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Das decisões justas

Por: Germano Almeida

As decisões judiciais são decisões, até prova em contrário, decisões justas, disse a senhora ministra da Justiça. “A independência dos tribunais é algo que ninguém, mas ninguém, pode pôr em causa”, disse também a senhora ministra.

Quanto à justeza de todas as decisões judiciais, certamente que a senhora ministra estava projetando o tribunal ideal, aquele com que todos nós sonhámos e que em algum momento das nossas vidas chegámos a acreditar existirem ou terem existido. Mas isso terá sido no tempo em que os juízes eram divinamente escolhidos e divinamente ungidos e iluminados, só juízes machos, tal como os reis, vedado estava às mulheres a missão de julgar por mensalmente sofrerem de problemas hormonais e isso fazer perigar a garantia das “decisões justas”. Nesse tempo também acreditávamos que os tribunais “não podem errar” e com mulheres metidas pelo meio tal acerto estaria longe de estar garantido. Melhor, sairia asneira de certeza.

Porém, tanto as mulheres não poderem julgar, como os tribunais não poderem errar, saíram de moda, como o prova uma verdadeira biblioteca de livros dedicados a erros judiciários clamorosos.

E ainda bem que a senhora ministra corrigiu essa sua asserção a tempo, acrescentando enfim que “havendo erros, há sempre mecanismos de correção”. Através dos recursos, especificou.

A senhora ministra respondia a uma pergunta a propósito do processo que tem na cadeia da Ribeirinha em prisão preventiva um deputado nacional há mais de um ano. E é assim, porque não obstante esse senhor ter sido preso com violação de todas as regras quer da Constituição, quer do regimento da Assembleia Nacional, quer do estatuto dos Deputados, “a independência dos tribunais é algo que ninguém, mas ninguém, pode pôr em causa”. Sendo essa sem dúvida uma afirmação perigosa, porque levada às últimas consequências quereria dizer que os juízes podem fazer o que lhes der na real gana porque a ninguém é lícito criticá-los, sob pena de estar a pôr em causa a sua independência.

Ora a verdade é que, sobretudo neste caso Amadeu Oliveira, a independência, o rigor, a imparcialidade dos tribunais está fortemente em causa e merecedora de severas críticas. É que, queiramos ou não admiti-lo, direito é sobretudo bom senso. E neste caso concreto Amadeu Oliveira, não tem havido qualquer bom senso na sua condução, pelo contrário, parece estar a haver um maligno desejo de vingança que se compraz em deixar um homem na cadeia porque ninguém quer pôr em causa a independência dos juízes.

Ninguém está acima da lei, disse a ministra de Justiça. Devíamos orgulhar e dormir descansados diante dessa afirmação peremptória. Porém, não é assim, o caso Amadeu mostra não só que alguns juízes se colocam acima da lei, como também o procurador-geral, ao usurpar uma competência exclusiva da magistratura judicial pedindo por conta própria a suspensão de um deputado, não mostrou respeito pela lei. E até a Assembleia Nacional, ao permitir pelo menos por duas vezes deferir o pedido de suspensão de um deputado sem previamente reunir o plenário, violou ostensivamente a Constituição. E, mais grave ainda, a pedido exclusivo do procurador-geral.

E sempre impunemente! Porque na verdade algumas vozes se têm manifestado contra essas violações da Constituição e outras leis da República que conduziram à vingativa prisão do deputado Amadeu Oliveira. Porém e infelizmente, embora fortes, não foram ainda as suficientes para se fazerem ouvir. Mesmo o senhor presidente da República teve uma palavra a dizer sobre essa escandalosa prisão. Porém preferiu fazê-lo através de um post no Facebook, o que certamente não contribuiu para dar solenidade a uma grave questão que implica diretamente com o (des)respeito pela Constituição do país. O que certamente poderá ter levado a ministra da Justiça a dizer que não reagia á intervenção do presidente. “Eu não reajo. Eu não tenho nenhuma reação em relação á intervenção do senhor presidente da República”.

A senhora ministra voltou a insistir na independência dos tribunais, declarando intocável essa garantia. Todos concordam. Mas também todos sabem que o limite dessa independência é a lei. E quando a lei é violada, o juiz comete o chamado crime de prevaricação, que é um crime punido com pena de 2 a 8 anos, exatamente porque cometido por quem tinha especial dever de não o cometer.

Eduardo Couture, reconhecido advogado uruguaio, autor, entre outras coisas, dos “dez mandamentos do advogado”, escreveu certa vez as seguintes palavras lapidares: “Da dignidade do juiz depende a dignidade do direito. O direito valerá, em um país e em um momento histórico determinados, o que valerem os juízes como homens. No dia em que os juízes tiverem medo, nenhum cidadão poderá dormir tranquilo.”

É certo. Mas também quando os juízes se deificam e recusam reconhecer que, embora investidos numa função social de extrema importância, e talvez por isso mesmo, continuam tão humanos como nós outros, suscetíveis de cometer os mesmos erros que qualquer outro humano. Aprende-se cedo na faculdade que onde há sociedade há direito e por isso há ínsito em nós todos, na nossa consciência, o sentimento do justo e do injusto que nos acompanha pela vida. Daí que já esteja generalizada na nossa sociedade o sentimento de que a prisão do deputado Amadeu Oliveira, se alguma vez foi justificada, de há muito ultrapassou os limites do razoável e configura-se já um abuso de poder cometido em nome de um arremedo de direito. E daí também que as decisões socialmente justas tenham o tácito apoio do povo, do mesmo modo que ganham o maior opróbrio aquelas em que ninguém se reconhece.

Por exemplo, é legítimo perguntar se foi por acaso que o julgamento do deputado Amadeu Oliveira foi marcado para o dia 29 de Agosto próximo. Pese embora seja um processo de réu preso, não parece curial marcar-se o julgamento no dia 08 de Agosto para ser iniciado no dia 29. Mês de Agosto é o mês das férias judiciais, certamente que já antes do seu início a generalidade das pessoas terão já marcado as suas férias, as testemunhas do réu, até os seus advogados. Digamos que as garantias de defesa podem ficar fortemente diminuídas, o que não abona a favor da Justiça. Acresce que Amadeu Oliveira está acusado do gravíssimo crime de pretender “destruir o Poder Judicial” e de caminho também “destruir igualmente o próprio Estado de Direito Democrático”. Pessoalmente estou convencido que devia ser obrigatório haver um limite para o uso do ridículo, porém essa opinião não tem unanimidade e o ridículo continua a comandar com rédea solta.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 780, de 11 de Agosto de 2022

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