular a relação com o cérebro, «owoño», embora «utima» e «olondunge», sejam igualmente faculdades ou competências humanas. O sujeito que detém uma competência vocacional como esta, o sábio, designa-se «onoño».

Filosofia da imaginação e sinestesia

Embora seja um domínio explorado pela filosofia da mente, a imaginação tem vindo a constituir um campo autónomo da filosofia. Por isso, fala-se hoje de uma teoria filosófica da imaginação. Quando se procede à avaliação das suas correntes, verifica-se que merece atenção especial a estrutura da imaginação e a classificação dos tipos em que se analisa. Entre as diferentes posições que conformam as teorias filosóficas da imaginação destaco algumas delas, tal como as classifica a filósofa norte-americana Amy Kind.

Comecemos pelo chamado quebra-cabeças do uso imaginativo que comporta dois tipos de imaginação. De um lado, a imaginação de uso transcendente. É o caso da literatura que nos permite criar e sonhar com mundos possíveis. Por outro lado, a imaginação de uso instrutivo. É o que ocorre quando projectamos ou tomamos decisões sobre o futuro.

Seguem-se as perspectivas que pretendem explorar a imaginação do ponto de vista  estrutural. Em primeiro lugar, a imaginação é considerada como estado mental que não se confunde com outros tipos, tais como a percepção, a crença e a memória; Em segundo lugar, a imaginação apresenta sempre um conteúdo intencional; Em terceiro lugar, a imaginação não é necessariamente verdadeira, tendo em atenção o facto de não estabelecer qualquer conexão com a verdade.

Apesar de serem fenómenos que se inscrevem no domínio da filosofia da mente, os ideofones constituem uma problemática típica da filosofia da imaginação. Os ideofones que apresentámos carcterizam-se pela forma especial de se revelarem como veículos de sinestesias. Neste caso, a sinestesia enquanto dispositivo estilístico é uma figura de pensamento que consiste em combinar «palavras de imagem», através de um enunciado em que o sujeito de enunciação exterioriza a sua experiência imaginativa, associando a síntese descritiva de uma determinada situação ao seu elemento caracterizador que pode ser a visualidade, a cor, o cheiro, o paladar.

Portanto, a sinestesia que era uma figura de estilo confinada aos estudos literários e à psicologia, tem vindo a suscitar a atenção das ciências cognitivas e das neurociências. Quanto a mim, não é desprezível trazê-la igualmente à filosofia da imaginação.

*Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 24 de Abril, aqui republicado com a autorização do autor

**Ensaísta e professor universitário

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 765, de 28 de Abril de 2022

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