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Exercício ilegal das profissões de contabilista ou auditor certificado em Cabo Verde. Texto pedagógico

Por: João Marcos Alves Mendes*

Introdução

O acesso às profissões de contabilista ou auditor certificado, em Cabo Verde, é rigorosamente regulamentado e controlado, razão pela qual o exercício ilegal dessas profissões está sujeito à sanção penal prevista no artigo 358º do Código Penal, aplicável ao exercício ilegal de profissão regulamentada.

A combinação dos artigos 123º a 125º e 142º da Lei nº 82/IX/2020 de 26 de março, que publica o Estatuto da Ordem Profissional dos Auditores e Contabilistas Certificados (OPACC) permite identificar as situações de exercício ilegal e/ou irregular das profissões de contabilista ou auditor certificado. Contudo, na prática, quais são as situações de exercício ilegal e/ou irregular das profissões de contabilista ou auditor certificado? E quais os riscos do exercício ilegal e/ou irregular por contabilistas ou auditores não inscritos na Ordem e por contabilistas ou auditores certificados?

Definição de exercício ilegal e/ou irregular das profissões de contabilista ou auditor certificado

Um profissional exercendo ilegalmente as profissões de contabilista ou auditor certificado é definido pelos artigos 123º e 142º da Lei nº 82/IX/2020 de 26 de março (Estatuto da OPACC) como aquele que, em violação do disposto no artigo 117º e 133º da mesma lei, em seu nome e sob sua responsabilidade, praticar atos próprios das profissões de contabilista ou auditor certificado, ou auxiliar ou colaborar na sua prática, realizando trabalhos de contabilidade e auditoria ou correlativos, ou coordenando e assinando o resultado desses trabalhos, isto é, as demonstrações financeiras e as declarações fiscais e os relatórios de auditoria, revisão, trabalhos de asseguração e outros serviços relacionados.

Especificamente, os artigos 125º e 142º da supracitada lei também dispõem que o exercício das profissões de contabilista ou auditor certificado por um membro certificado da Ordem Profissional em situação de não exercício efetivo da profissão, decorrente de suspensão voluntária ou imposta pela Ordem, ou exercendo de forma diversa da estabelecida no Estatuto da Ordem, constitui exercício irregular da profissão.

Não conhecemos jurisprudência nacional a respeito da prática ilegal das profissões de contabilista ou auditor certificado, contudo, estamos cientes de que, não obstante se tratarem de profissões regulamentadas, vem sendo exercidas, a seu belo prazer, por pessoas singulares e coletivas, sem qualquer pudor, e sem que a Ordem Profissional ou qualquer outra autoridade pública os venha chamando a preceito, havendo mesmo casos de os próprios serviços estatais os convidarem a participar em concursos públicos, sem respeito pelas normas da contratação pública cabo-verdiana e outras leis que regulam o nosso estado de direito.

Como é que a Ordem Profissional pode identificar eventuais situações de exercício ilegal e/ou irregular

São numerosos os contabilistas e auditores não inscritos na Ordem, que usurpam as prerrogativas de exercício das profissões de contabilista ou auditor certificado, os únicos com direito à designação profissional e ao exercício exclusivo e/ou reservado das referidas profissões, em Cabo Verde, nos termos da lei.

A Ordem Profissional toma ou pode tomar conhecimento do exercício ilegal e/ou irregular da profissão através de denúncias verbais ou por escrito às Comissões Regionais ou ao Conselho Diretivo, por seus membros ou outras pessoas singulares ou coletivas, ou pelas entidades públicas ou de utilidade pública, que a ela são obrigados, por lei, ou até pela leitura de anúncios e convocatórias nos jornais para a eleição de profissionais ou firmas para exercício de determinados cargos nas empresas, que normalmente só podem ser exercidos pelos contabilistas ou auditores certificados.

Portanto, essas denúncias são ou podem ser feitas pelos contabilistas ou auditores certificados, não se conhecendo casos de denúncias por clientes, não obstante esses serem, por vezes, penalizados através de inspeções da autoridade tributária, em virtude de serviços deficientes que lhes são/foram prestados por profissionais não certificados.

Contudo, que se saiba, nem a Ordem Profissional se tem constituído assistente em processos criminais ou cíveis por exercício ilegal e/ou irregular das profissões de contabilista ou auditor certificado, nem os clientes ou a autoridade tributária ou qualquer outra entidade têm denunciado as eventuais situações ilegais e/ou irregulares que têm defrontado.

Cumplicidade no exercício ilegal das profissões de contabilista ou auditor certificado

O contabilista ou auditor não inscrito na Ordem que faz contabilidade de clientes ou oferece serviços de contabilidade ou de auditoria, no mercado, está a usurpar a prerrogativa do exercício da profissão pelos contabilistas ou auditores certificados. Ele está a exercer ilicitamente a profissão pelo que corre o risco de uma contraordenação ou mesmo de ser processado criminalmente.

Recorde-se que, o número 2 do artigo 123º e o artigo 142º do Estatuto da OPACC dispõem que a Ordem tem legitimidade para se constituir assistente no procedimento criminal por exercício ilícito das profissões de contabilista ou auditor certificado, as únicas que, legalmente, em Cabo Verde, podem organizar e assinar escritas ou realizar auditorias, funções essas que lhes são exclusivas e/ou reservadas, nos termos da lei.

Por outro lado, os artigos 127º e 142º do mesmo Estatuto da OPACC preveem a instituição de processos de contraordenação e a aplicação de coimas, que variam de 100.000$00 a 2.500.000$00, nos casos de promoção, divulgação ou publicidade de atos próprios das profissões de contabilista ou auditor certificado, quando efetuada por pessoas singulares ou coletivas não autorizadas a praticá-los. A condução das contraordenações é da competência do Conselho de Disciplina e Fiscalização da Ordem.

O contabilista ou auditor certificado que não denunciar o contabilista ou auditor não inscrito na Ordem, e que revê e assina as contas ou os trabalhos de auditoria efetuados por aquele pode ser punido por cumplicidade.

A cumplicidade no exercício ilegal da profissão consiste em permitir conscientemente a prática do delito de exercício ilegal das profissões de contabilista ou auditor certificado. Essa situação pode afetar o contabilista ou auditor certificado que voluntariamente colaborar na prática da ilegalidade.

A experiência de outros países nos diz que, muitas vezes, o contabilista ou auditor certificado pode ser sujeito a uma pena mais severa do que o contabilista ou auditor não inscrito na Ordem, que está a exercer ilegalmente, podendo ser condenado a penas de prisão e a multas muito mais pesadas.

Tivemos conhecimento de um caso, no estrangeiro, de um contabilista ou auditor certificado que foi considerado culpado de cumplicidade no crime de exercício ilegal da profissão, porque subcontratou trabalho de contabilidade a pessoa não inscrita na Ordem.

Por vezes, há quem distinga um outro delito, o delito de colaboração no exercício ilegal da profissão, que é um conceito próximo da cumplicidade, mas que deve ser distinguido. Embora sancionado com as mesmas penas, a colaboração no exercício ilegal da profissão é o facto de um contabilista ou auditor certificado validar o trabalho de um contabilista ou auditor não inscrito na Ordem sem fiscalizar o trabalho.

Rescisão de contrato com profissional certificado e contratação de profissional ilegal ou vice-versa

A rescisão do contrato com um profissional inscrito na Ordem e subsequente contratação de um profissional ilegal ou vice-versa é uma situação de risco, a que se deve estar atento. Em tal situação, o contabilista ou auditor certificado deve ter cuidado com o que faz para não ser acusado de cumplicidade.

O contabilista ou auditor certificado deve começar por avisar o cliente dos riscos incorridos, primeiro oralmente e depois por escrito, enviando uma carta, e deve devolver o arquivo eletrónico de lançamentos contabilísticos e todos os documentos ao seu cliente. Nenhum documento deve ser enviado diretamente para o contabilista ou auditor não inscrito na Ordem.

Por outro lado, quando um contabilista ou auditor certificado recebe um arquivo eletrónico de lançamentos contabilísticos processados por um contabilista ou auditor não inscrito na Ordem, deve verificá-lo bem. Alguns clientes são vítimas, mas, outros são claramente cúmplices, e recorrem ao profissional certificado, simplesmente, para tentar regularizar uma situação.

Recompra da clientela de um profissional ilegal

A recompra da clientela de um profissional não inscrito na Ordem por um contabilista ou auditor certificado é outra situação de risco. É o caso do contabilista ou auditor ilegal que parece querer regularizar a sua situação. Ele vende a sua clientela ilícita a um contabilista ou auditor certificado, de quem, muitas vezes, se torna, depois, empregado.

Esta manobra de alguns profissionais ilegais visa principalmente os jovens contabilistas ou auditores certificados e aqueles contabilistas ou auditores certificados que já estão próximos da aposentação.

Esse tipo de situação coloca o problema da relação de subordinação, que passa a haver, envolvendo o contabilista ou auditor não inscrito na Ordem, que conhece os seus clientes, e coloca o contabilista ou auditor certificado em situação de dependência económica com risco significativo de perda da clientela.

Em caso de problema, o contabilista ou auditor não inscrito na Ordem recupera a sua clientela, sai com a sua clientela e, eventualmente, queixa-se do contabilista ou auditor certificado, de quem se tinha tornado colaborador, junto da Direção Geral do Trabalho ou dos tribunais.

Associação com um profissional ilegal

A associação com um contabilista ou auditor não inscrito na Ordem é, ainda, uma outra situação de risco. A associação com um contabilista ou auditor ilegal, ainda que não seja colaborador vinculado por contrato de trabalho, levanta o problema da independência e fiscalização dos arquivos pelo contabilista ou auditor certificado.

Inicialmente, são propostas de bons negócios, projetos bonitos, com boa clientela, mas, no fim, o contabilista ou auditor certificado (muitas vezes um jovem) recebe quase nada.

Quando o profissional ou empresa, em situação de ilegalidade, é conhecido no mercado, o contabilista ou auditor certificado que se associa a ele arrisca, pelo menos, a uma intimação para prestar declarações à Ordem.

Caso particular da subcontratação de serviços

A subcontratação por um contabilista ou auditor certificado de um contabilista ou auditor não inscrito na Ordem, aparentemente, não é proibida por lei. No entanto, é recomendável que os contabilistas ou auditores certificados subcontratem somente profissionais inscritos na Ordem.

O contabilista ou auditor certificado deve ser o titular do contrato com o cliente, controlar toda a prestação do serviço e tratar o subcontratado como colaborador.

Alertamos, no entanto, que a jurisprudência, numa determinada circunscrição estrangeira, já considerou a subcontratação de atividades de contabilidade ou de auditoria a pessoa não inscrita na Ordem como delito de exercício ilegal da profissão de contabilista ou auditor certificado, designadamente pelo facto de a subcontratação não garantir a transparência financeira ou o bom cumprimento das obrigações legais. Num caso concreto, foi considerado que o contabilista ou auditor certificado que subcontrata é cúmplice do delito de prática ilícita.

Por outro lado, existe o risco de requalificação da relação existente em contrato de trabalho e, pior ainda, de o contabilista ou auditor certificado ser considerado responsável pelas consequências dos erros do contabilista ou auditor não inscrito da Ordem, que não tenha controlado, e as responsabilidades financeiras envolvidas, nesse caso, não se inscrevem nos riscos abrangidos pelo seguro profissional.

Nos casos de subcontratação de serviços, muitas vezes, à justiça vêm interessando apenas os contabilistas ou auditores certificados, que correm o risco de custódia e condenação, em lugar dos contabilistas ou auditores não inscritos na Ordem. Nesses casos, portanto, os contabilistas ou auditores certificados não são ouvidos apenas como testemunhas, mas sim como arguidos dos processos.

Os contabilistas ou auditores certificados devem, portanto, estar atentos, pois que, a subcontratação de atividades de contabilidade ou de auditoria a profissionais não inscritos na Ordem pode vir a constituir delito de exercício ilegal da profissão de contabilista ou auditor certificado, também em Cabo Verde, se a jurisprudência estrangeira, já existente, vingar no nosso país.

Conclusão e recomendação

O novo Estatuto da OPACC, prevê penalizações substanciais se for identificado o exercício ilegal e/ou irregular das profissões de contabilista ou auditor certificado. A Ordem pode instruir processos de contraordenação e o eventual culpado incorre numa coima que varia entre 100.000$00 e 500.000$00, tratando-se de pessoa singular, e entre 500.000$00 e 2.500.000$00, quando seja pessoa coletiva, para além de que o arguido incorre nas penas previstas no artigo 358º do Código Penal, isto é até 18 meses de prisão ou multa até 150 dias.

Tratando-se de um contabilista ou auditor certificado, outras sanções disciplinares do Conselho de Disciplina e Fiscalização da Ordem podem ser aplicadas, adicionalmente, e estas são caracterizadas e especificadas nos artigos 193º e 194º do Estatuto da OPACC, onde se prevê a suspensão do exercício da profissão, até 3 anos, no caso de um contabilista ou auditor certificado subscrever declarações fiscais, demonstrações financeiras e seus anexos, ou assinar relatórios de auditoria ou serviços correlativos, conforme for o caso, sem ter exercido diretamente as funções e tendo em conta as atribuições e responsabilidades da sua categoria profissional.

De referir que, há cerca de um ano, numa circunscrição judicial estrangeira, nossa conhecida, um indivíduo foi condenado, num caso de usurpação de funções e de burla associada, a uma pena de 3 anos de prisão, suspensa por 3 anos. No entanto, não se livrou de pagar 1.265.000$00 de indemnizações civis, mais juros de mora, a uma Ordem Profissional e a um outro lesado, e perdeu a favor do Estado 1.465.000$00 de ganhos patrimoniais derivados dos crimes cometidos, para além de pagar custas e taxas de justiça.

Em conclusão, a prática do crime de exercício ilegal e/ou irregular das profissões de contabilista ou auditor certificado, ou de qualquer outra profissão regulamentada, não compensa, pelo que, aqueles que vem adotando esse comportamento desviante, devem procurar mudar de atitude, se ainda vão a tempo, e vão!

Praia, 18 de dezembro de 2022

*Auditor Certificado

Referências:

1. Lei nº 82/IX/2020 de 26 de março, que publica o Estatuto da Ordem Profissional dos Auditores e Contabilistas Certificados;

2. Código Penal da República de Cabo Verde;

3. Exercício ilegal da profissão de perito contabilista: recordação dos principais casos; artigo da responsabilidade da redação da Revista Compta Online, modificado no dia 8 novembro de 2022;

4. Acórdãos do Tribunal da Relação de Nîmes, de 12 de janeiro de 2010, n.º 08/07626; do Tribunal de Relação de Paris, de 27 de maio de 2016, n.º 14/04007; do Supremo Tribunal Francês, Vara Criminal, de 22 de fevereiro de 2022, n°21-85.594; e do Supremo Tribunal Francês, Vara Criminal, de 4 de outubro de 2022, n°21-85-594; citado na Revista supramencionada;

5. Acórdão do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Criminal de Vila do Conde, Processo nº 4952/17.3T9MTS, de 18 de novembro de 2021 (usurpação de funções de advogado, solicitador e contabilista certificado).

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 799, de 22 de Dezembro de 2022

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