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Um Estado de arbitrariedades

Por: Germano Almeida

O estado de direito democrático em nome do qual o Amadeu Oliveira vai ser condenado a sete anos de prisão, mais coisa menos coisa, é na realidade um “estado de arbitrariedades” e seria mais correto e esclarecedor se assim fosse tratado. Não digo um “estado totalitário”, porque esses têm regras, leis próprias que lhes permitem agir legalmente na forma como atropelam os direitos e liberdades e garantias das pessoas, mas sempre podem dizer, É a lei! Modernamente diz-se, É o sistema! Por exemplo, o Código Penal Português de antes do 25 de abril previa a aplicação de medidas de segurança a cidadãos que o Poder Político achasse conveniente afastar por algum tempo da sociedade. Nada tinham de justas, essas decisões, porém eram completamente legais.

Mas não é o que passa connosco, neste lugar que só pode ser classificado de “um Estado arbitrário”.

É que nós temos leis próprias, bonitas, progressistas, copiadas do que de mais moderno e perfeito existe no mundo, leis que perfeitamente e sem desdouro podem rivalizar com as dos países que inventaram essas formas superiores de Estado e de governo. Por exemplo, quando falamos em democracia e estado de direito democrático, nenhum país nos supera porque somos atentos, apreendemos depressa o que já foi dito, e com uma cosmética aqui ou acolá, nacionalizamos o conceito apresentando-o como invenção cabo-verdiana. Vejamos, por exemplo, o lapidar preceito do nr 1 do artº 28º da Constituição: “É inviolável o direito à liberdade”.

Nada na verdade pode ser mais belo, seja o que for que esteja por detrás dessas palavras. Mas na realidade são só palavras bonitas, as normas que elas deviam conter e traduzir, normas no sentido imperativo de dever-ser, só as respeitamos quando não contrariam os nossos próprios desejos que sentimos como sendo superiores a qualquer lei ou princípio ou regra. É esse Estado que merece o nome de Estado Arbitrário.

O processo do Amadeu Oliveira é um excelente exemplo do que estou dizendo. Vejamos: arbitrariamente (porque sem ter havido prévio despacho de pronúncia da parte de um juiz), o procurador-geral pede que a Assembleia Nacional relegue o deputado ao poder judicial; arbitrariamente (porque primeiro era preciso haver um despacho de pronúncia e depois disso uma reunião do plenário do Parlamento a autorizar essa detenção),a Comissão Permanente permite a detenção do deputado; arbitrariamente (e cometendo um crime de prevaricação que só não será punido por causa da cumplicidade entre os poderes públicos) um juiz do Tribunal de Relação de Barlavento ouve-o como arguido, ferra-o na cadeia e entrega o processo ao Ministério Público para instrução; arbitrariamente o plenário da Assembleia Nacional reúne-se para votar a suspensão do deputado, depois de ele estar preso há mais de um ano; arbitrariamente o acusador declara-o incurso num crime de “atentado ao Estado de Direito democrático”, embora ninguém saiba muito bem o que é isso nem  porquê a estapafúrdia acusação; arbitrariamente (porque desrespeitando todos os prazos legais) o tribunal constitucional (que na verdade devia ser o exemplo para os gravíssimos atrasos dos demais tribunais comuns) tem retido sem justificação a apreciação da constitucionalidade da decisão do Parlamento que permitiu a prisão do deputado.

E finalmente, mas também arbitrariamente, o diretor-geral dos serviços prisionais e reinserção social, ordenou que lhe retirassem ao preso Amadeu Oliveira o computador pessoal que vinha utilizando “e que o mesmo seja guardado no gabinete de segurança” porque o preso já não precisa dele …

   É de facto uma medida abusiva, própria daqueles que tendo um micropoder não hesitam em utilizá-lo para que todos saibam que ele também manda. Tenho observado isso de manhã cedo à porta do hospital Baptista de Sousa, o poder exercido sobre as pessoas que vão para análises pelo porteiro distribuidor de senhas. Deve achar-se um diretor geral, mas continua um porteiro! Num diretor geral brada aos céus tanta arrogância, tanto mais que viola expressamente a alínea e) do n 3 do artº 205º do código de execução de penas que diz o seguinte: Posse de objetos no alojamento – nr 3: No espaço de alojamento são unicamente permitidos: e) aparelho de rádio, leitor de música ou outro equipamento multimédia que não possibilite a comunicação eletrónica, até ao máximo de três equipamentos, incluindo um computador portátil.

  A posse e o uso de um computador portátil por um preso não é, pois, uma concessão, é antes um direito prescrito na lei. Assim, por mais juristas que haja em cena, não é possível haver outra interpretação desse ato perverso da parte do diretor-geral que não seja simples abuso de poder. Abusos de poder esses praticados com a cumplicidade ativa ou passiva daqueles que têm particular dever de nos defender contra arbitrariedades. E assim alegremente estamos destruindo e enterrando o nosso estado de direito democrático.       

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 791, de 27 de Outubro de 2022

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