O Ministério das Finanças tem em curso a “Operação Risco Zero”, via através da qual pretende cobrar parte, pelo menos, dos 19 milhões de contos de dívidas que os particulares têm com o Estado. Como o grosso desse dinheiro diz respeito a grandes contribuintes, há quem diga que “Risco Zero” visa sobretudo as pequenas e médias empresas. Diante das nossas questões, a DNRE prefere o silêncio.
Com a crise, os cofres do Estado estão pela hora da morte, com níveis de cobrança muito abaixo do habitual. A solução, por ora, foi o Ministério das Finanças, através da Direção Nacional de Receitas do Estado (DNRE), lançar a Operação Risco Zero.
Esta passa, entre outras medidas, por uma série de acções de terreno, conjugadas com inspecções, junto de alguns sectores considerados de elevado risco. E, em casos extremos, as autoridades não descartam a possibilidade de ordenar o encerramento dos devedores mais crónicos.
Em declarações recentes à RCV, a responsável da DNRE, Liza Vaz, revelou que existe um primeiro grupo formado por empresas que estão dispostas a cumprir, e “cumprem de forma voluntária”, e que isso, “relativamente a estes a atitude da administração tributária é facilitar”.
Um segundo grupo de devedores é integrado por aqueles que “querem contribuir, mas não sabem como fazer”, sublinhando aquela responsável que neste segmento “a atitude”, da DNRE, “é apoiar e esclarecer”.
Mas há ainda um terceiro grupo que “não quer bem cumprir, mas se for obrigado acaba por cumprir”. Para este grupo de renitentes, afirma Liza Vaz, “a atitude da administração tributária é controlar”.
Por último, há um quarto grupo de contribuintes que “insiste em não querer cumprir”. E, para este grupo considerado de elevado risco, a “Risco Zero” promete ser “musculada”, com medidas que poderão passar, no extremo, pelo encerramento de portas dos respectivos estabelecimentos.
A Operação Risco Zero, pelo que A NAÇÃO conseguiu saber, visa reduzir o gap fiscal, para fazer face à diferença de 40% na cobrança de impostos. Ao todo, o Estado tem por cobrar mais de 19 milhões de contos, parte importante dos quais junto de grandes empresas e grupos, que usam os mais variados estratagemas para fugir ao Fisco (ver xxx).
Diante de tal facto, um especialista em questões fiscais ouvido pelo A NAÇÃO entende que a presente campanha do Ministério das Finanças não passa de uma forma de “perseguir” as pequenas e médias empresas, deixando os “poderosos” de lado, como normalmente acaba por acontecer.
Além disso, o acto de fechar empresas “não é competência” das autoridades tributárias, mas, sim, do Ministério Público, daí esta medida não impressionar os “grandes” que sabem como fazer, através dos respectivos gabinetes jurídicos.
Além disso, sublinha a nossa fonte, “abuso de confiança fiscal não dá lugar a encerramento de empresas”, sublinhando que apenas os crimes de burla e falsificação de documentos é que poderão conduzir ao encerramento de empresas.
“Se houver situação que configurem o cometimento de crimes a DNRE deve-se submetê-las ao Ministério Público, que tem, esta sim, competência para o encerramento de empresas”, afirma.
Cumprimento voluntário
De acordo com um comunicado da DNRE, a Operação Risco Zero teve início no dia 27 de Julho e enquadra-se na segunda fase de uma série de operações de terreno. A mesma pretende promover o cumprimento voluntário das obrigações fiscais, aumentar a percepção de risco, bem como precaver as situações em que persistem o incumprimento e exigem uma actuação correctiva e punitiva face aos incumpridores.
Esta operação, que terá a duração de Julho a Dezembro, será concluída com a materialização da terceira fase – inspecção (corretiva/punitiva), que consiste em identificar e inspecionar os contribuintes que persistem em situações de incumprimento, agindo punitiva e criminalmente, quando tal se justifique.
A primeira fase da Operação Risco Zero fase preventiva/pedagógica -, iniciou-se no primeiro trimestre, com a realização das sessões de esclarecimento, no âmbito do princípio da cooperação determinado no nº 1 do art.º 69º do Código Geral Tributário (CGT), junto dos operadores económicos de risco.
Estado tem mais de 19 milhões de contos por cobrar
Dados e mapas a que A NAÇÃO teve acesso indicam que mais de uma centena de entidades devem ao Estado acima de 19 milhões de contos, tanto em IVA como de retenção na fonte.
Tais dívidas arrastam-se há vários anos, com o alegado beneplácito das autoridades tributárias, principalmente quando os devedores são as grandes empresas e grupos. Neste rol estão vários grupos turísticos, empresas de algum porte, entre outros.
O especialista consultado pelo A NAÇÃO alerta que as colectas não entregues constituem crime e que por isso “é incompreensível” que a administração tributária não esteja a agir sobre os grandes contribuintes, preferindo, em vez disso, apertar o cerco às pequenas e médias empresas.
“Com esta postura da administração fiscal está-se perante uma clara violação do artigo 91º (Princípios gerais da organização económica), que estatui que a exploração das riquezas e recursos económicos do país, qualquer que seja a sua titularidade e as formas de que se revista, está subordinada ao interesse geral”, advoga.
O referido artigo sublinha ainda que o Estado, no seu todo, através dos seus mecanismos de funcionamento, garante as condições de realização da democracia económica.
Isso passa, designadamente, pela fruição por todos os cidadãos dos benefícios resultantes do esforço colectivo de desenvolvimento, traduzida na melhoria quantitativa e qualitativa do seu nível e condição de vida, assim como a igualdade de condições de estabelecimento e de actividade entre os agentes económicos e a sã concorrência.
Porém, se esse é o princípio geral, a realidade é bem outra, como refere o nosso interlocutor. “A uns é permitido ficar com recursos do Estado (IVA e retenção na fonte), por um bom período de tempo, fazendo o financiamento ‘indevido’ das suas actividades, através de recursos dos contribuintes, aos outros, nomeadamente os mais frágeis, é aplicada a lei e com ameaças de encerramento das suas actividades comerciais”.
Para o nosso interlocutor, as acções da DNRE no terreno e nos serviços das repartições territoriais e no controlo da conformidade tributária, “visam essencialmente os ditos pequenos contribuintes com contabilidade organizada e às pequenas e médias empresas (PME) que, são o sector da economia mais dinâmico e de crescimento mais rápido na maioria dos países africanos, com grande impacto no emprego, que conforme relatados por alguns destes contribuintes contactados, de serem afrontados pelos serviços das finanças concelhias, com cobranças coercivas e contra ordenações”.
Este especialista em questões fiscais pergunta a quem interessa a “inércia, ineficácia e ineficiência da DNRE” na cobrança de impostos dos ditos grandes contribuintes, que “acumulam impostos por pagar, a rondar os 19 bilhões de escudos, liquidados”, ou seja, impostos apurados pela administração tributária, “de 2016 à presente data”.
Para a mesma fonte, muitos dos grandes contribuintes dizem, em sua defesa, que o Estado não lhes paga o que lhes deve e que, por isso, procuram não pagar os impostos devidos. “Contudo, quando fazem uma colecta e não pagam ao fisco incorrem a um crime de abuso fiscal”, adverte.
A não entrega do IVA e da retenção na fonte constituem crimes fiscais, puníveis nos termos dos artigos 89º e 94º do RITNA (Regime das Informações Tributárias Não Aduaneiras), por abuso de confiança fiscal.
Arrecadação de receitas “não é animadora”
A cobrança de impostos é tida como essencial para a sobrevivência económica de qualquer país. No caso de Cabo Verde, mesmo antes da covid-19, a eficácia da administração tributária era tida como sendo “crítica”, mas também injusta, já que que os contribuintes que não têm como fugir à malha do fisco é que acabam, na prática, por carregar o país às costas.
“Normalmente, as formas de os Governos financiarem as suas acções, principalmente as de caracter social, são por via de recursos provenientes de arrecadação dos tributos nos termos constitucional e também, pelos meios económicos e financeiros, angariados no quadro de cooperação internacional”, lembra o nosso interlocutor.
Este especialista realça, porém, que, ao longo dos anos, os sucessivos governos têm demonstrando “competências” em aceder recursos económicos e financeiros vindos dos parceiros internacionais, mas “o mesmo não se pode dizer em relação à arrecadação das receitas fiscais de todos os contribuintes”.
“Os resultados não são animadores, pelo facto de existir grande stock de impostos liquidados por cobrar. O Banco Mundial e o FMI vêm interpelando, em sucessivos relatórios, da necessidade de se maximizar recursos provenientes de fiscalidade”, afirma.
DNRE prefere silêncio
Para o cabal esclarecimento da “Operação Risco Zero”, especialmente o alegado gap de 40% na cobrança das receitas fiscais, A NAÇÃO tentou ouvir, através de uma entrevista presencial com a DNRE, Liza Vaz, que foi recusada. Mesmo assim, enviamos, na segunda-feira, de manhã, um conjunto de perguntas, das quais não obtivemos qualquer resposta.
O nosso questionário passava, entre outros aspectos, por saber se realmente a administração tributária está a “perseguir” os pequenos contribuintes, em detrimento dos grandes contribuintes que devem mais de 19 milhões de contos em impostos (IVA e retenção na fonte).
Também quisemos saber como a DNRE pretende fechar portas dos estabelecimentos dos incumpridores, sabendo que esta é uma competência do Ministério Público?
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 780, de 11 de Agosto de 2022