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A diplomacia de Cabo Verde e o povo Saharaoui num mundo atribulado

Por: António Monteiro Lima*

1. A diplomacia não é um catavento que muda em função dos tempos ou dos indivíduos, e não pode por isso ser usada sem ter em devida conta as razões que se perfilaram atrás de posições anteriormente assumidas por um dado Estado. A diplomacia é, desde sempre, uma arte e um exercício exigente que impõe regras estritas de confiança e reciprocidade, a bem da comunidade internacional no seu todo.

Por isso, mesmo que não estando Cabo Verde diretamente implicado em nenhum conflito, mas vivendo num contexto regional e internacional atribulado e de grandes perigos, importa sempre ter comedimento na observação da realidade concreta, uma constante objetividade na análise nas tomadas de posição em determinados assuntos, sobretudo os da alçada do Conselho de Segurança da ONU.

2. No caso do Sahara Ocidental, ao reconhecer a “integridade territorial de Marrocos”, Cabo Verde nunca foi tão longe na «remise en cause» dos fundamentos da sua política externa. O Presidente da República também já se tinha referido, e terá de explicitar o seu pensamento, a nosso ver, a essa «integridade do Reino de Marrocos» em entrevista que passou despercebida, uns meses atrás. Pois, na diplomacia cada palavra tem um significado. E não vou insultar a inteligência de ninguém dizendo que talvez não se pensasse na inclusão do Sahara Ocidental ao falar da “integridade” do Marrocos sabendo que por trás estava a questão do Sahara. As assessorias diplomáticas e as nossas representações externas, particularmente a Missão Permanente na ONU existem por alguma razão.

Acreditava eu, piamente, no que toca a Marrocos, que Cabo Verde não chegaria ao ponto de alterar as próprias capacidades negociais de país pequeno, arquipelágico e, embora tendo alcançado o nível de país de rendimento médio, detém ainda muitas fragilidades e níveis sérios de pobreza que necessitam ainda bastante savoir-faire político-diplomático, das nossas autoridades para navegar no «mar brabo» da cena internacional e consolidar o desenvolvimento destas ilhas ditas «afortunadas».

3. Com efeito, após a instalação, no ano passado, de uma Embaixada em Rabat e de um Consulado em Dakhla no território saharaoui, veio recentemente, o Sr. Primeiro-Ministro a dizer que Cabo Verde e o Marrocos tinham passado para uma nova era das suas relações com o referido reconhecimento da integridade do reino marroquino (embora houvesse já um reconhecimento tácito desde que um consulado foi instalado, a expensas de Marrocos, em Dakhla). O tácito se torna, assim, explícito.

O problema reside no facto de esse reconhecimento integrar o território do Sahara Ocidental ocupado por este país e protegido por 2700 km de um muro militarizado e significa a aceitação do plano de autonomia alargada do reino de Marrocos, que não é senão a aceitação de um ato de força, à revelia dos esforços da MINURSO (Missão das Nações Unidas para o Referendo do Saara Ocidental).

Cabo Verde vira com isso as costas, resolutamente, às políticas sucessivas sobre a questão do povo Saharaoui à autodeterminação, respondendo favoravelmente ao plano meticulosamente levado a cabo pelo reino de Marrocos, desde 2019, para levar um máximo de países membros da ONU, nomeadamente europeus e africanos, a aderirem às teses marroquinas, de forma a tornar a sua anexação do Sahara como um facto consumado.

Se Donald Trump, a seu tempo, deu, à troca do reconhecimento de Israel por Marrocos, o seu apoio ao Reino, abrindo uma Representação Diplomática em Dakhla, hoje o Chefe da diplomacia US, Anthony Blinken, reafirma o apoio ao Steffan de Mistura, chefe da MINURSO que está a intensificar o processo da ONU na busca de uma solução política justa, digna e duradoira.

Aqui, é preciso notar que ter um país como Cabo Verde, país que fazia parte dos 26 países da OUA a reconhecer a RASD após a sua criação, constitui, por aquilo que isso representa, um trunfo inestimável para o reino de Marrocos e um argumento político de peso para convencer outros “atrasados” e “indecisos”. Com a sua mudança de campo, Cabo Verde serve de isca num jogo diplomático conturbado em que o Reino de Marrocos é o único beneficiário. O reino poderá explorar as enormes riquezas do Sahara ocidental com a bênção internacional e aumentará seu peso político-diplomático frente à Argélia e no continente.

Mais grave, Cabo Verde deu também, com isso, um passo à revelia das posições adotadas pela Assembleia Geral e pelo Conselho de Segurança da ONU que preconizam desde a Resolução 1754, de 30 de abril 2007 em particular, adotado pela unanimidade dos membros do Conselho de Segurança, a organização de um referendo sobre a autodeterminação no Sahara ocidental, cuja situação continua sob a alçada da 4° comissão sobre a descolonização entre outros, a mesma que examinou o caso da Guiné-Bissau e de Cabo Verde nos idos anos 60.

Um dos nossos governantes disse que Marrocos apresentou o seu Plano ao CSONU, mas não disse se foi adotado por este órgão máximo da ONU ou mesmo se foi posto a votação. Se tivesse sido adotado, hoje não se falaria da questão do Sahara Ocidental. De que valem afirmações de vontade ou de posição se não estiverem assentes na coerência e na verdade histórica?

É necessário lembrar aqui que a MINURSO criada pela resolução 690 de 29 de abril de 1991, devido a dificuldades de vária ordem e nomeadamente políticas, não conseguiu desde então criar as condições para a realização desse referêndum sobre a autodeterminação segundo o preconizado pelo Conselho de segurança. A situação desse órgão da ONU é reveladora da falta de vontade política hoje enraizada nas relações internacionais sobre muitos tópicos. A inércia do próprio Conselho de Segurança não está alheia a essa situação de impasse aproveitada pelo reino de Marrocos, que procura avançar com iniciativas e planos destinados a contornar as resoluções da ONU, esvaziando-as de significado. Aplica assim a conhecida política daqueles que não querem conformar-se com as decisões do CSONU, uma política de faz de conta que recorre a adiamentos sucessivos ou a subversão das ações concretas no terreno, em cumprimento «soi-disant» do texto das resoluções da ONU e procura minar as decisões de fundo com permanentes ajustamentos e tentativas de substituição de palavras chaves das resoluções adotadas, ano após ano, visando em definitivo  alterar o texto, diluir o sentido da decisão e tornar inverosímil ou inaplicável a própria decisão adotada…

Acontece, assim, também, com dezenas de resoluções do CSONU sobre a Palestina ou o território de Gaza que são contornadas, desvirtuadas devido a essa permanente reescritura dos textos das resoluções, tornando a sua interpretação muito difícil. É assim que a última resolução do CSONU sobre o Sahara Ocidental em outubro de 2022 foi saudada pelo reino de Marrocos apesar de reafirmar a organização de um referêndum do povo saharaoui.

Procura-se, com isso tudo, criar um facto consumado em prejuízo do povo saharaoui que se vê dia após dia empurrado para uma guerra que não pode ganhar, atrás de um muro que divide o seu território, só lhe restando a parte empobrecida e a esperança depositada em países como o nosso que até agora defendia os valores que nos deram a independência e a coerência de posição que trouxe credibilidade ao país. Quem somos nós para apostar no derrotismo e no falhanço perante o patriotismo e a vontade inquebrantável de luta de um povo?

Não nos esqueçamos que foi o referendo da ONU organizado em Timor-Leste que permitiu a esse país não ser literalmente aniquilado por um vizinho poderoso e constituir hoje um membro respeitado da ONU e da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa).

Fica patente que abdicamos de um eventual papel de mediação ou de observador imparcial, mas também ajudamos na desvalorização de qualquer discussão entre as partes interessadas que continua sendo um dos mecanismos ainda ao alcance da MINURSO para chegar a um entendimento e a instauração da paz no Sahara ocidental.

Marrocos não só dificulta por todos os meios (incluindo alterações populacionais a seu favor) a realização de um referendo da ONU justo e aceite por todos, mas vende a quem o quiser ouvir o seu plano que preserva 80% das terras mais ricas saharaoui para esse reino e abandona o resto àqueles que são obrigados a viver num território pauperizado ou nas tendas de Tindouf em território argelino. «Tristes trópicos», como diria Claude Lévi-Strauss, pois, desde os anos 70, que temos a visão de um povo pobre, mas digno, apenas disputando ao mais poderoso os seus inalienáveis direitos à autodeterminação e independência.

3. Cabo Verde, em 2007, de facto, suspendeu/congelou o reconhecimento da RASD e desenvolveu relações frutíferas de cooperação com o reino de Marrocos que continuam até hoje e permitiram ganhos palpáveis em alguns setores importantes como a Energia/Electra, a formação de quadros ou a aviação….

É claro que, após decénios de espera pela resolução da questão do Sahara, não se podia nem desistir indefinidamente de relações normais com o reino de Marrocos, nem renunciar aos princípios de fundo que sempre nortearam a nossa política externa. Pois nunca Cabo Verde tinha posto em causa o direito inalienável do povo saharaoui à autodeterminação. Deve-se reconhecer que a estratégia do POLISARIO de passar pelo reconhecimento da RASD poderá ter sido precipitada e pode não ter sido a mais inteligente perante o poderoso adversário do qual talvez não se esperava tanto malabarismo político e engenhosidade no jogo diplomático.

É claro também que no contexto daquele momento, a criação de um Estado soberano fazia sentido e todos queríamos ser independentes e donos dos nossos destinos. E é possível naquela altura, que o velho e experiente reino tenha sido subestimado. Estivemos, por exemplo em Trípoli, por alguns dias em agosto de 1982, à espera de vários países-membros participantes, para podermos reunir o conselho de Ministros da OUA sobre, entre outros, a questão do Sahara Ocidental, reunião essa que não se realizou in fine por falta de quórum. A África claramente estava dividida sobre essa questão.

Cabo Verde achou realista, oportuno e pertinente em 2007 alinhar-se com a posição de compromisso da ONU, até porque o Rei Mohamed V apoiou as diferentes lutas de libertação e   contribuiu para a formação de guerrilheiros dos vários movimentos de libertação africanos. Tratava-se de um recuo? No plano diplomático, provavelmente, mas não no plano dos princípios, pois o reconhecimento de um Estado faz parte do arsenal diplomático de um país.

4. Neste mundo dominado pelos poderosos e enraizado na hipocrisia, o povo saharaoui vive encurralado entre a derrota pelas armas e o desespero da subjugação, e, agarrado à Carta da ONU, só pode ter uma última carta a jogar: a da solidariedade internacional em geral e africana em particular. O grito saharaoui deveria ecoar pelo mundo com o apoio dos países do continente e não o é porque muitos de nós esquecemos de onde viemos e perdemos os traços de quem somos.

Não sou o único a pensar que poderíamos estar numa situação semelhante, não fosse o genial estratega que foi Amílcar Cabral e, entre outros, a denúncia perante as Nações Unidas, após a libertação de 2/3 do território, de que a Guiné era doravante um país ocupado por um exército estrangeiro. Essa visão inovadora do resultado do combate libertador, levou os últimos recalcitrantes na ONU, a rejeitar as teses antiquadas do Portugal colonialista e a apostar em novas entidades independentes. A solidariedade africana e do mundo foi determinante na vitória dos movimentos de libertação.

A África Austral talvez não teria conhecido a paz tão cedo se não fosse a contribuição decisiva dos países da linha da frente da OUA/UA, de Cuba em Cuito Cuanavale (cujos contingentes passaram por Cabo Verde), a participação concreta dos artilheiros do PAIGC em defesa de Angola, as reuniões secretas sobre a África austral dos anos 80 organizadas pelo governo de Cabo Verde no Sal (onde pela primeira e única vez na historia, Representantes dos EUA, do governo Sul africano, Russos, Cubanos, a ANC da Africa do Sul, SWAPO da Namíbia e MPLA de Angola se encontravam) entre as partes em conflito e o empenhamento esforçado e constante de Cabo Verde.

Com o posicionamento atual do nosso país, estamos a dar a mão aos poderosos ignorando os interesses dos mais fracos e a desviar do nosso percurso como povo. Pois, para quem estiver a viver sob o jugo estrangeiro é muito duro ver-se confrontado com mais poderoso, sem poder contar com uma esperada mão amiga.

5. Assim, não há continuidade entre a posição atual assumida pelo Governo e as posições anteriores de Cabo Verde. Trata-se, pelo contrário, de uma nítida rotura com as posições de princípios anteriores. Aliás as duas posições (a favor do plano marroquino ou a favor da autodeterminação do povo Saharaoui) estão na base de todas as discussões sobre o Sahara Ocidental na ONU até hoje.

Isto é, Cabo Verde mudou de campo, perdendo posições de princípio e arriscando um pouco mais a sua credibilidade no plano diplomático, seu bem mais precioso nas negociações da vida internacional, que dura e esforçadamente vinha criando no mundo. Diz-se hoje que os princípios não são imutáveis, no entanto, foi o acreditar na inalienabilidade do direito a autonomia e independência dos povos, inscrito no texto da resolução 1514 (XV) de 14 de dezembro de 1960 da Assembleia Geral da ONU, que levou muitos a juntarem-se ao Movimento independentista e a acreditar que um dia surgiria a luz no fundo do túnel. Por sermos um pequeno país, sem grandes recursos e sem muito significado na geoestratégia das grandes potencias quer do Norte quer do Sul, ter posições de princípio e credibilidade é importante no plano político-diplomático e bem cedo representou uma carta de valor nas negociações do país e na obtenção de um partenariado aberto, seguro e duradoiro para o desenvolvimento.

Lembro-me bem, aqui, da mudança de paradigma do PAM (Programa Alimentar Mundial) a favor das nossas posições quanto a venda da sua ajuda alimentar e não distribuição e a criação de um Fundo de contrapartida controlado pelos seus experts em beneficio de projetos no campo; tenho presente igualmente da aceitação do regime do apartheid em sentar-se a mesa não só com o ANC da Africa do Sul ou a SWAPO da Namíbia, com os quais estava em guerra, mas também com os cubanos revolucionários e os outros participantes nas negociações do Sal. Sem credibilidade e sem princípios não se consegue grandes feitos históricos.

Alguns poderão falar de nova diplomacia realista ou pragmatismo moderno, essa forma de negar uma vontade própria a um povo, ao sucumbir ao canto da sereia marroquina. Mas nenhuma diplomacia hoje pode ignorar os princípios e valores universais inscritos nas Cartas da ONU e da UA, pois seria a negação da história e do que somos e mais, seria a autorização para todas as ilegalidades internacionais e o advento de um mundo sem nexo onde domina o poderio e fracassam os sonhos dos fracos.

Um mundo sem os princípios e valores da ONU é um mundo intolerante e ideologicamente perverso que levou já a duas guerras mundiais e ameaça surgir de novo por falta de visão e incompetência de muitos dirigentes no mundo. Assim, a guerra na Ucrânia e as suas consequências desastrosas para o mundo perante a rigidez ou mesmo o irredentismo daqueles que querem perpetuar a guerra, em vez de dar uma chance a paz; a subida de forças da extrema-direita, intolerantes, racistas e com objetivos claros por toda a Europa; a disseminação lenta, mas contínua e efetiva em África, nomeadamente na nossa sub-região, do extremismo e do fanatismo religioso e, um pouco por todo o planeta, dirigentes que mais parecem ditadores à socapa do que líderes inspirados da democracia. Os perigos reais que conhecemos hoje no mundo não têm outras respostas que não sejam baseadas em princípios firmes e valores profundos, sem o que ninguém saberá encontrar soluções adequadas e todos poderíamos experimentar de novo o horror da «besta imunda».

6. Neste contexto mundial complexo, de difícil compreensão muitas vezes, verdadeiramente assustador, mas que justamente por isso, não pode dispensar nem os princípios nem os valores inscritos na Carta da ONU, a questão do Sahara Ocidental tornou-se numa questão moral e política, bem como diplomática. Por mais que decidamos a favor ou contra as soluções propostas por apenas uma das partes, uma solução real, duradoira, justa e aceitável para todos só pode surgir com a participação efetiva das partes, um diálogo genuíno baseado no espírito de consenso e a vontade de alcançar uma solução justa e duradoira. 

Ao recorrer ao alinhamento dos países aliados, com base numa proposta única de uma das partes, colocamos a carroça à frente dos bois e na verdade, não resolvemos nada. A solução de autonomia baseada na soberania de Marrocos não pode ser uma real solução porque não tem um mínimo de respeito para quem mais necessita e é usada como um engodo para ludibriar e marcar pontos num jogo onde o povo saharaoui não é chamado. É contrária aos direitos inalienáveis dos povos à autonomia e independência, sem os quais este mundo seria um mundo de brutos onde impera a força como do tempo das caravelas. 

O argumento de que é hora de acabar com uma situação de conflito que já dura demais, mas escolhendo uma parte contra a outra é pernicioso e revela grande má-fé. Com esse argumento, a comunidade internacional não se beneficiaria hoje das contribuições positivas de Timor-Leste e de muitos outros países, e todos aqueles que tiveram que recorrer às armas para conquistar a sua libertação e os seus direitos ainda estariam sob o jugo do apartheid e do domínio colonial. E que dizer dos muitos territórios não autónomos como se diz hoje, ainda sob a alçada da 4ª Comissão da Assembleia Geral da ONU que ainda esperam pela sua autonomia e têm de viver sob as aparências de uma falsa liberdade, dependendo das migalhas de outrem. Mas a solidariedade, o respeito pelos princípios e a vontade de paz existem no seio da comunidade internacional. Sonhamos com um mundo de fraternidade e solidariedade que pode parecer utópico. Mas nos sabemos em Cabo Verde que a utopia pode se tornar realidade se soubermos acreditar nesse sonho.

* Embaixador Diplomata de carreira na reforma, Combatente da liberdade da Pátria

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 820, de 18 de Maio de 2023

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