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Economia

Turismo: Baixos salários e contratos precários podem ditar fuga de quadros qualificados

Os baixos salários, comparativamente ao custo de vida praticado, por exemplo, no Sal e Boa Vista, aliados aos contratos precários, à falta de cumprimento do Código Laboral e ao “desrespeito” pelos trabalhadores, são alguns dos motivos que podem levar muitos a abraçarem a oportunidade de irem trabalhar para o Algarve (Portugal), no sector do turismo. Contudo, é preciso garantir “bons contratos”, sendo legitimo a busca por melhores condições de vida.

A polémica que envolve as preocupações com a “fuga” de recursos humanos qualificados do sector do turismo nacional para trabalharem na Região do Algarve, em Portugal, centra-se, para muitos, numa questão essencial que é a dos baixos salários praticados em Cabo Verde.

Este tem sido um dos maiores desabafos de trabalhadores e da sociedade civil nas redes sociais.

Especialmente no Sal e Boa Vista, se tivermos em conta o custo de vida nessas duas ilhas, que são as duas maiores portas de entrada de turistas no país, e onde, por exemplo, os bens essenciais chegam a preços mais elevados.

A isso, aliam-se contratos precários, a falta de cumprimento do Código Laboral e “desrespeito” pelos trabalhadores, por parte, sobretudo, das grandes cadeias hoteleiras, como iremos ver ao longo desta reportagem.

Isto, sem contar com a perda de poder de compra dos trabalhadores, em consequência de dois anos de pandemia e, agora, dos efeitos da inflação provocada pela guerra na Europa.

O tema está, por isso, longe de ser pacífico, diverge opiniões, e tem feito correr muita tinta nas redes sociais e não só.

Se por um lado, as empresas não querem perder a mão-de -obra qualificada, na qual investiram e precisam para retomar a competitividade na época alta que se avizinha, por outro, os trabalhadores sentem-se, naturalmente, tentados a procurar uma vida melhor, lá fora.

Fuga de mão-deobra qualificada

A Associação Empresarial de Cabo Verde, sediada na ilha do Sal, e que não representa as grandes cadeias hoteleiras, mas sim pequenos operadores, foi das primeiras a mostrar publicamente a sua preocupação com essa fuga iminente da mão-de-obra qualificada do turismo nacional para a Região do Algarve, em Portugal.

Como é sabido, aquele destino luso está, desesperado, à procura de capital humano qualificado, para dar vazão à demanda turística.

Aliás, a própria secretária de Estado do Turismo lusa, Rita Marques, disse recentemente que Portugal precisa entre 45 a 50 mil trabalhadores no turismo.

Em relação a Cabo Verde estimavam, inicialmente, entre 2500 a 5000 mil vagas de contratação.

Números que fizeram soar o alerta do empresariado do sector. Aliás, a própria Associação Empresarial de Cabo Verde alertou publicamente o Governo para o perigo da efectivação dessa fuga de recursos humanos compromoter a retoma do turismo cabo-verdiano, em curso, em plena época alta que se avizinha.

Salário mínimo devia ser de acordo com o custo de vida de cada região

Questionado sobre a questão dos baixos salários praticados no sector estar a ser um dos motivos mais apontados, para uma eventual saída de recursos humanos do turismo nacional, rumo ao Algarve, Andrea Benolli, admitiu ser uma reinvindicação legítima.

O mesmo disse concordar com a necessidade de se “rever” o salário mínimo nacional, para que seja “justo” e “não o mesmo a nível nacional”. Ou seja, em termos práticos, esta associação defende que o salário mínimo deve ser “parametrizado” de acordo com o custo de vida por região.

“Embora o atual salário mínimo (13.500$00 para o setor privado) faça sentido em regiões menos desenvolvidas, nem sequer representa um valor útil para pagar renda de casa em regiões mais caras, como a ilha do Sal ou da Boa Vista”, assegurou.

Equidade no poder de compra

Essa associação defende, por isso, que o primeiro passo deve ser “garantir o mesmo poder de compra a todos os cabo-verdianos”. Isto porque, como justifica, o aumento, ou reajuste, salarial acaba por gerar mais dinâmica económica.

“Está economicamente comprovado que a economia de um país funciona melhor quando os salários são mais altos, pois o aumento do poder de compra permite maior circulação de dinheiro em benefício de bens e serviços não essenciais”, defende.

A questão do aumento ou reajuste salarial, deve ser concertado por todos.

“Em princípio, portanto, concordamos que deve haver uma revisão dos salários a nível nacional e, nesse sentido, convidamos os sindicatos a atuar em harmonia com o setor privado para encontrar medidas assertivas”.

Esse responsável apela a uma maior consideração dos setores que dinamizam a economia local e não “apenas dos grandes estabelecimentos turísticos”.

Emigração não depende só do salário

Contudo, a questão da emigração não depende apenas do salário, havendo outros critérios que levam as pessoas a procurar melhores condições de vida.

“Já tivemos a oportunidade de entrevistar quadros e funcionários cabo-verdianos que reconhecem que na oportunidade oferecida pelo Algarve há muito mais (do que o salário). Até porque, na maioria das vezes, as expectativas são de receber um salário mínimo, que não altera a qualidade de vida em si tendo em conta o custo da vida no Algarve”, esclarece.

O que marca a diferença, diz, são sobretudo as oportunidades e os serviços públicos oferecidos na Europa.

“Os serviços públicos oferecidos por Cabo Verde não têm comparação com os da Europsa e, para se ter uma ideia rápida, basta pensar na saúde pública, preços dos alimentos, formação escolar, transportes públicos, telecomunicações e na liberdade a mobilidade em qualquer país do mundo”.

Estas, diz, são condições que “não dependem” do sector privado, e, onde, actualmente, “não temos como ser competitivos”.

Importância do sector

Andrea Benolli reitera que a Cabo Verde Empresas não tem “nada contra” a saída de cidadãos à procura de uma vida melhor, mas que a sua preocupação, como elucida, prende-se com os impactos que isso pode trazer para a competitividade do turismo.

“Todavia temos de manifestar a nossa preocupação pelo choque que a perda de milhares de funcionários e quadros formados, e com experiência, iria comportar a um sector estratégico para o desenvolvimento do país, capaz de produzir 25% do Produto Interno Bruto (PIB) e contribuir com mais de 45% das receitas do Estado, ou seja, o principal contribuinte de Cabo Verde”.

Diálogo público-privado

Nesse contexto acima descrito, Andrea Bonelli diz acreditar numa solução “negociada” relativamente à contratação de Portugal, que afirma ser, “um importante parceiro” de Cabo Verde.

“Portanto, não temos dúvida nenhuma que as intenções sejam as melhores, pelo que convidamos os respetivos Ministros com competências na matéria a desenvolver um plano de acção que seja razoável pelo o sector privado e pelos trabalhadores, capaz de evitar choques não desejados e de acelerar o investimento na formação dos quadros e funcionários para substituir aqueles que irão emigrar”.

Esse responsável partilha da opinião que uma missão estrangeira a oferecer vagas aos trabalhadores cabo-verdianos deveria “sempre ser negociada” com o sector privado.

“Para aumentar o poder de barganha das instituições do Estado na negociação com os representantes da missão, mas, sobretudo, para proteger a economia dum país pequeno em termos de população e escala”.

Como conclui, somos um país com recursos escassos, “pelo que temos de “prestar atenção às dinâmicas que nos afectam e antecipar tendências através do diálogo público-privado para apoiar a tomada de decisões concertadas, sobretudo quando afetam setores estratégicos”.

Consultor questiona forma de exportação de mão-de-obra cabo-verdiana para o Algarve

Amílcar Aristides Monteiro, consultor de políticas públicas de desenvolvimento e vice-presidente da Associação Empresarial de Cabo Verde tem uma visão muito crítica sobre a exportação de mão-de-obra cabo-verdiana para o Algarve.

O mesmo começa por dizer que pode ser uma “boa” proposta, mas a forma como está sendo introduzida é que é “estranha”.

“Em qualquer país do mundo, quando há um nível de liberdade económica elevado, os Estados fazem acordos e criam relações multilaterais, através da OMC, ou bilaterais, como Cabo Verde e Portugal”, começa por dizer, para questionar que não sabe até que ponto a relação entre Cabo Verde/Portugal está num nível onde entidades do Estado português podem entrar em Cabo Verde e contratar mão-de-obra, “e ir embora sem acordo”.

“Claramente, o Governo quer resolver o problema dos desempregados, mas os desempregados do sector do turismo são poucos, são raros. Quem se formou para trabalhar em hotelaria está empregado, então é estranho isso acontecer sem uma contrapartida”, interpela.

Melhor qualidade de vida?

Além da questão salarial mais atrativa, o mesmo questiona ainda “como vão viver, como vão morar em Portugal?”. Isto, porque, como defende, não é só uma questão salarial.

 “Chegar em Portugal e ganhar um salário mínimo, pode não representar uma melhor qualidade de vida do que viver em Cabo Verde”, analisa.

“E não é a primeira vez que acontece na nossa história. Desde os contratados de São Tomé, há várias histórias de contratações que depois se revelam muito menos atrativas do que a proposta inicial. As pessoas têm que ir lá viver a experiência….”, alerta.

“É uma mão-de-obra barata, que vai aceitar o dobro do salário, uns 700 euros, que pode parecer muito melhor, mas a questão não é só essa”, prossegue.

Contratos colectivos

Nesse contexto, defende a negociação de contratos colectivos, contrapartidas para o Estado e contrapartidas para as empresas.

“Poderia haver um programa de rotação de estagiários entre o Algarve e Cabo Verde, no nível de gestão e no nível operacional, e muitas outras contrapartidas”.

Monteiro alerta que essa questão salarial, não é só no turismo, existe “em todas as áreas”, em Cabo Verde, onde se paga mal. E questiona: “Então vamos emigrar todos?”.      “Eu não a vejo como uma questão linear. Se há interesse de uma parte, o Estado deve sentar e negociar”.

Segundo o mesmo, a Cabo Verde Empresas tem duas propostas.

“Uma que, para cada mão-de-obra contratada, se formar alguma em Portugal. Portugal vem dando bolsas para Cabo Verde há muito tempo, portanto isso seria algo razoável. A outra tem a ver com a segurança social”.

Por outro lado, alerta, as empresas cabo-verdianas também precisam de mão-de-obra.

“Quem está desempregado não vai ser contratado porque não tem as qualificações necessárias. Na hotelaria ninguém trabalha sem qualificação e não se encontra esse tipo de profissional no mercado assim, espontaneamente”, adverte.

Autenticidade do destino

A sua preocupação diz, é que as empresas fiquem expostas à realidade de alguém vir buscar os seus melhores profissionais. “Depois não conseguem repor essa qualidade em pouco tempo”. Amílcar Aristides Monteiro alerta que a situação criada pode ser uma bola de neve.

“Porque sai a nata, e, depois, o que sobrar, não tem a qualidade necessária, o destino fica mais barato e o Estado não ganha.  Se não abrirmos os olhos é um perde-perde”.

O mesmo recorda que cerca de 90% da mão-de-obra no sector é nacional e que diminuindo para 60% o destino torna-se menos autêntico.

“Vir para aqui ou ir para o Senegal vai dar o mesmo. Podes banalizar o teu destino e podes perder o diferencial”. Contudo, admite que,  para os trabalhadores, a oportunidade pode ser interessante, porque podem “aproveitar” para exigir melhores condições salariais.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 780, de 11 de Agosto de 2022

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