Por: Adriano Miranda Lima
Agnóstico e cidadão de um estado laico, o tema dos abusos sexuais praticados por membros do clero católico só é por mim abordado por me parecer que há uma estranha relutância em ir ao fundo do problema. Até há quem incorra em relativismo ao pronunciar-se sobre o problema numa perspectiva meramente estatística, quando basta surfar a afirmação do Papa Francisco: “um único caso que seja é uma vergonha para a Igreja”.
O meu convívio com o clero foi circunstancial e pertence ao passado. Resume-se à relação que tive, enquanto aluno de liceu, com o padre que foi meu professor de Religião e Moral, e ao contacto com os vários capelães das unidades militares em que servi, como oficial do exército. Embora não sendo crente do Catolicismo ou de qualquer outra confissão, dum modo geral sempre nutri respeito e consideração pelos capelães das minhas unidades, porque também nunca o desmereceram. Sempre os vi intensamente envolvidos nas acções do seu múnus, e, no caso das unidades mobilizadas para os antigos territórios africanos, a eles se deve a louvável contribuição para que muitos sodados analfabetos tivessem adquirido a escolaridade mínima.
Compreenda-se com este intróito que nunca me passaria pela cabeça que alguém que veste batina e do alto do púlpito prega a palavra de Deus, pudesse abusar sexualmente de adolescentes ou jovens a seu cargo no resguardo de uma sacristia, em qualquer canto escuso de uma igreja ou outra circunstância. Casos, sim, houve e há, em toda a parte, de padres que contraíram relações de que resultou a geração de filhos. Porém, não são esses que repugnam e causam incredulidade, ocupando hoje a agenda da investigação em sede da Igreja ou das autoridades judiciais.
Diria que tanto uns como os outros casos espelham a evidência gritante de um problema com causa original iniludível que o Vaticano recusa encarar com realismo, limitando-se a conceber medidas supostas como impeditivas ou controladoras: “lançando diversas iniciativas e legislando a favor de mais transparência na investigação dos abusos”; “os tempos mudaram e as dinâmicas de controlo e investigação precisam mudar também”. Quando, só na França, pelo menos 216.000 menores foram vítimas de padres pedófilos nos últimos 70 anos, conforme concluiu um relatório oficial, surpreende que se queira evitar ou limitar as consequências do fenómeno em vez de extinguir a sua causa. Diz-se amiúde que o problema é “endémico” quando, a meu ver, é endógeno, isto é, radica e emana do interior do sistema como um cancro.
Ora, um homem que se torna padre, e a quem a Igreja de Roma impõe o celibato, não deixa nunca de continuar a ser um homem na sua integridade biológica; não perde a sexualidade com que foi dotado pela natureza (ou por Deus?). Usando palavras mais contundentes, o celibato é como uma castração sexual induzida por via psicológica, que alguns conseguirão superar, certamente a maioria esmagadora, graças a um esforço sobre-humano ou uma natural sublimação do sistema fisiológico. No entanto, outros, talvez uma escassa minoria, nunca serão capazes disso e, na intimidade da sua angustiosa perturbação, o instinto resolve-se em comportamentos sexuais perversos na pessoa de crianças, por supostamente crer-se que a vergonha acabrunhada destas será cúmplice do seu silenciamento. Contudo, quero admitir que um padre pedófilo não fará do seu acto repugnante motivo de vanglória; pelo contrário, deverá sentir o peso de uma vergonha corrosiva e jamais extinguível da sua consciência moral de homem, primeiro que abale a estrutura da sua vocação para o serviço de Deus.
Alguma razão haverá para o Vaticano não eliminar o celibato como requisito para a função de intermediário entre o céu e a terra. Não a consigo compreender, sequer vislumbrá-la, até porque não conheço os seus fundamentos. A Igreja Católica Ortodoxa e o Protestantismo não têm essa exigência e não consta que haja o problema da pedofilia entre os seus sacerdotes. O Judaísmo e o Islamismo igualmente. Portanto, é nítida a relação causa-efeito. Tive como vizinho na minha adolescência, em S. Vicente, um pastor protestante casado e pai de cinco filhos, que recordo como um homem extremamente dedicado à causa da sua igreja, sem que os encargos de família fossem inibitórios ou limitativos da sua disponibilidade. Pelo contrário, acredito que só quem se realiza como ser humano em toda a plenitude da sua pulsação consegue interiorizar o alcance ontológico-existencial que impregna o sentido da vida, condição necessária para ser-se intérprete do sinal divino. Tenha-se presente que a ascensão do Papa Francisco ao sacerdócio não seguiu o paradigma comum. De seu nome Jorge Mario Bergoglio, licenciou-se em Engenharia Química, creio que teve namorada e conheceu os apelos naturais da sua condição humana, e só foi ordenado sacerdote aos 33 anos, depois de frequentar licenciatura em Filosofia e Teologia, sentindo a confirmação plena da sua aptidão e vocação religiosa.
Por que não eleger essa via como a mais certa para o recrutamento de homens para o serviço da Igreja de Roma? Recrutar homens completos e de formação integral, se possível já com alguma experiência de vida, solteiros ou casados, mas, se solteiros, sem impedimento de virem a casar e contrair família. No entanto, e necessariamente, homens de conduta moral e cívica comprovada na sua irrepreensibilidade, passando pelos crivos de exigência que a Igreja escolha para que não ofereçam qualquer dúvida como guias exemplares da espiritualidade com que ela possa restaurar a sua imagem e fazer esquecer os escândalos que perturbam os seus fiéis e serão hoje uma das causas da crise de vocação para a carreira religiosa entre a juventude.
O celibato foi instituído nos dois concílios de Latrão, respectivamente, em 1123 e 1139, que proibiram o casamento dos padres e o seu relacionamento com concubinas. Se até aí não havia essa imposição, embora talvez fosse recomendada, é porque seriam baixos os padrões de comportamento social e a Igreja se ressentia dos desregramentos sexuais. Só que as sociedades evoluíram e o Vaticano deve fazer uma leitura actualizada do mundo e das sociedades humanas, tanto mais que é o Papa Francisco que afirma que o celibato não é um “dogma de fé” mas sim um regulamento da Igreja. Se um dogma de fé é algo abstracto e incomensurável, um regulamento não passa de mero instrumento administrativo.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 790, de 20 de Outubro de 2022