Por: Pedro Rolando dos Reis Martins*
O recente reconhecimento pelo World Monument Fund (WMF) do Ex-campo de Concentração do Tarrafal como património arquitectónico de caracter universal vem confirmar a sua importância política, cívica e cultural que muitos de nós tem vindo a defender, e que deverá ser perpetuado pela sua adaptação num Museu de Resistência.
O WMF é uma organização internacional prestigia- da que se tem dedicado à preservação de patrimónios mundiais tão significativos como algumas catedrais na Europa, a muralha da China, templos budistas em Cambodja e tanto outros. Se por um lado esse re- conhecimento abre portas à possibilidade de se obter fundos a nível mundial para a preservação da sua estrutura arquitectónica, por outro expõe o ritmo lento das autoridades competentes na valorização de um património de tal envergadura.
Nunca é demais lembrar-se que o Ex-Campo do Tarrafal é o maior símbolo da luta pela emancipação e conquista dos direitos democráticos dos povos de Angola, Cabo Verde, Guiné e Portugal. Nas suas masmorras também estiveram presos anti-fascistas da Alemanha, Espanha e Polónia. Soldados moçambicanos chamados «tropa Landim», foram utilizados como guardas auxiliares das tropas portuguesas.
Sendo o acto de emancipação de um povo um evento histórico de impacto fundamental para o advir do seu desenvolvimento sócio-económico, a transformação do Ex-Campo num museu de resistência, covertelo-á num centro de celebração da liberdade de quatro povos, e marcará um dos períodos mais importantes na história da civilização humana no século XX, que foi a da luta contra o fascismo na Europeu e contra o colonialismo em África.
A causa da liberdade
Aconselham os grandes pensadores que se deve enfatizar o lado positivo dos factos para servir de referência e de fonte de inspiração às gerações vindouras. Falar-se do Ex-Campo sem se referir aos ex-prisioneiros políticos que o emprestaram a notoriedade, é uma atitude cínica e conveniente que não deve ser tolerada. É preciso ter bem alto na memória, que os prisioneiros políticos do Tarrafal foram homens que se dedicaram generosamente à causa da liberdade, expondo-se às terríveis consequências da ditadura colonial-fascista. Esses homens, jovens, pais de famílias, intelectuais e trabalhadores não procuravam nenhum benefício pessoal, nenhum estatuto particular e nem um reconhecimento pela sua coragem e sentido de dignidade. Procuravam sim a liberdade e uma vida melhor para os povos que representavam. Entretanto, num país que copia quase tudo do master colonial, convenientemente, os seus responsáveis se esqueceram que a Assembleia Nacional de Portugal, o órgão máximo de soberania do Estado Português, teve a iniciativa e dignidade de condecorar e reformar devidamente todos os seus ex-prisioneiros políticos.
Em Cabo Verde, somente alguns que passaram pelo Ex-Campo receberam uma pensão mínima, e ainda que isso não bastasse, a mes- ma é feita no quadro da luta contra a pobreza, isto é, como caridade em relação a mendigos.
Contrariamente ao intuito da ditadura salazarista o Campo uniu os povos de Angola, Cabo Verde, Gui- né e Portugal através das suas respectivas lutas para conquista dos seus direitos fundamentais que eram interligados e comuns a todos. Indubitavelmente, o Ex-Campo é um símbolo incontornável dos povos que hoje se encontram organizados nos PALOPs. Os símbolos têm sido instrumentos poderosos na passagem de testemunhos históricos e na educação dos po- vos. Recordemos o caso dos obeliscos egípcios, cujas réplicas foram aparecendo através dos séculos na Europa, América e demais continentes simbolizando o poder de estado. Inclusive os extremistas da Al-Qa-eda compreenderam o valor do simbolismo quando seleccionaram «World Trade Center» como alvo do seu ataque contra o Ocidente.
Monumento de carácter universal
O reconhecimento do Ex-campo como um monumento de carácter universal, foi uma chamada de atenção aos países que formam os PALOPs, pela falha de capitalização duma oportunidade de salvaguarda de um património histórico que os une e que mostra o mais belo que os homens desses países fizeram, desafiando o monstro da repressão da PIDE para fazer triunfar a liberdade dos seus povos.
A assumpção pelos PALOPs do projecto de transformação do Ex-Campo num Museu de Resistência dos povos que lutaram contra a ditadura salazarista e triunfaram, parece ser o caminho mais eficaz para a obtenção desse objectivo. Essa iniciativa seria benéfica para a sua própria organização que labuta procurando projectos comuns para países que representa. Fundos necessários poderão ser encontrados no âmbito dessa organização, para além de outros esforços que vêm sendo feitos no quadro do reconhecimento do WMF.
Esforço de preservação
Tem havido algum esforço de preservação do património através de um fundo de trinta mil contos fornecidos pelo governo português, e de outro de cinco mil contos do governo de Cabo Verde. Na utilização do primeiro financiamento, certas intervenções arquitectónicas foram incorrectas e lesivas ao património que se pretende preservar.
Houve a tentação deliberada de restaurar o Ex- campo como foi construído logo no início. Nessa lógica a gigantesca muralha de pedra teria que ser destruída, por não ter sido construída no início do funcionamento do complexo. A construção do mes- mo, a fortificação das suas defesas e, sobretudo, das muralhas, assim se processou até a queda do Campo no dia 1 de Maio de 1974. Esse tipo de intervenção referida visou minimizar a presença da luta contra o colonialismo, e o período em que aí estiveram encarcerados os patriotas africanos. O exemplo dessa incorrecção é o edifício onde funcionava a direcção administrativa do Campo; o mandatário dessa intervenção chegou ao ponto de sugerir que as telhas originais de lusalete fossem substituídas por telhas marselhesas por motivos de estética turística! Por outro lado, houve pequenas intervenções aqui e acolá, no sentido de reverter o desmoronamento de vários elementos arquitectónicos tais como vigas, lintéis, alvenarias, rebocos, portas e etc. Apesar desse esforço, e tendo em consideração a dimensão do património, tem-se a sensação de que o mesmo está abandonado. Ainda nas suas instalações, no exterior das muralhas, vivem refugiados que mendigam aos visitantes, reforçando uma imagem pouco dignificante do complexo.
Informalmente, através do Embaixador de Portu- gal soubemos que há uma iniciativa do Presidente de Cabo Verde junto aos seus homólogos dos PALOPs no sentido da busca de uma estratégia e de fundos para o futuro Museu de Resistência. Sugeríamos que essas ideias fossem compartilhadas com as organizações e individualidades que se têm dedicado aos mesmos objectivos. O processo ganhará com a inclusão dos vá- rios parceiros interessados num desenlace positivo, de um símbolo tão importante como o da luta pela liberdade.
Um novo fôlego
Um novo fôlego parece ter soprado com a inclusão do Ex-Campo na lista dos 100 patrimónios mundiais em perigo pela WMF. É de se louvar o diploma do governo de Cabo Verde, que finalmente considera o património do Ex-Campo como um monumento nacional. Também a escolha de um dia como o da resistência contra o colonialismo e fascismo, merece o aplauso de todos os amantes da liberdade.
Entretanto, a data escolhida deve ser revista, pois a de 29 de Outubro simboliza a abertura do Campo. Deve-se comemorar a vitória e não uma acção de triste memória. Coincidentemente, o dia da queda do Campo, o dia 1 de Maio de 1974, de acordo com uma entrevista num jornal cabo-verdiano do poeta e nacionalista Osvaldo Osório, nos anos oitenta, foi o palco da maior manifestação do povo jamais visto em Cabo Verde. Essa data que carrega um simbolismo tão grande como o da queda de Bastille na história francesa, deve ser preservada por que foi compartilhada por todos os cabo-verdianos, mesmo por aqueles que não estavam na ilha de Santiago. De facto, o significado da libertação é tão simples de entender e tão poderoso, para fazer tremer os alicerces de sistemas opressivos. Por isso, o 1o de Maio também tinha sido indicado pela Associação dos Ex-Presos Políticos como o dia de todos os ex-presos políticos.
Benefícios para Tarrafal
O concelho do Tarrafal irá beneficiar-se imenso com a transformação do Ex-Campo num museu de resistência, e deve preparar-se para capitalizar nos consequentes benefícios.
Tarrafal hoje tem um monumento histórico de carácter universal reconhecido internacionalmente que poderá, em concertação com outras fontes de atracção turística como as suas praias, o seu clima diverso e etc, atrair uma nova gama de turistas. É uma potencial mais valia que exige uma planificação urbana, sobre- tudo em zoneamento, nas imediações do complexo, e preparação de recursos humanos.
Conhecer a experiência dos municípios polacos, alemães e outros em cujos territórios foram construídos Treblinka, Dauchau e outros campos de concentração nazistas, hoje transformados em museus, permitirá preparar-se atempadamente para promover de forma organizada os serviços que brotarão à volta desse empreendimento.
Falha nos currículos académicos
Os ministérios do governo com a responsabilidade de formação académica e cultural nos sucessivos governos constituídos desde a independência, têm falhado ao povo de Cabo Verde na transmissão à nova geração a história recente de Cabo Verde, a de maior importância para o reforço do carácter nacional e de desenvolvimento do país. Os currículos escolares nessa matéria parecem dar maior importância ao período em que éramos escravizados por um poder colonial retrógrado, do que o período em que os cabo-verdianos recusaram a canga e buscaram o seu destino como um povo livre e independente. O concelho do Tarrafal está em posição privilegiada para assumir conjuntamente com outras vozes contra o status quo, no sentido de alterar essa grande falha que existe nos currículos académicos em Cabo Verde.
A celebração do Ex-Campo de Concentração é uma obrigação colectiva de memória e de dignidade de todas as nacionalidades dos governos envolvidos, de todas as instituições responsáveis pelo sector cultural e académico, e de todas as individualidades que respeitam a dignidade humana. Abstraindo-se do seu passado tenebroso e apoiando-se na generosidade e na beleza dos ideias dos presos políticos, o Ex-Campo pode ser considerado como catedral da independência e da liberdade.
*Falecido a 02 de Agosto de 2021
**Com a devida vénia, (re)publicamos o artigo do ex-Preso Político e (então) Arquitecto Pedro Martins, dado à estampa na Revista “Tarrafal”, nº 1, propriedade da Câmara Municipal do Tarrafal (de Santiago), de Janeiro de 2007, editada por Alfa-Comunicações.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 779, de 04 de Agosto de 2022