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Plurim de Pêxe

Por: Rocca Vera-Cruz

O dia de uma ‘vendêdêra de peixe’ começa bem cedo, logo quando as primeiras pessoas chegam à Praça Estrela e Rua da Praia. O Plurim de Pêxe é o destino para quem vende pescado, Nelly, mindelense de gema, começa o seu dia às 6h00 para para dar os expedientes antes de ir comprar a matéria-prima que rege a sua profissão. Tem de deixar tudo pronto para os filhos, normalmente um café de pobreza para acabar com a dublidade.

O peixe fresquinho chega ao plurim nos botes que andam em alto mar desde madrugada, para assim trazerem a frescura do mar até às mesas de cada um. O preço varia consoante a fartura da pescaria, como explica Nelly, de 49 anos, 20 no plurim de pexe e mais uns tantos no plurin de Rbirinha. Também teve um bar no Plurim de Monte Sossego, mais conhecido por Divorce, mas abandonou o negócio depois de entrar para a igreja.

Aqui no Plurim de Pêxe nunca existe um preço certo, pois o mesmo varia consoante o rendimento da pesca, e ‘já ca tem como dá um salha depos que es fiscal obrigá gente ta usá es balança de chinês’. São 8h30 Nelly chega ao mercado onde começa a embelezar a sua banca. Antes, passou por um dos botequins na Rua de Matigim, à procura do seu pai de fidj, com medo de que este, mais uma vez, desse um pinote e não fosse ao mar. A bebida, para muitos pescadores é um problemão naquela área. Quando está segura de que Lela está no mar, Nelly bebe um copo de café e um pão com manteiga ou uma cavala melodia com arroz. Se a coisa está ‘riolada’, tem de se contentar com um bife de caneca.

A ordem, frescura, qualidade e higiene são a imagem de marca da banca desta vendêdêra que coloca o peixe por tamanho, os mais pequeninos <ás vezes até servem de ‘faxon’. Os gestos são mecânicos numa arrumação que já sabe de cor e salteado. O freguês é quem mais ordena na banca da Nella’s, como é carinhosamente tratada pelos fregueses, uma mulher que tem toda a família a tirar o sustento do mar. Todo o peixe é colocado à disposição do cliente tal como saiu do mar, quando o “freguês” chega pede como quer que seja tratado. Com diz Nelly ‘só falta ir à casa do cliente cozinhar, porque o peixe sai daqui pronto para colocar na panela, quem dá sê marido fome ê nê nos culpa’’.Às vezes, na brincadeira, um cliente pergunta, ‘bô pêxe ê fresc, Nellas?’ ao que ela responde, ’mi um ca tem pêxe…ma quel que um ta vêndê ê fresk, sim, mas fresc di qui ele so se bô pol na frigorif’.

De vez em quando a Nelly dá um salto à estatua de Diogo Gomes pois tem lá um ‘baloi’ onde vende de tudo, desde drops e cigarros até grogue e estomperode, felizmente os fiscais nada dizem pois também são fregueses, pagando ‘na fim de mês’.

Daqui a pouco são 13h00 e ela prepara o almoço que trouxe de casa. Vai logo dizendo que não teve boa vida quando foi criança e que a vida no Plurim é a melhor que já teve por isso está habituada e agradece. ‘E nunca um tive cabeça pa escola’…Por isso habituou-se a viver com pouco e a vida não tem melhorado. ‘Tont ta dal’…

Com o frio de dezembro, a crise, a falta de dinheiro dos clientes e a venda de peixe nas ruas são muitos os factores que levam a existirem muitas horas mortas no plurim de pêxe. O tempo que sobra sem clientes serve para colocar a conversa em dia, discutir a novela ou um ou outro corno de alguma freguesa, principalmente de kês más trivida.

Muitas vendêdêras têm na família pelo menos um dos elementos e muitos amigos a trabalhar no mar. Nella’s e as suas colegas de mercado são exemplo disso. É com angústia que sabem as notícias dos seus “irmãos” que sofrem com as agruras do mar quando ‘saem’ mesmo contra as interdições das autoridades. O último caso ocorreu quando o Vai com Deus não sobreviveu às tormentas e colocou em risco de vida os seis tripulantes. ‘Se acontece uma desgraça com um dos nossos, todas sofrem porque temos filhos, sobrinhos e maridos no mar’.

O dia é longo no Plurin. Com o inverno só duas bancas estão abertas, mas no verão e com os emigrantes e turistas a fartura chega. O mercado fica repleto de peixe e as vendas são “melhor um czinha’. Até porque muitos homens vão lá apenas para comprar peixe para levarem para casa depois de terem enganado as mulheres que estiveram na pesca.

São 17h00 e Nelly tem de sair mais cedo pois uma mandjaca está à sua espera numa barraca na Praça Estrela, ela tem um casamento e quer estar bonita pelo que pagou caro por um cabelo postiço. E também tem de ir comprar um sapato no Nays, onde faz as suas compras, liquidando sempre em suaves prestações. E nunca falhou.

Quando o seu homem não tinha ainda avariado as ideias por causa do grogue eles viviam na descontra pois ganhava muito bem como estivador da enapor. Quando naufragou nos cacos, passou a ir cedo para a chamada no cais, fazia os cálculos de quanto ia ganhar por dia, ‘vendia o lugar’ a um outro por metade do valor e ia à sua vida, normalmente para os lados da Moagem, onde parte do recebido era investido em sêmea, vendida de imediato a um badio com lucros de 50%. Entrava depois na Ilda ou no Vinha onde, entre uma mão de matraquilhos e as tragedias da Record, bebia grogue acompanhado de uma boa bafa, queijo de S.Antão ou torresmo. Almoçava, quando tinha  apetite, o famoso arroz c’pêxe a 200 paus, feijoada de fabinha ou cachupa de grão.

A coisa saiu-lhe mal quando um estivador, que lhe comprou o lugar, lhe pediu para só pagar no final do dia, depois de receber. À tarde, depois do job, este meteu o dinheiro no ‘truce’ e caiu ao mar pelos lados do cais de pesca. ‘Subiaram-lhe’ isso no ouvido, deu a volta, foi esperar o camarada perto do Dokas, houve guerra feia, meteram-lhe uma facada e só acordou horas depois no hospital. O assunto chegou à administração que deu ordens expressas para cortar o expediente ao tipo, que teve de começar a trabalhar a sério, de novo. O período da ida à igreja durou o tempo da facada cicatrizar, irritavase com a fala murcha do padre e com o som desafinado dos cânticos. Passou a contar o tempo para aquilo acabar, ‘Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe’, finalmente chegar em casa e encontrar o bidion frito. Mas faltava o grogue, faltava o que lhe iluminava a vida e que o ajudava a chegar à noite e ultrapassar a ponte para o dia seguinte. Resolveu, pois mandar à merda o padre, o médico e Nella’s mais os seus conselhos. Mas Nelly nunca se separou dele. Resignou-se. Arranjaram um quartinho mesmo em frente ao plurin para que ela o controlasse melhor. E foi logo avisando que o marido não podia estar a menos de 20 metros do baloi debaixo da estatua. E como o homem não conseguia ficar parado, fugiu do grogue metendo-se num bote, ‘Ida’ e ganhava uns cobres levando pessoas para passeios na Fateja. A condição era regressar antes das 18h00, que é quando fecha o mercado e as vendedeiras voltam para as suas casas para, no dia seguinte, à mesma hora, voltarem para servir quem ainda procura frescura, qualidade e higiene no pescado.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 776, de 14 de Julho de 2022

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