PUB

Convidados

Crónica do Rocca: Titio Guerrilheiro

Por: Rocca Vera-Cruz

Ele sempre se disse filho de Deus, o que significava claramente, entre outras coisas, ser merecedor de um prémio, uma folga anual, um direito adquirido que ganha mais valor quantos mais são os anos de casado. Por isso preparara com muita antecedência a partida da esposa para as ferias em Lisboa, férias que ele não se importava de pagar, não fosse algum percalço estragar a liberdade. Sonhava realmente com aqueles dias sem a hipótese terrível dela começar a conversa com umas pequenas, mas perigosas palavras: ‘uvi um cosa…’ ou, pior ainda, ‘m’ mêstê abordá um assunto má bô’.

(Já nem se lembrava do último beijo ou saudação de carinho, estava, realmente, farto de se sentir morto em casa, farto de abrir a porta esperando não encontrar a esposa,  de ouvir uma voz que já nada lhe dizia)

Bem cedo se meteram a caminho do aeroporto, Titio olhava, de vez em quando, para o relógio, estava ansioso, tinha chegado o dia. Sim, dentro de pouco tempo ele renunciaria àquelas coisas todas que estão no código civil às quais todos dizem sim e a que quase ninguém presta atenção e muito menos respeita.

Disse um dia, no final de uma ramboia na Pedra de Doca: ‘nessas coisas de casamento, tens de dizer sim a tudo, não vá a camarada se lembrar de alguma adenda àquela palhaçada’. E foi no final dessa rambóia, já no Caravela, que ele assumiu perante todos: ‘Sim, sou titio, mas um Titio Guerrilheiro, que não foge à luta, um Titio que leva tud strucid!’

(O código civil que fosse para o diabo que o carregasse)

O que contava a partir daquele momento era a sabedoria de uma casa de riolas e as decisões tomadas em sigilosos encontros realizados na fralda. Pela primeira vez depois de muitos anos, Titio decidira arranjar uma txutxa.  Demorou, mas chegou o momento e, sim, sentia-se ´góle’ por ter conseguido enganar a esposa sem que esta, em momento algum, tivesse desconfiado das suas constantes insónias cheias de desejo e que desassossegavam madrugadas solitárias e mal dormidas. Gó dzid!

(A baby não lhe saia da cabeça e não via a hora de se encontrar com ela e esquecer a vida em casa que mais parecia um mundo rodeado de mesmice, repetições enfadonhas de tudo, ontem, anteontem, o mês passado, tudo igual e assim seria no dia seguinte, depois de amanhã e na próxima semana)

‘Senhores passageiros’…

(Não via a hora de despachar a esposa, já sentia vergonha de ter ficado calado durante tantos anos, de ser fiel só na cabeça – ‘temos de levar a nossa vidinha, não é?, temos de pagar ao banco’).

E foram anos e mais anos nisto…

(Beijo, mais um, sem gosto. Aliás, este, até foi na cara)

Estava separado da baby por menos de 5 kms, qualquer coisinha podia ser fatal.

(‘Peço, sim, peço, peço porque posso e peço porque gosto!’)

Homem de idade a ir encontrar-se com menininha nova, Titio Guerrilheiro começou a ficar nervoso até porque nunca tinha pulado a cerca, nem mesmo quando foi a uma casa de muitas tolerâncias com uma delegação do Benfica e pagou 20 contos por um champagne de terceira categoria, naquele dia, esteve quase, quase, mas a bola bateu no poste e saiu.

Convencia-se, no entanto, que, às vezes, é melhor confiar para as coisas não piorarem. Falhar não falharia até porque também não tinha motivos para desconfiar do produto comprado na véspera, importação direta do Brasil, o tom azul vivo não enganava ninguém. A baby também não podia nem devia desconfiar do seu amor pois, para ele, não podia haver amor maior do que os envelopes que ia mandando, alguns bem grossos.

Desde a fase de sedução à fase crítica da babação, Titio nunca se sentira tão metido em tão doce amor. Mas estava valendo a pena, isso estava, como ele confessava em mensagens escritas da casa de banho, de madrugada, a última às 3h45, após ver o sorriso da jovem boazuda nas fotos enviadas por Messenger e Whatsapp, assim como no vídeo que jurava só ele ter recebido.

A sabedoria feminina é terrível quando aplicada na prática, pelo que o que a menininha queria mesmo era garantir o Titio manobrando de forma a evitar um terramoto conjugal e o golpe de estado que se seguiria lá em casa, não fosse o homem ter tempo para lhe chatear a vida, a ela e ao seu namorado.

Por isso, sempre que lhe preguntava se precisava de alguma coisa respondia, invariavelmente… ‘bô’, enquanto borrifava um pouco de Bad Girl, o perfume preferido.

(‘esh Titio ê sô intxadura, naquele assunto nem gosga se es ta fazeb’)

O ‘bô’ enlouquecia e chegava porque Guerrilheiro, no fundo, temia a chegada da hora F.

Na curva para o ghetto no Lazareto, mirou-se no retrovisor e aproveitou para engolir um comprimido de Viagra 100 enviando para o céu as suas preces, sem muita fé, é verdade.

E chegou ao destino, lá para trás no Lazareto,  onde o escuro é tal que até ‘gongon’ tem medo de ir, já não havia mais tempo para reticencias, nem portanto, nem ponto e virgula, não adiantava desculpar-se com a clássica dor de cabeça nem dizer que tinha de tomar um banho, primeiro. Naquele momento qualquer um pode se dar bem, até os feios, a cara não importa, o assunto é mais para baixo e lá, feio ou bonito, não interessa. Duro. E txau.

Falhou! Justamente quando o avião com a esposa passava em cima do ghetto, disse à txutxa, ‘esperá, esperá, tem calma’, a miúda respondeu, ‘mi um ta li ta esperá, jame tá ê ta perdê calma’.

Envergonhado não podia rezar porque já se tinha esquecido como era pelo que muito a custo, arranjou forças para se levantar e voltou para casa. Quase era possível ouvir os ecos do seu ego em cacos.. Terrivelmente abatido, pensou encomendar um trabalho pa levantá moral (porque outras coisas já não valiam pena), pelo que decidiu entregar 25 contos à universal, esquecendo-se completamente que a baby uma vez lhe disse: mi se bô da-me 25 conto m ta pôb morod ma deus.

(pedir eu peço, eu peço porque sim, eu peço porque gosto)

O problema é quando te dão, Titio Guerrilheiro!…

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 778, de 28 de Julho de 2022

PUB

PUB

PUB

To Top