Por: João Serra*
Ao analisarmos as características macroeconómicas dos países que possuem fundos soberanos (FS) deparamos com as seguintes principais determinantes para a sua criação: i) superavits significativos da balança corrente; ii) dependência das exportações de combustíveis e minérios e a necessidade de transformação dos recursos naturais em ativos financeiros; iii) altos níveis de poupança interna; e iv) pouca ou nenhuma dívida externa.
São estas caraterísticas que fazem com que haja recursos endógenos do Tesouro para a constituição de FS. E elas não existem na economia de Cabo Verde. Antes pelo contrário, a economia cabo-verdiana apresenta, precisamente, as caraterísticas opostas àquelas que levaram os países a criarem FS.
Com efeito, Cabo Verde é um pequeno Estado insular, praticamente desprovido de recursos naturais e com uma economia com as seguintes caraterísticas: i) pequena dimensão e altamente concentrada nos serviços de turismo; ii) balança corrente estruturalmente deficitária e balança de pagamentos muito dependente da ajuda externa e das remessas de emigrantes; iii) limitada propensão marginal à poupança, devido ao baixo nível do rendimento per capita; e iv) nível de endividamento público extremamente alto (pelo menos 160% do PIB) e com elevado risco de “default” (incumprimento).
Nestas condições, não há como financiar, com recursos do Tesouro, qualquer tipo de FS.
Ora, os dois FS criados em Cabo Verde em 2019, o Fundo Soberano de Emergência (FSE) e o Fundo Soberano de Garantia do Investimento Privado (FSGIP) têm uma particularidade, eventualmente, única no mundo: os seus recursos, praticamente, não são do Tesouro, mas, sim, provenientes das contrapartes das dívidas de terceiros. Isto é, foram os recursos (ativos) do “Trust Fund”, cujas contrapartidas (passivos) eram os Títulos Consolidados de Mobilização Financeira (TCMF) detidos pelo BCA e BCV, que foram transferidos para o FSGIP e FSE, sem que, antes, os respetivos passivos fossem regularizados pelo Tesouro. Para o efeito, o Governo assinou acordos com o INPS, ficando esta instituição com a responsabilidade de liquidar as dívidas junto dos credores dos TCMF (BCA e BCV), no valor de ca de 11 milhões de contos, para, posteriormente, ser ressarcido pelo FSGIP e pelo Tesouro, nos termos das condições acordadas com o Estado.
De um modo geral, trata-se de uma complexa operação de “swap” de títulos de dívida, que não pode ser considerada de soma-nula e nem livre de riscos, podendo, assim, impactar, negativamente, o stock da dívida pública.
Da forma invulgar como foi engendrada a engenharia financeira para a sua capitalização e operacionalização, na base da dívida, o “fundo soberano cabo-verdiano” é, por enquanto, um “fundo soberano negativo”. Na verdade, enquanto um fundo soberano (positivo) é um instrumento financeiro para a rentabilização dos recursos naturais e dos superavits orçamentais visando a acumulação de riqueza para as gerações vindouras, a dívida pública é um direito de terceiros à “riqueza” que será produzida, no futuro, no país. Assim, ao invés de uma poupança consistentemente acumulada, que permita assegurar o financiamento do nosso desenvolvimento económico e social e amortecer as consequências negativas de eventuais crises, estamos, cada vez mais, dependentes da dívida pública e, no curto prazo, da benevolência dos credores para aliviar o peso do serviço da dívida externa, que já consome, praticamente, toda a receita fiscal gerada no país.
Além disso, o arranjo jurídico-institucional do nosso “fundo soberano negativo” não está isento de incongruências substantivas. O mesmo se pode dizer relativamente à sua complexa e confusa engenharia financeira, não isenta de riscos potencialmente elevados.
De igual modo, aponta-se-lhe violação da própria lei que o criou e alguma falta de transparência, nomeadamente no que diz respeito à partilha de informação e publicidade, o que contraria alguns dos 24 princípios e práticas geralmente aceites para FS, os chamados “Princípios de Santiago”. Tais princípios são projetados para promover boas práticas de governação, prestação de contas, transparência e investimento prudente, incentivando um diálogo mais aberto e inclusivo e uma compreensão mais profunda das atividades dos FS.
Enfim, um FS insólito e atabalhoado, que começou com um mau sinal, ao se nomear para a sua gestão Administradores que, por lei, estavam impedidos de exercer tais funções, situação essa entretanto ultrapassada, com a alteração da entidade de supervisão do FSGIP.
Com o presente artigo, tentaremos abordar, de forma mais resumida e simples possível, o complexo e controverso FSGIP, cuja última alteração feita quanto à entidade de supervisão fora vetada politicamente pelo Presidente da República (PR), veto esse contornado com a reafirmação da alteração por parte da maioria na Assembleia Nacional (AN) que, com isso, acabou, também, por desautorizar o seu próprio líder, o Primeiro Ministro (PM).
Breves considerações sobre os Fundos Soberanos
São vários os FS criados pelos governos de todo o mundo com objetivos específicos, nomeadamente, a rentabilização dos recursos naturais, a acumulação de riqueza para as gerações vindouras e o apoio à economia.
Os seus ativos podem ser derivados de uma variedade de fontes e utilizados para uma variedade de propósitos, dependendo do país. Geralmente, são compostos de: i) recursos oriundos de lucros realizados com a extração de recursos minerais (além dos royalties provenientes dessas atividades); ii) reservas internacionais; iii) excedentes da arrecadação fiscal; e iv) lucros de empresas estatais.
A literatura económica indica que os FS são normalmente criados quando os países têm superavits orçamentais e têm pouca ou nenhuma dívida externa. Este é especialmente o caso quando uma Nação depende de exportações de matérias-primas como petróleo, gás, cobre ou diamantes. Nesses países, o principal motivo para a criação de um FS é a prevenção da ocorrência da chamada “maldição dos recursos naturais”.
A “maldição dos recursos naturais”, também conhecida como “o paradoxo da abundância”, refere-se ao paradoxo em que os países e regiões, com uma abundância de recursos naturais, tendem, por diversas razões, a ter menos crescimento económico e piores resultados de desenvolvimento quando comparados com países com menos recursos naturais.
Para evitar tal situação, acredita-se que a existência de FS, nos países com abundância de recursos naturais, possa ajudá-los a conter as despesas do Estado, dissociando-as da volatilidade de curto prazo das receitas, e a precaverem-se contra a “maldição de recursos”.
O Fundo Soberano de Garantia do Investimento Privado
Sob proposta do Governo, a AN criou, através da Lei n.º 65/IX/2019, de 14 de agosto, o já referido FSGIP para, conforme o Executivo, “promover o financiamento de projetos de média/grande dimensão com viabilidade assegurada, reduzido risco e efeitos socioeconómicos significativos”.
Segundo consta do suprarreferido diploma, o FSGIP tem por objeto garantir a emissão de valores mobiliários, em particular títulos de dívida, por empresas comerciais privadas de direito cabo-verdiano em mercados regulamentados para financiamento dos respetivos investimentos, e como finalidade acessória a concessão de garantias a operações financeiras de natureza equivalente de que sejam beneficiárias empresas comerciais privadas de direito cabo-verdiano.
Para a capitalização do FSGIP foram afetos 90 dos cerca de 100 milhões de euros de recursos do “Trust Fund”, este, entretanto, extinto pela Lei n.º 60/IX/2019, de 29 de julho. Os restantes 10 milhões de euros foram afetos ao FSE.
Enquanto exercia as funções de Governador do BCV, fui ouvido pela Comissão de Finanças e Orçamento da AN (CFO), em sessão pública. Aí, tive oportunidade de dizer o que pensava (e ainda penso) da solução encontrada para o resgate dos TCMF detidos pelo BCV. Salienta-se que a lei de extinção do “Trust Fund” e dos TCMF é omissa quanto à recompra dos TCMF detidos pelo BCA.
Conforme sintetizado e tornado público pelo jornal Expresso das Ilhas de 13 de março de 2019, dissemos, na CFO, que, para que o resgate dos TCMF não se consubstanciasse no aumento do stock da dívida pública, o Governo engendrou, com o quadro legal em processo de aprovação, a seguinte engenharia financeira relativamente aos TCMF detidos pelo BCV:
– O Tesouro cria e emite novos títulos de Tesouro, de renda perpétua (TTRP), sem vínculo ao “Trust Fund”, trocando-os pelos TCMF detidos pelo BCV;
– Os TCMF deixam de representar um passivo financeiro para o “Trust Fund”, viabilizando, assim, a sua futura extinção, ao mesmo tempo que se preservam as disponibilidades financeiras do “Trust Fund”;
– Os TCMF são substituídos por Títulos de Rendimento de Mobilização de Capital (TRMC), no âmbito da extinção do “Trust Fund” e, consequente, criação de dois novos Fundos (FSE e FSGIP);
– Os TRMC são colocados nos mercados de capitais, interno e externo, podendo ser livremente transacionados, ou seja, podem ser renegociados no mercado de capitais pelos investidores;
– Os TRMC passam a representar um passivo financeiro junto dos investidores;
– Os recursos mobilizados com a venda dos TRMC serão utilizados para o resgate e, eventualmente, a extinção dos TTRP detidos pelo BCV, saneando-se a dívida junto desta instituição; e
– Uma vez que as disponibilidades financeiras do “Trust Fund” foram preservadas com a operação de “swap” de TCMF por TTRP e transferidas para o FSE e FSGIP, os TRMC, à semelhança dos TCMF, passam a representar uma dívida de soma-nula.
Acrescentei que uma vez consumado todo este processo, teoricamente apenas a prazo, não se registaria o agravamento do stock da dívida pública, pelas seguintes razões:
– O efeito imediato da emissão dos TTRP é o registo de um aumento do stock da dívida pública, uma vez que, sendo um título de dívida pública, deverá ser reconhecido dentro do stock da dívida pública, contrariamente ao caso dos TCMF que, por não serem considerados títulos de dívida pública e estarem legalmente vinculados ao “Trust Fund”, não eram contabilizados dentro do stock da dívida pública;
– Não podemos esquecer que todo o processo em torno do “Trust Fund”, criado em 1998, teve o intento de deixar de reconhecer, no stock da dívida pública, as dívidas que o Estado tinha para com várias entidades, de modo que a emissão dos TTRP poderá representar, num primeiro momento, uma reversão contabilística desse processo;
– Entendemos que os TTRP não são títulos cuja dívida deva ser considerada de soma-nula, podendo-o ser apenas os TRMC, que estão legalmente vinculados ao capital do FSGIP, desde logo, porque os TRMC serão criados apenas para o FSGIP, ficando o FSE de fora;
– Ao se estipular um prazo máximo de 20 (vinte) anos para o resgate dos TTRP, faz com que o mecanismo proposto não se consubstancie numa correção imediata do aumento do stock da dívida pública, com implicações nos rácios de sustentabilidade das finanças públicas;
– Não se conhece, por ora, a natureza e as caraterísticas financeiras dos TRMC e, portanto, a apetência dos mesmos para os investidores de modo a nos permitir inferir se a sua colocação no mercado de capitais poderá ser bem-sucedida, o que viabilizaria um saneamento mais rápido da dívida do Estado junto do BCV;
– A engenharia financeira proposta não deixa de representar um financiamento ao Estado pelo BCV, sendo diferente apenas a forma encontrada para a sua materialização. (Esta situação, aparentemente, já foi corrigida com a recompra, pelo INPS, dos TCMF detidos pelo BCV.)
No entanto, contrariamente ao inicialmente previsto, a lei que cria o FSGIP veio estabelecer que os TRMC são emitidos pelo Estado e não pelo FSGIP, o que tornou a engenharia financeira de resgate dos TCMF ainda mais complexa e confusa do que já era.
Entretanto, segundo informações prestadas pelo Vice-Primeiro Ministro e Ministro das Finanças (VPM & MF), na segunda sessão da AN do mês de março pp., os TRMC não foram emitidos pelo Estado, mas sim pelo próprio FSGIP, o que constitui violação grave do estipulado nos n.ºs 2 e 4 do artigo 7.º da já citada Lei n.º 65/IX/2019, que estabelece que os TRMC devem ser emitidos pelo Estado.
Nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 20.º da Lei n.º 61/VIII/2014, de 23 de abril, que define as bases, os princípios orientadores do quadro normativo de referência para o sistema financeiro, a concessão de garantias é considerada uma atividade financeira. Por causa disso, o artigo 21.º da Lei n.º 65/IX/2019, inicialmente, previa que o FSGIP fosse supervisionado pelo BCV.
No entanto, com o argumento de que o FSGIP, por garantir a emissão de valores mobiliários e por ser uma entidade que presta garantias e, por esta razão, estar a ser erradamente supervisionado pelo BCV (segundo o líder da Bancada Parlamentar do MpD), alterou-se o artigo 21.º da Lei n.º 65/IX/2019, passando o FSGIP a ser supervisionado pela AGMVM. E esta alteração foi feita malgrado as sugestões do PR e contrariando a afirmação feita publicamente pelo PM de que a supervisão iria continuar no BCV, tal qual sugerido pelo PR aquando da devolução da lei que aprova a alteração, “para efeitos de melhor análise e ponderação.”
Ao justificar a opção de manter a proposta, o VPM & MF sublinhou que “com essa alteração vamos ter duas entidades a supervisionar o FSGIP. Uma diretamente, que é a AGMVM, em relação ao próprio Fundo Soberano, e uma outra, que é o Banco Central, que faz a supervisão e a regulação das instituições que irão fazer a aplicação dos ativos do Fundo. Vamos ter, aqui, uma dupla supervisão, uma dupla regulamentação e um duplo controlo.”
Julgo que é não é verdade que com a passagem da supervisão para a AGMVM passará a haver uma supervisão reforçada do FSGIP, da AGMVM e do BCV (para as entidades financeiras). Ora, nos termos do n. 2 do artigo 13.º da Lei n.º 65/IX/2019, a “aplicação dos recursos do Fundo é assegurada por instituições financeiras externas de direito público ou privado, reconhecidas pelo Banco de Cabo Verde como de elevada solidez e desempenho, mediante parecer prévio emitido para o efeito.”
Se se tratam de instituições externas, portanto sediadas fora de Cabo Verde, não sei como é que o BCV pode exercer sobre elas a sua autoridade de regulação e supervisão.
Por tudo isso, depreende-se que, infelizmente, não se compreendeu que FS é um tipo de fundo de investimento bem diferente dos demais fundos de investimento existentes no mercado financeiro. A principal diferença tem a ver com o facto de o FS, regra geral, não ser negociado em mercado, isto é, o investidor, não pode, simplesmente, investir nele. É o próprio FS quem investe em ativos financeiros. Também, contrariamente a um fundo de investimento clássico, o FS não é um instrumento financeiro que resulta da captação de capital junto de diversos investidores, o que os torna “proprietários” do fundo constituído, na exata proporção das unidades de participação que detêm. Pois, o Estado, por norma, é o único proprietário do FS, como é, aliás, o caso do FSGIP em que o Estado é, nos termos dos n.ºs 1 e 3 do artigo 7.º da Lei n.º 65/IX/2019, o único subscritor e proprietário exclusivo dos títulos representativos do seu capital social (TRCS).
É por causa dessas especificidades é que muitos FS ou são geridos pelos Bancos Centrais ou são supervisionados por estas instituições. E, a meu ver, o Governo, aquando da sua criação, andou bem em estabelecer que o FSGIP seria supervisionado pelo BCV. Este mesmo Governo, que passados pouco mais de dois anos e através do VPM & MF, veio considerar que, por não captar depósitos, não faz sentido que o FSGIP seja supervisionado pelo BCV, como se o BCV limitasse o seu âmbito de supervisão às instituições que captam depósitos. Que eu saiba, o BCV também regula e supervisiona as seguradoras e, estas com a certeza absoluta, não captam depósitos junto do público.
Praia, 22 de abril de 2022
*Doutor em Economia
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 765, de 28 de Abril de 2022