Não obstante a necessidade da actuação policial, o problema da criminalidade não se combate só com o “acumular” de potenciais delinquentes. Enquanto não houver estratégia e um trabalho articulado para a prevenção, os ciclos vão se repetir, defende o sociólogo Nardi de Sousa, a propósito da mega-operação que culminou com a precisão preventiva de 44 jovens no bairro de Achada Santo António.
A detenção de cerca de 50 jovens e prisão preventiva para 44 deles, após megaoperação policial em zonas da Achada Santo António, na semana passada, acontece num momento em que se fala num retomar da criminalidade na capital do país e as autoridades endurecem medidas de combate.
Entretanto, este tipo de operação não é novo e tem acontecido, ciclicamente, conforme vão surgindo, também, os picos de violência, em vários bairros da Cidade da Praia.
Para o sociólogo e professor universitário Nardi de Sousa, a questão que se mostra pertinente levantar neste momento é como é que, décadas após décadas, sabendo que há bairros onde se vive situações de mal-estar, conhecidos por ter jovens na criminalidade, consumo e tráfico de drogas, não existem projectos sociais, articulados entre instituições, e vocacionados para atacar o problema de raiz.
“Isto é uma política muito neoliberal que começou nos EUA e na Europa, que é tolerância zero à criminalidade. Mas, muitos destes jovens daqui a umas semanas estarão fora, com mais ódio, com mais agressividade, daí a reincidência”, indica o investigador.
Como afirma, quando se reduz o recurso à força policial, dá-se a sensação que o Estado não sabe lidar com a criminalidade e tem de mostrar este aparato cíclico. “De vez em quando a polícia mostra a sua força, mas passados dois dias há um esquecimento até à próxima vítima, até um turista ser assaltado ou se chegar a um
número de homicídios que é inaceitável para poderem agir”, aponta.
Não há estratégia
Falta, na opinião do e ntrevistado do A NAÇÃO, uma estratégia e trabalho articulado, de forma colectiva, desde escolas, universidades, associações da sociedade civil e Governo, voltada para a prevenção.
“Há uma fraca liderança em termos de combate à criminalidade, não existem estratégias, não se envolvem associações da sociedade civil, não existem recursos e os jovens sabem que este país não apresenta alternativas para eles”, sublinha o sociólogo.
“Não estou a defender o mal-estar, a atitude negativa dos jovens, mas a verdade é que não existem alternativas. Se um jovem daqueles quiser sair da criminalidade, o único caminho é a emigração”, reforça.
O que poderia ser alternativa, pontua, como é, por exemplo, o desporto, não recebe investimentos, não dispõe de recursos nem incentivos.
“Existe formação profissional, mas depois não há uma ligação com os bairros para tentar captar esses jovens. É preciso promover a cidadania, promover o associativismo, trabalhar com instituições como universidade, associações da sociedade civil, para criar um projecto comum de sociedade”, encoraja.
Pelo contrário, como reconhece, “basta passarmos um dia num dos bairros com maiores problemas para vermos que há jovens e adolescentes que já estão à espera do momento para pôr em prática a sua própria arte de criminalidade.
Aquilo é tipo escadas, vão os mais velhos, mas os mais novos, entre 12 e 16 anos, já conhecem o esquema de criminalidade, já participam com os outros, são miúdos de recados, e vão ocupar o espaço dos outros”.
Daí, explica, a necessidade de preencher estes espaços “vazios” nos bairros, com projectos de cidadania, desporto, intervenção coletiva, pacificação e transformação da consciência e formação profissional. Caso contrário, alerta, esse espaço vai ser sempre preenchido de outra forma, seja pelo tráfico de drogas, de armas, prostituição e outras formas de criminalidade, de forma geral.
Tecido social fragilizado
O problema de base, segundo Nardi de Sousa, vem de um tecido social fragilizado, com famílias cada vez mais frágeis, jovens que não reconhecem a autoridade dos pais nem de líderes comunitários, não se revêem no associativismo nem no desporto.
“Dentro das famílias, o que nós vemos é só a ponta o iceberg. Nós que fazemos alguma pesquisa, não só na cidade da Praia, notamos que há muitas crianças, por exemplo, que são negligenciadas, muitas que sofrem abuso sexual de forma silenciosa e que não falam. Muitas crianças com problemas emocionais e que não falam nem aos psicólogos porque têm instruções da família para não contar o que se passa em casa”, pontua.
Isso, segundo diz, acontece em todos os concelhos do país, com crianças a viver em ambientes sobrelotados, ao cuidado, não dos pais, mas de avós, tios, em habitações frequentados por amigos, vizinhos, primos e outros familiares, a mercê do abuso sexual.
70% da população reclusa tem menos de 34 anos
Nardi de Sousa lembra que os dados do Instituto Nacional de Estatísticas (INE) de 2018 mostram que quase 70% da população reclusa na Praia tem menos de 34 anos. Destes, cerca de 40% está entre os 30 e os 34 anos, quase 18% têm entre 22 e 24 anos, e cerca de 13% está na faixa dos 16 aos 21 anos. Ainda, de cerca de 1567 reclusos, 95% é a população masculina.
“Sexo masculino e juventude. Se já temos a estatística, temos os bairros identificados, porque é que não temos uma estratégia de intervenção?”, questiona.
O sociólogo lembra, ainda, que os crimes em Cabo Verde estão divididos em várias tipologias, sendo que os contra a propriedade são os mais frequentes. “Os últimos dados do INE de 2018 mostravam que crimes contra propriedade correspondia a 42.6%, homicídio a 22%, depois há VBG, que são 5% e crimes sexuais 13%”, especifica.
“Ami e di paz y bo?” aposta em formação e kits de trabalho
Há cerca de um mês foi apresentado, no Palácio do Governo, o projecto social “Ami e di paz y bo?”, pensado pelo pastor e policial civil Licínio Melo.
Nascido no seio da sociedade civil e “abraçado” pelo Governo, o projecto tem o seu foco nos bairros da Achada Santo António, Achada Grande Trás, Safende e Eugénio Lima. O mesmo pretende trabalhar directamente com mil jovens em situação de vulnerabilidade social e na criminalidade, através de formação cívica e profissional, seguido de oferta de kits de trabalho.
Licínio Melo, que integra também o Gabinete Estratégico da Polícia Nacional, tem trabalhado há vários anos junto de jovens nos diversos bairros e reconhece que a situação de violência juvenil nesta cidade tem sido gritante. Neste sentido, explica, o projecto visa criar oportunidades e alternativas para estes jovens, oferecendo as condições para abandonarem a delinquência e seguirem um caminho diferente.
“Por exemplo, um jovem que tem talento em cortes de cabelo, recebe formação profissional a nível de barbearia, mas também é alvo de um trabalho em outros aspectos, desde valores, comportamentos saudáveis, sentimento de pertença ao seu bairro, diálogo e resolução de conflitos, cultura de paz e tolerância”, indica.
Depois recebe um kit de barbeiro, detalha a nossa fonte, este jovem fica apto a prestar um serviço no seu bairro, ocupar o tempo que tinha vazio e obter um rendimento, com ganhos também para a própria comunidade, que vai “perder um delinquente e ganhar um cidadão do bem”.
E mais, acrescenta: “Este jovem não devolve o dinheiro ao Estado, mas devolve um conjunto de serviços que são benéficos para o Estado e para a comunidade. Por exemplo, ele vai ficar responsável por fazer a barba e cabelo, duas vezes ao mês, aos idosos acamados no seu bairro”.
Valores em casa
A par deste trabalho social, indica Licínio Melo, é preciso também cultivar valores dentro de casa e evitar uma certa proteção reversa que acaba por acontecer no seio das famílias.
“Os pais e encarregados de educação, sobretudo mães, quando os jovens, levam alguma coisa em casa e eles têm de dizer não, não podes estar nesta vida, estás a colocar em perigo a tua cabeça, a minha e a da nossa família”, sublinha, indicando que tem acontecido o contrário. Pais, sobretudo mães, a esconderem os filhos, sem pensar nas consequências graves que dali podem resultar.
No que toca às famílias, este activista social defende o envolvimento de outros sectores, como é o caso do Ministério da Família, que pode intervir através das suas instituições, como o ICCA, o ICIEG e o Laço Branco, com programas direcionados para os pais.
Lado a lado com a ação judicial
Licínio Melo defende que a justiça precisa continuar a fazer o seu trabalho, mas que as medidas não podem ser apenas de foro repressivo.
“Não podemos ter jovens a fazer assaltos, brigas de gangues, a perturbar a paz social, sem que as entidades actuem. Então a polícia precisa continuar a fazer o seu trabalho. Agora, juntamente da ação policial e judicial, tem de haver medidas e políticas sociais que ofereçam aos jovens oportunidades”, concretiza.
Neste sentido, defende, inclusive, o que chama de comunitarização do judiciário, o que significa que os juízes e os procuradores têm de descer aos bairros para fazer palestras, conversar com os jovens, e não encontrar com eles somente na hora de aplicar penas.
O projecto “Ami e di paz y bo?” vai contar, inclusive, com a participação e apoio de jovens que passaram por processo semelhante há alguns anos, deixando de lado a criminalidade.
“Em 2011 estivemos por trás da reconciliação de seis grupos rivais no bairro de Brasil. Foi um trabalho de mais de um ano. Muitos dos jovens hoje têm a sua vida, trabalham e muitos vão nos ajudar agora neste projecto”, indica o mentor.
No entanto, chama a atenção para o facto de agora, os que estão no crime serem jovens que, na altura, tinham oito ou nove anos.
Isto, a seu ver, mostra a importância de quebrar o ciclo, através de um trabalho integrado, desde o pré-escolar.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 807, de 16 de Fevereiro de 2023