Por: João Serra*
I. Breves considerações sobre a crise global de alimentos
Segundo um comunicado da Economist Intelligence Unit (EIU), da revista britânica The Economist, citado pela agência de notícias portuguesa LUSA, os preços de produtos agrícolas deverão manter-se elevados durante grande parte do ano em curso, devido ao conflito russo-ucraniano.
Com efeito, a Ucrânia e a Rússia são os principais países do mundo exportadores de cereais. Estes dois países juntos, são responsáveis por 30% do comércio global de trigo, 17% do milho e mais de 50% do óleo de girassol.
De acordo com a EIU, a Ucrânia sozinha fornece cerca de um quarto das importações de cereais e óleos vegetais da União Europeia (UE) e cerca de metade das importações de milho.
Aproximadamente dois terços das exportações de grãos da Ucrânia e três quartos das exportações de óleo de semente de girassol saem através dos portos do Mar Negro do país, muitos dos quais estão fechados.
Além disso, grandes companhias marítimas como a Mediterranean Shipping Company, da Suíça, a Maersk, da Dinamarca, e a CMA CGM, da França, suspenderam temporariamente as remessas de carga de e para a Rússia, em resposta às sanções dos EUA e da UE ao país.
Por outro, a EIU prevê “mais interrupções no fornecimento na Ucrânia, especialmente porque as rotas terrestres também serão afetadas, devido a estradas intransitáveis por causa dos bombardeamentos, ao mesmo tempo que veículos pesados de mercadorias serão desviados para uso militar.”
Também as linhas ferroviárias “provavelmente serão danificadas e inoperantes”, o que, segundo a mesma fonte, “agravará a situação no Mar Negro, onde os portos provavelmente permanecerão inutilizáveis por muitos meses”.
Como resultado, os preços globais das mercadorias agrícolas dispararam e espera-se que permaneçam elevados enquanto o conflito continuar na Ucrânia. E, como tudo indica, a guerra na Ucrânia deve durar pelo menos vários meses, a EIU prevê que os preços dos produtos agrícolas permaneçam elevados durante grande parte do ano.
Neste quadro, a EIU estima que os preços médios dos grãos de cereais deverão subir quase um terço este ano, a acrescentar ao aumento de 40% registado em 2021.
Por sua vez, os preços do óleo de girassol deverão aumentar em 2022 – em vez de caírem, conforme estava previsto antes da invasão russa da Ucrânia –, indica a EIU, referindo que já em 2021 os preços subiram quase 60%.
“Preços mais altos de grãos e interrupções nas exportações também afetarão negativamente os mercados de gado e carne em todo o mundo”, alertam os analistas da EIU.
Por tudo isso, os consumidores enfrentam “fortes aumentos de preços de alimentos básicos”, diz a EIU. Esta situação, aliada às interrupções nas cadeias de produção, fornecimento e transporte de grãos e às restrições impostas às exportações da Rússia, “terá repercussões na segurança alimentar”, alerta o diretor-geral da FAO, Qu Dongyu.
Se a redução das exportações da Ucrânia e da Rússia perdurarem, “o número global de pessoas subnutridas poderá aumentar de 8 a 13 milhões em 2022/2023”, estima a FAO. E as regiões mais afetadas seriam Ásia-Pacífico, África Subsaariana, Médio Oriente e Norte de África.
A subida dos preços, que já estava em curso, veio agravar-se com a invasão russa à Ucrânia, tanto ao nível da energia e dos combustíveis, como das “commodities” agrícolas e outras matérias-primas. Um aumento que já se sente nos bolsos dos consumidores e com consequências para os rendimentos das famílias, sobretudo as mais desfavorecidas.
Na sequência do aumento dos preços dos alimentos e dos custos dos fatores de produção, como a energia e os fertilizantes, vários países, no mundo inteiro, vêm tomando uma série de ações a curto e médio prazo, visando reforçar a segurança alimentar, apoiar os agricultores e proteger os consumidores.
Por exemplo, a União Europeia realça que “o nosso setor agrícola é um importador líquido de produtos específicos, como por exemplo alimentos para animais ricos em proteínas. Esta vulnerabilidade, juntamente com o elevado custo dos fatores de produção, como os fertilizantes e a energia fóssil, está a ameaçar os níveis de produção dos agricultores e poderá provocar uma subida dos preços dos produtos alimentares”. Daí, a necessidade de se adotar um conjunto de ações, refere uma nota de imprensa da Comissão Europeia (CE), citada pelo jornal português Expresso.
Entre as medidas adotadas pela CE, está a possibilidade de os Estados-membros poderem aplicar taxas reduzidas do IVA sobre os produtos alimentares e incentivar os operadores económicos a controlar os preços de retalho, “para tornar o custo dos alimentos mais acessível”.
Os Estados-membros podem também recorrer a fundos da UE, tais como o Fundo de Auxílio Europeu às Pessoas mais Carenciadas, que apoia as ações dos países da União para fornecer alimentos e/ou assistência material de base aos mais vulneráveis.
Neste contexto, foi criado, em Portugal, no quadro de um conjunto de apoios às famílias e empresas, um apoio extraordinário para as famílias mais vulneráveis para mitigação dos efeitos do aumento extraordinário dos preços dos bens alimentares de primeira necessidade.
A nova prestação social destina-se às famílias abrangidas pela tarifa social de eletricidade, que agregam cerca de 1,4 milhões de beneficiários. Será de 60 euros, pagos de uma só vez em abril, e as pessoas não terão de se candidatar ou de apresentar prova de que já beneficiam da tarifa social da eletricidade, porque a “Segurança Social fará o pagamento do apoio extraordinário a estas famílias de forma automática e oficiosa”, assegurou o Governo português em comunicado.
II. Medidas de mitigação da crise de alimentos e energia anunciadas pelo Governo de Cabo Verde
Conforme referido no meu último artigo, Cabo Verde vem sofrendo, grandemente, com a escalada dos preços dos alimentos e dos combustíveis no mercado internacional, na medida em que importa cerca de 90% desses produtos para o consumo interno.
Com efeito, segundo dados publicados recentemente pelo INE, os preços dos produtos importados aumentaram 3% em fevereiro de 2022. O aumento dos preços ocorreu nas seguintes categorias de grupo: “bens de consumo” (2,3%), devido à subida de preços de “produtos alimentares primários” (2,8%); “bens Intermédios” (1,6%), que se explica, essencialmente, com a subida dos preços de “produtos transformados para indústrias várias” (7,0%); e “combustíveis” (5,1%), justifica-se com a subida da única subcategoria denominada “combustíveis” (5,1%).
Em termos homólogos, os índices de preço da importação aumentaram 17,5%, relativamente ao mês de fevereiro de 2021.
Além disso, na sua última missão, ocorrida no mês de março corrente, o FMI considerou que “a situação económica de Cabo Verde será difícil”. Esta instituição prevê que “Cabo Verde vai crescer, em 2022, à volta dos 4%, com uma redução de dois pontos percentuais face à última previsão, que era de 6%.” Para a inflação, o FMI prevê “um aumento ‘histórico’ para 7%”, valor muito superior à previsão do Governo para a inflação em 2022 (entre 1,5% e 2,0%).
Entretanto, o Governo, que já tinha dito que não iria manter as medidas compensatórias para conter a subida de preços de determinados bens essenciais – por não serem sustentáveis, deixando o mercado funcionar livremente –, reconsiderou a sua decisão.
Assim, durante a sua intervenção no debate sob o lema “Governar em tempos de crise”, debate esse ocorrido no Parlamento, no dia 23 do corrente mês de março, o Primeiro Ministro (PM), José Ulisses Correia e Silva, anunciou que “o Governo vai implementar um conjunto de medidas, visando a estabilização de preços de combustíveis, do trigo, milho, arroz, óleos alimentares e leite em pó, devido aos impactos da guerra na Ucrânia nos principais parceiros comerciais de Cabo Verde.”
Entre outras medidas mitigadoras da crise que o Governo vai adotar, o PM apontou as seguintes:
– Reforço da capacidade de stockagem de cereais a granel;
– Extensão do período de oferta de refeições nas escolas e aumento de bonificação de alimento para gado;
– Reforço de ações de fiscalização para evitar o açambarcamento de produtos de primeira necessidade e a especulação de preços;
– Incentivos aos importadores na realização de compras agrupadas;
– Mobilização externa de ajuda alimentar;
– Aumento de beneficiários do RSI; e
– Linhas de crédito agrícola e à pesca semi-industrial em condições favoráveis, no montante de 600 milhões de escudos.
A estas medidas acrescem às em vigor, implementadas no âmbito da proteção de Covid-19.
Outrossim, o PM informou que um novo pacote plurianual de infraestruturas irá ser implementado, visando dinamizar a construção civil e o seu impacto no emprego de população de baixo rendimento. No Turismo, setor mais atingido pela crise da pandemia, vai-se proceder à extensão de moratórias e reestruturação das dívidas.
José Ulisses Correia e Silva avançou ainda que o Governo irá tomar outras medidas relacionadas à contenção de gastos do Estado, designadamente o reforço da fiscalização no cumprimento da lei quanto ao uso de viaturas do Estado.
As medidas, em concreto, seriam anunciadas após serem aprovadas pelo Conselho de Ministros (CM).
Efetivamente, na sexta-feira, dia 26, foram anunciados dois pacotes de medidas, aprovados em sede do CM.
O primeiro pacote tem a ver com as medidas para redução da carga fiscal sobre o leite e manutenção dos preços dos cereais. Estas medidas foram anunciadas pelo Ministro da Agricultura e Ambiente. Gilberto Silva informou que o Governo decidiu, em reunião do CM, reduzir a carga fiscal sobre o leite em pó, por forma a “que os preços possam baixar em relação aos níveis atuais”. Também referiu que, através da intervenção decidida pelo Governo, os preços em vigor do milho, trigo e óleos alimentares, serão mantidos, durante os próximos três meses, “através de compensação financeira”, tendo como base o preço médio das últimas importações pelo país. “Trata-se de uma medida válida por três meses, mas que poderá ser renovada por iguais e sucessivos períodos, se a conjuntura internacional assim justificar”, anunciou ainda.
O Ministro explicou que as medidas para mitigação da escalada de preços no setor alimentar visam assegurar o acesso aos alimentos “para que não haja rutura nos produtos alimentares de primeira necessidade”, como é o caso do milho, trigo, arroz, açúcar, feijão, leite e óleo alimentar.
Para além disso, o Governo vai estabelecer acordos com silos privados para aumentar a capacidade de armazenamento de cereais no país, no caso do milho, de 14 para 32 mil toneladas, visando, também, garantir a “continuidade da atividade pecuária em condições de rendimento”, tendo em conta a importância que representa “pela disponibilidade de alimentos e rendimentos para a famílias”.
O segundo pacote refere-se a medidas para mitigação da subida de preços dos combustíveis e que consistem no congelamento do preço do gás e do fuel para produção de eletricidade e no estabelecimento do limite máximo de 5% para aumento do preço da gasolina e gasóleo. Foram anunciadas pelo Ministro da Indústria, Comércio e Energia, Alexandre Monteiro.
Conforme anunciou, o gás butano e o fuel para a produção de eletricidade vão manter o preço atual até junho. Neste quadro, os preços máximos de venda ao público referentes ao mês de abril permanecem fixos, ou seja, nos níveis atuais vigentes (preços em vigor no corrente mês de março). Esta medida tem por objetivo reduzir o impacto que se tem feito sentir com a subida continuada dos preços dos combustíveis.
Alexandre Monteiro informou, ainda, que aos demais preços dos combustíveis regulados, nomeadamente gasóleo e gasolina, é fixado um limite de 5% como aumento máximo no mês de abril. Nos restantes meses (maio e junho), poderão também ser introduzidos ajustes em função da avaliação do evoluir da conjuntura internacional.
As medidas anunciadas foram, entretanto, publicadas no BO, através da Resolução n.º 28/2022, de 25 de março.
No cômputo geral, as medidas com maior impacto social e económico, de imediato percetível, já tinham sido aprovadas em sede do Orçamento do Estado para o ano em curso (OE2022), tais como:
– A redução da taxa do IVA, na eletricidade e água, de 15 para 8% (279 milhões de escudos);
– O aumento da comparticipação do Estado, no valor da fatura de consumo da eletricidade para as famílias beneficiárias da tarifa social, de 30 para 50% (200 milhões de escudos);
– O aumento dos beneficiários do Rendimento Social de Inclusão para cerca de 4.500 famílias (430 milhões de escudos) e da Pensão Social para cerca de 23.825 beneficiários (1.724 milhões de escudos); e
– A majoração em 30% dos custos de eletricidade em sede de IRPC.
Igualmente, no OE2022, para o agro-negócio estão destinados 300 milhões de escudos e para a pesca semi-industrial estão disponíveis também 300 milhões de escudos, perfazendo um total de 600 milhões de escudos, tal qual anunciado, no Parlamento, pelo PM.
Também, até dezembro de 2021 havia as chamadas medidas compensatórias, aprovadas durante a pandemia, para conter a subida de preços de determinados bens essenciais, as quais foram descontinuadas a partir de janeiro de 2022, como suprarreferido. São mais ou menos essas mesmas medidas que vão ser agora retomadas para determinados bens de primeira necessidade (incluindo o gás butano).
Assim sendo, a única medida realmente “nova” e de impacto persistente no tempo tem que ver com a redução da carga fiscal sobre o leite em pó, cuja competência para aprovação é reservada ao Parlamento. Trata-se, porém, de uma medida com impacto marginal no poder de compra das famílias. As demais medidas visam, meramente, estancar o eventual aumento dos preços em vigor do milho, trigo, óleos alimentares, gás butano e do fuel para a produção de eletricidade, durante os próximos três meses, “através de compensação financeira”, tendo como base o preço médio das últimas importações pelo país. Isto é, pretende-se que não haja atualizações em alta dos preços desses produtos, a partir do próximo mês de abril e até ao mês de junho inclusive.
As medidas adotadas pelo Governo, no sentido de manutenção dos preços em vigor para determinados produtos de primeira necessidade, podem ser consideradas razoáveis, tendo em consideração, sobretudo, as dificuldades financeiras do país para fazer aumentos salariais, que acompanham a evolução da inflação. Pois, tratam-se de medidas de eventual subsidiação de preços que abrangem toda a população, mitigando, em parte, a erosão do poder de compra que venha a ocorrer a partir de 01 de abril.
No entanto, embora todos nós, independentemente do nosso nível de rendimento, estejamos a pagar mais pelos bens e serviços que consumimos, é dever ético-moral do Estado proteger, sobretudo, os consumidores mais carenciados, que são quem tem mais dificuldade em absorver esta situação e quem, também, corre sérios riscos de subnutrição grave ou mesmo de fome.
Assim, para além das medidas anunciadas pelo Governo, penso que se impõe uma outra medida de aplicação seletiva, para efeitos de reposição das perdas do poder de compra entretanto ocorridas. Refiro-me à atribuição de um apoio extraordinário para as famílias mais desfavorecidas, à semelhança do que fez o Governo português.
É imperioso, em nome da dignidade da pessoa humana e do respeito institucional pelo seu sofrimento com a carência de meios de sobrevivência básicos, que sejam adotadas as medidas de transferência definitiva de rendimentos compensatórios às famílias mais vulneráveis à inflação. São cerca de 78.000 pessoas que se estima viver, atualmente, em extrema pobreza. São cidadãos que vivem em agregados familiares com rendimentos que permitem consumos “per capita” abaixo de 136 escudos diários, no meio urbano, ou menos de 135 escudos diários, no meio rural.
Praia, 31 de março de 2022
*Doutor em Economia
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 762, de 07 de Abril de 2022