Por: Germano Almeida
Se o caso Amadeu Oliveira (AO) fosse apresentado aos alunos de uma escola de direito, eles certamente diriam tratar-se de uma absurda elucubração de um professor malvado e apenas destinado a exasperar os estudantes.
E, no entanto, essa verdadeira hipótese académica está a acontecer na realidade da nossa pequena sociedade e perante o olhar compassivo de todos os poderes constituídos que, tendo embora consciência desse vergonhoso ataque ao Direito e à Justiça e aos valores, fecham os olhos ou preferem fingir não estar a tomar fé dos clamorosos abusos que continuam acontecendo, tendo como alvo um homem quase sozinho que, para desespero dos seus algozes, continua resistindo sem se deixar abater. Pelo menos até agora!
Todos se lembram da campanha de José Maria Neves para presidente. Os temas mais focados como necessidades imediatas da população a pedir urgência de resolução foram JUSTIÇA e TRANSPORTE entre as ilhas, fosse aéreo, fosse marítimo.
Aparentemente foram esquecidos ainda durante a investidura. E, no entanto, a Justiça continua uma vergonha. E os Transportes uma lástima.
Eu pessoalmente não me queixo. Há dias na Praia mandaram-me ir ao aeroporto ao meio—dia, porém só cerca das dez da noite apanhei avião para S. Vicente. Mas eu não me queixei, mesmo a desoras acabei viajando. O presidente da República nem isso!
Ora só pode ser obra do Divino, a lembrar-lhe que promessas de campanha são contratos, e os contratos precisam ser pontualmente cumpridos. Antigamente os deuses cobravam prontamente os faltosos. À mínima falha, zás! Agora não, agora estão mais condescendentes. Mas não esquecidos. E se vêm o presidente a seguir em frente rumo a um eventual abismo, mostram quem manda.
Mas se os transportes clamam por ordem, que dizer da JUSTIÇA? A Justiça está nas ruas da amargura, e o processo do Amadeu Oliveira é um exemplo flagrante que seria caricato se fosse realmente uma hipótese académica, se não houvesse um homem de carne e osso sofrendo esses horrores de ilegalidade perante a indiferença de tudo quanto é poder nesta terra, a começar pelo presidente da República, a terminar nos guardas prisionais, na pessoa do seu diretor-geral.
Daquilo que conheço, o processo do Amadeu só tem comparação com O Zero e o Infinito, um livro de Arthur Koesteler, ou 1984, de Orwell ou então com O Processo de Franz Kafka. São livros de ficção, verosímeis em certas realidades mas que ninguém alguma vez sonhou poderem acontecer na nossa terra. E, no entanto, muitas dessas monstruosidades persistem entre nós, não em formas legais, antes em formas perfeitamente arbitrárias.
Vejamos o caso do incidente de suspeição requerido pelos advogados do Amadeu Oliveira relativo ao seu primeiro interrogatório presidido pelo desembargador Simão Santos (SS) em 30.07.2021. O arguido é licenciado em direito e por isso sabe que antes de tudo o mais o processo deveria ter sido distribuído por sorteio entre os juízes do Tribunal de Relação. Questionou, portanto, o desembargador SS sobre esse ponto, invocou mesmo o princípio do juiz natural, porém o desembargador respondeu e escreveu em despacho constando dos autos que “… no caso em análise, o processo ainda se encontra na fase de instrução o que quer dizer que está longe de passar a fase jurisdicional, logo não houve nem poderia ter havido distribuição de processo aos juízes do coletivo deste tribunal. E estando longe de se fazer a distribuição do processo não se pode falar de despacho do Relator”. Tendo acrescentado ainda que interveio na primeira fase preliminar do processo… apenas para fazer o interrogatório do detido, validar essa detenção e aplicar medida de coação processual ao arguido.
É um despacho de duvidosa validade legal, parece mais um desculpa de mau pagador, mas deixemo-lo em paz, tanto mais que três meses depois, mais propriamente em 01.10.2021, a um requerimento do arguido Amadeu Oliveira a perguntar sobre o assunto, a juiz presidente do tribunal de Relação de Barlavento, respondeu taxativamente que …”neste Tribunal ainda não foi distribuído qualquer processo em que o requerente consta como arguido”.
O arguido Amadeu continuou insistindo na violação do princípio de juiz natural e reclamando explicações sobre o não cumprimento da lei constitucional. E eis que no dia 04.03.2022 chega a desejada explicação: o desembargador SS, ignorando a pés juntos o seu despacho de 30.07 como se ele nunca tivesse existido, produz novo despacho em que diz expressamente que “…deve-se esclarecer que, no caso concreto (caso AO), assim que os autos foram entregues neste Tribunal de Relação de Barlavento, houve sorteio entre os Juízes que compõe o Tribunal, afim de saber qual deles deveria fazer o primeiro interrogatório do detido e subsequentes intervenções judiciais em sede de instrução do processo, foi encabeçado pelo Presidente do Tribunal e feito na presença dos dois Juízes do dito Tribunal e da secretaria”.
A maior vergonha é que esse último despacho viria a ser confirmado como tendo existido e ser portanto verdadeiro, pelas desembargadoras Circe Mendes e Maria das Dores, durante a audiência de discussão e julgamento.
Foi na sequência dessas falsidades que a defesa intentou o incidente de suspeição oposto aos juízes do processo, considerando que não mostram condições de veracidade e portanto isenção, para proceder a julgamento justo.
Nos termos legais (artº 125º do CPC), o processo principal deve prosseguir, mesmo tendo sido interposto incidente de suspeição, porém com um juiz substituto. E a decisão final só deverá ser proferida depois de julgada a suspeição. Ora não só o processo seguiu com as juízas suspeitas, como a decisão final está marcada para o dia dez deste mês. Da decisão do incidente, até agora nada se sabe. E, no entanto, nos termos da lei de processo, a decisão do incidente antecede obrigatoriamente a decisão da causa principal.
São, pois, essas prepotentes arbitrariedades que acabam tendo a cumplicidade, ainda que passiva, dos demais poderes do Estado, que levam a que cada vez se tenha menos fé e menos confiança nos juízes e, portanto, nos tribunais. É pena não serem investigados os diversos casos de falsidade apontados pelo Amadeu Oliveira contra alguns magistrados. Nunca se fez nada em nome dessas denúncias que, por serem tão graves, justificavam uma investigação independente por uma comissão credível.
Ao invés, aproveitou-se uma falsa oportunidade para meter a ferros o Amadeu Oliveira, e assim tentar cala-lo. Pode ser que consigam. Porém, a nódoa desse processo e da mais que provável condenação do Amadeu a anos de prisão, ficará perene na nossa justiça, a mostrar como a sociedade precisa e devia exigir magistrados impolutos e acima de qualquer suspeita, de homens e mulheres sem medo e sem máculas, livres de qualquer “porém”, de forma a poderem enfrentar e se oporem aos desvios de poder de seja quem for. Para que as suas decisões e sentenças fiquem isentas de suspeitas de pressões, favorecimento ou compadrio, formas perversas de corrupção.
Com efeito, que confiança se pode ter na seriedade de um juiz que no mesmo processo diz no dia 30.07.21 que não houve nem poderia ter havido distribuição do processo aos juízes do coletivo, e vem depois no dia 04.03.22, corroborado pelas colegas, garantir ter havido sorteio entre os juízes sim senhor?
Quem de poder deveria pedir uma explicação aos juízes da Relação de Barlavento, ainda antes de proferirem acórdão acerca deste processo.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 792, de 03 de Novembro de 2022