Por: João Serra*
Transitou para o começo de 2022 a forte pressão inflacionista iniciada em finais de 2021 e decorrente do aumento do custo de energia, das perturbações nas cadeias de abastecimento globais e dos preços cada vez mais altos de várias matérias-primas e de bens alimentares.
Nada de mais. É a economia a funcionar na sua forma primária: os preços oscilam em função da relação entre a oferta e a procura.
Com efeito, durante a pandemia de Covid-19, as empresas protegeram-se em função da incerteza que estavam a atravessar. Entretanto, com a abertura progressiva da economia, a procura, antes condicionada e reprimida, superou a oferta, fazendo com que os preços, de uma forma generalizada, subissem. Ao aumento da procura acresceram as disrupções no abastecimento, o que criou uma enorme pressão nos preços dos bens e serviços.
A invasão russa à Ucrânia, em fevereiro deste ano, trouxe um agravamento nos preços das matérias-primas – petróleo, gás natural, “commodities” agrícolas, etc. –, redução da confiança dos agentes económicos e turbulência nos mercados financeiros, impactando no desenvolvimento económico, pelo facto desse aumento sucessivo de preços não estar a ser acompanhado de uma evolução económica. Pelo contrário, enquanto a inflação cresce, a economia mundial, particularmente a da Europa e a dos EUA, parece caminhar rumo à estagnação.
Ou seja, a guerra na Ucrânia veio tornar a situação ainda mais complexa, piorando o cenário de inflação que muitos países já estavam a atravessar e influindo na atividade económica. Pois, o conflito veio gerar ainda mais condicionamento a nível global: os preços das matérias-primas, em especial do petróleo, do gás e das “commodities” agrícolas, aumentaram, por estarem em causa dois países que, em termos globais, têm uma grande relevância nesses setores.
Assim, com a incerteza geopolítica que se vive atualmente – devido ao conflito na Ucrânia –, a crise da energia e a subida generalizada dos preços, os especialistas consideram que podemos estar prestes a deparar-nos com um contexto de estagflação.
O último relatório do Banco Mundial (BM) sobre as Perspetivas Económicas Globais, publicado no início de junho corrente, também faz uma primeira avaliação sistemática de como as condições económicas globais atuais se comparam com a estagflação da década de 1970. O relatório dá particular ênfase ao impacto que a estagflação pode ter nos mercados emergentes e nas economias dos países em desenvolvimento.
Todavia, o cenário de estagflação já era temido antes do início da guerra. Após a invasão russa à Ucrânia, a possibilidade de ocorrência de estagflação ganhou força, principalmente devido ao efeito ricochete das sanções económicas aplicadas pelos países do Ocidente à Rússia.
Breves considerações sobre o conceito de estagflação e os seus impactos económicos e sociais
Estagflação é a designação que se dá a um período económico atípico em que a economia de um país apresenta, simultaneamente, um cenário de inflação alta, crescimento baixo ou estagnado e aumento do desemprego.
A estagflação é também conhecida como a “tempestade perfeita” da economia, porquanto a combinação dos três fatores que a compõem resulta numa mistura explosiva com fortes implicações na vida das famílias e empresas.
Porém, não há uma definição formal ou limite estatístico específico para o fenómeno de estagflação.
Segundo um artigo assinado por Paul Wiseman, publicado no Associated Press (Washington), no dia 28 de maio pp, um “proxy” quantitativo para a estagflação foi apresentado pelo economista-chefe da Moody’s Analytics. Assim, para Mark Zandi, a estagflação ocorrerá, nos EUA, quando, de forma combinada, a taxa de desemprego chegar a pelo menos 5% e os preços ao consumidor aumentarem 5% ou mais em relação ao ano anterior.
Já, na União Europeia (UE), onde, geralmente, o desemprego costuma ser maior e a inflação menor, o limite de Zandi é diferente: ter-se-á um cenário de estagflação quando, combinadamente, o desemprego atingir 9% e a inflação anual alcançar 4%.
Para a generalidade dos economistas, não é preciso que uma economia entre em recessão para que ocorra um período de estagflação, bastando, para tal, que o crescimento económico seja baixo e, simultaneamente, os preços sofram um grande aumento, a par do aumento do desemprego.
O conceito de estagflação surgiu na década de 1970, com o aumento dos custos da produção de petróleo, em resultado do embargo imposto pela Arábia Saudita e outros países produtores de petróleo aos EUA e outros estados que apoiaram Israel na guerra do Yom Kippur, em 1973.
O aumento brutal dos custos de produção de petróleo, superando os 120 dólares por barril, levou a um “choque”, cujas ondas foram sentidas em todos os bens e setores.
Esse choque, na oferta, deu-se, concomitantemente, com o aumento da inflação, a recessão económica e o aumento do desemprego.
Foi a primeira vez na história que se assistiu a um cenário semelhante: uma economia a desacelerar, o desemprego a aumentar e os preços dos produtos a subirem grandemente. E tudo isso ocorrendo, praticamente, em simultâneo.
Com efeito, até então, os economistas viam a estagflação como algo quase impossível, à luz da chamada “Curva de Phillips” e cuja teoria sustenta que a inflação e o desemprego se movem em direções opostas.
E essa teoria parece estar em conformidade com o senso comum. Na verdade, quando a economia está fraca e muita gente está sem emprego, as empresas têm dificuldades para aumentar os preços dos seus bens e serviços, nomeadamente por causa do menor poder aquisitivo da população. Nessas condições, a inflação, em princípio, deverá permanecer baixa. Do mesmo modo, quando a economia está aquecida e o desemprego baixo, a taxa de inflação tende a acelerar, em resultado, especialmente, da concorrência por trabalhadores, o que leva ao aumento dos salários. Outrossim, por causa do maior poder de compra, as empresas têm margens para repassar grandes aumentos de preços para os seus clientes, estimulando, igualmente, a inflação.
Todavia, na prática, tal relação nem sempre se revelou tão direta, mormente quando há um choque de oferta provocado por outros fatores que não a relação entre procura e oferta. É o caso, por exemplo, da invasão russa à Ucrânia. O conflito russo-ucraniano intensificou o choque energético que já se vivia nos meses anteriores, gerando inflação sem, contudo, impulsionar o crescimento económico.
Também, foi precisamente “esse desvio” da teoria subjacente à “Curva de Phillips” que aconteceu na década de 1970, um pouco por todo o mundo, particularmente nos EUA e na Europa Ocidental. A repentina subida do preço dos combustíveis acelerou a inflação para variações de dois dígitos, restringiu e impediu o crescimento da economia, fazendo subir o desemprego.
A estagflação, consubstanciada na inflação alta crónica, tornou-se uma das características marcantes dos anos 70 do século passado, convertendo-se em uma palavra temida nessa década. Por exemplo, para os americanos de uma certa idade, o termo evoca lembranças de vida difícil, longas e dolorosas filas nos postos de gasolina, fábricas fechadas, e os tão ridicularizados broches “Whip Inflation Now” (algo como “Derrote a inflação agora”) do presidente Gerald Ford.
Na verdade, o aumento dos preços impacta no poder de compra das famílias, no investimento e nas margens de lucro das empresas, com efeitos graves no mercado de trabalho (subida de desemprego), nas condições de vida da população (aumento da pobreza), no mercado de capitais e na atividade económica no seu todo, gerando um ciclo económico negativo.
Ademais, quando a inflação começa a ficar descontrolada, como acontece no período de estagflação, os bancos centrais tentam “arrefecer” a economia, através do aumento das taxas de juro. Isso faz com que os custos de financiamento aumentem, passando uma mensagem, à economia e aos consumidores, de maior poupança e menor investimento e consumo; ao mesmo tempo que, em muitos países de economia de mercado razoavelmente desenvolvidos, pode retirar estímulo à economia e aumentar significativamente os juros da dívida pública e dos empréstimos às empresas e às famílias.
Desde a década de 1990, a estagflação não voltou a ser um problema nos EUA e na Europa Ocidental. Os bancos centrais passaram a ter mandatos claros para a estabilidade de preços e, ao longo das últimas três décadas, mantiveram um histórico confiável de cumprimento das suas metas de inflação. Além disso, os governos passaram a avaliar o quadro macroeconómico e a intervir sempre que necessário, ajudando a controlar a inflação e evitando políticas que pudessem vir a desencadear cenários de estagflação.
Porém, a recuperação da estagflação da década de 1970 exigiu significativos aumentos das taxas de juro nas principais economias desenvolvidas. Tais aumentos desempenharam um papel relevante no desencadeamento de uma série de crises financeiras ocorridas nos mercados emergentes e nas economias em desenvolvimento.
Regresso da estagflação na Europa e nos Estados Unidos da América?
Com o contexto global em curso, as previsões dos especialistas apontam a possibilidade de a UE e os EUA – os dois mais importantes parceiros económicos de Cabo Verde – entrarem, neste ano, num período de estagflação, considerando a atual tendência de subida de preços e inflação alta, de crescimento económico reduzido e de eventual recessão económica.
Também, o BM, no já referido relatório, alerta para o “risco aumentado de estagflação, com as consequências potencialmente prejudiciais para as economias com rendimentos médios e baixos” que o atual cenário de fraco crescimento económico e inflação elevada implica.
Para podermos tirar conclusões quanto à probabilidade de ocorrência de estagflação, devemos analisar, em separado, cada uma das variáveis que compõem um período estagflacionário, para percebermos o impacto que este fenómeno macroeconómico pode ter.
Como já referido, para haver estagflação, três fatores ocorrem em simultâneo: subida da inflação, crise no desenvolvimento económico e aumento do desemprego.
De seguida, veremos como se encontra, atualmente, cada um desses fatores na UE e nos EUA.
Inflação
Desde finais de 2021, tem havido, na UE, uma forte e contínua pressão nos preços, puxada, principalmente, pela subida dos preços dos combustíveis e dos alimentos. De acordo com a Eurostat, a inflação anual acelerou para 8,1% em abril de 2022, contra os 7,8% registados em março. Em abril de 2021, a taxa de inflação na UE fixava-se nos 2%.
A Comissão Europeia prevê que, na média da UE, a taxa de inflação deve fixar-se nos 6,8% este ano e 3,2% no próximo ano.
Tal qual na UE – e, praticamente, pelas mesmas razões –, também nos EUA se verifica uma acentuada e persistente tendência inflacionista. Nesse país, em abril deste ano, o índice de preços no consumidor aumentou para 0,3% em cadeia e para 8,3% em termos homólogos.
Excluindo os componentes de alimentos e energia, o cabaz de preços subiu para 0,6% face a março e para 6,2% em comparação com abril do ano passado.
Os números suprarreferidos significam que, nos EUA, se registou um abrandamento da inflação face a março, quando a inflação tocou nos 8,5%, e pela primeira vez em oito meses.
Crescimento económico
Segundo dados recentemente divulgados pelo Eurostat, no primeiro trimestre do ano em curso, o crescimento homólogo do PIB acelerou na Zona Euro (ZE) para os 5,1% e na UE para os 5,2%, depois de ter avançado, respetivamente 4,7% e 4,9% no trimestre anterior.
Na variação em cadeia, o PIB cresceu 0,3% na ZE (em linha com os últimos três meses de 2021) e 0,4% na UE (uma ligeira baixa face aos 0,5% do período anterior).
Nos EUA, o crescimento económico, no primeiro trimestre de 2022, foi de 3,6%, o que significa que houve uma desaceleração quando comparado com o crescimento de 5,5% registado no quarto trimestre de 2021. Em termos anualizados, estima-se que a economia encolheu 1,4%, entre janeiro e março do ano em curso.
Com um mercado em baixa nos EUA, grande parte dos investidores profissionais preveem uma recessão económica, e mais de 50% acredita que a taxa de inflação seja permanente.
Desemprego
A taxa de desemprego recuou, em abril de 2022, para os 6,8% na ZE e os 6,2% na UE face ao mesmo mês de 2021, mas manteve-se estável na comparação com março, segundo dados do Eurostat. Na ZE, o desemprego recuou face aos 8,2% de abril de 2021 e na UE desceu face aos 7,5% homólogos.
Em abril, havia 14,264 milhões de desempregados na UE, 11,181 milhões dos quais na ZE.
A taxa de desemprego nos EUA permaneceu em 3,6% no mês de abril de 2022, com um total de 5,9 milhões de desempregados no país. Salienta-se que o crescimento das ofertas do mercado de trabalho dá-se com a economia dos EUA tendo o seu pior trimestre desde o início da pandemia, com o PIB a cair 1,4% em cadeia, no primeiro trimestre, como atrás referido.
Em conclusão:
Quer na UE, quer nos EUA, a inflação está num patamar que não se registava há década, situando-se, em ambos os casos, acima dos limites sugeridos por Zandi para constituir uma das variáveis da estagflação.
Quanto ao desempenho económico, pode-se dizer que a invasão russa da Ucrânia agravou os danos da pandemia de Covid-19, o que amplificou a desaceleração da economia da UE e dos EUA. Ambas as economias podem entrar num período prolongado de crescimento fraco ou mesmo de recessão, paralelamente com inflação elevada. E, caso a inflação se torne permanente e consistente, os bancos centrais sentir-se-ão obrigados a subir as taxas de juro até conseguirem os seus objetivos relativamente à estabilidade de preços, o que influenciará, negativamente, o crescimento económico futuro.
Por não estar a aumentar, o desemprego é o fator que mais afasta o contexto atual de um cenário de estagflação. No entanto, caso o crescimento económico venha a abrandar, o mercado de trabalho pode vir a ser impactado, podendo ocorrer maiores taxas de desemprego. E caso venhamos a ter uma forte desaceleração económica e mesmo recessão com uma inflação elevada, o cenário de estagflação torna-se inevitável.
Nesse quadro, é possível dizer que a probabilidade de estagflação, na UE e nos EUA, será tanto maior quanto maior for a duração e a dimensão da guerra na Ucrânia.
E, uma vez iniciada, é muito difícil reverter a estagflação. As distorções por ela provocadas produzem graves efeitos económicos e sociais, especialmente para as empresas, para a classe média e para as famílias de rendimento baixo, que são sentidos durante muito tempo.
Por causa disso, a estagflação é um fenómeno temido praticamente por todos os formuladores de políticas do mundo.
Cabe aos governos e aos bancos centrais evitar um cenário de estagflação. Todavia, é uma tarefa difícil, mormente na conjuntura atual de conflito russo-ucraniano. Uma das soluções pode passar por reduzir, a prazo, a dependência das economias do petróleo, de produtos alimentares e de outros produtos essenciais importados, uma vez que o aumento do seu custo pode ser um fator de estagflação. Ou seja, relativamente a esses bens, deve-se apostar numa economia mais fechada e menos dependente dos mercados internacionais, aumentando, na medida do possível, a sua produção interna.
Para o nosso país, o Banco de Cabo Verde prevê, para 2022, uma taxa de inflação muito alta, de 7,3 %, à qual se juntará uma taxa de desemprego, prevista pelo Governo, de 14,2%.
Em Cabo Verde, julgo que a preocupação maior tem a ver com a inflação, enquanto o mais cruel dos “impostos” e que afeta, especialmente, os mais pobres, corroendo o seu rendimento disponível, este já parco e manifestamente insuficiente.
Assim, o Governo deve proteger, sobretudo, os mais vulneráveis dos efeitos da inflação alta, que incide sobre os bens essenciais, nomeadamente a alimentação e a energia. É uma obrigação do Estado fazê-lo!
Praia, 10 de junho de 2022
*Doutor em Economia
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 772, de 16 de Junho de 2022