Por: Ednilson Fernandes*
Nos últimos tempos tenho travado muitas batalhas campais com os meus neurónios, até que, por fim, cheguei à conclusão de que a única forma de apaziguar esta batalha, de forma a que ninguém saia magoado ou a perder, é fazer com que a mão obedeça à mente. Usando uma caneta como um veículo sem freio e as folhas brancas como autoestradas sem fim nem obstáculos, o plano é partir para uma viagem sem eira nem beira.
Depois desde pequeno desabafo que serviu como uma breve introdução, eis a questão nua e crua:
Passaram 300 anos, mais coisa menos coisa, da abolição da escravatura. Libertou-se o corpo dos Homens negros das correntes, mas as mentes de muitos ainda continuam aprisionados. E esta prisão virtual vai-se transferindo de século em século e de geração a geração, como se de um cancro se tratasse. Quando não existe esta germinação, as instituições instrumentalizadas vão incutindo tais costumes de forma a manterem o homem negro aprisionado e alimentando o seu complexo de inferioridade, mantendo-o controlado como se de gado selvagem se trate.
Por isso, o caminho é só um, educar e formar cada vez mais de forma a libertar e desacorrentar a mente do homem negro, incutindo-lhe a convicção e o orgulho de que a sua cultura é tão rica como a do colono, que a sua cor é tão bonita como a dos outros, que o seu cabelo é um cabelo igual a todos os cabelos, sim, porque a igualdade deriva também da diferença.
Cabe-nos, a todos os africanos e afrodescendente, trabalhar para acabarmos, de uma vez por todas, com este complexo de inferioridade que existe ainda em pleno século XXI do negro em relação à sua própria cultura e ao seu próprio continente, isto, para não falar do passado e da sua história. Uma árvore desenraizada é uma árvore insegura e sem futuro.
Temos que mudar o sistema de ensino de uma vez por todas, temos que exigir a quem é de direito, a introdução da realidade africana, nos manuais escolares, de forma a proporcionar, desde a pré-primária, o estudo das grandes figuras deste grande continente, que incluem os seus grandes revolucionários, escritores, artistas, cientistas, filósofos, etc. Devemos exaltar os grandes feitos dos homens do nosso continente não na perspetiva de sermos melhores que os outros, mas para incutir nas novas gerações que somos tão capazes como os outros. Só assim conseguiremos guiar os africanos e os afrodescendentes para o êxito e acabar, de uma vez por todas, com esta falta de confiança e de autoestima que paira sobre o nosso continente; só assim, no que deve constituir uma missão prioritária dos sistemas de ensino dos países deste continente, libertaremos, em definitivo, todos os africanos das amarras do colonialismo.
Temos que sair, de uma vez por todas, da caverna, não no sentido primitivo, mas sim alegórico, aquele expresso por Platão na alegoria da caverna, o único que nos pode fazer sair para o mundo sensível e caminhar, triunfantes e esclarecidos, no mundo inteligível. Em capacidade e superação, a História já provou que ninguém nos consegue igualar. Aquilo de que precisamos é autoestima e uma alavanca de que, só com uma boa base educacional, nos conseguiremos servir para alcançar e superar o nosso grande propósito: acabar de uma vez por todas com o mito de que somos inferiores aos outros, quanto, na verdade, nunca fomos e nunca seremos. Isto, apesar de desejarem, em permanência, que acreditarmos nisso, pois essa é a forma mais efectiva de continuarem a controlar-nos e a manipular-nos, quer através de políticas desajustadas, nomeadamente aquelas relacionadas com uma educação euro-centrista, quer através de retóricas bacocas e perversas produzidas pelos média, que, manipulando factos, desinformam mais do informam. No fundo, ao longo destes mais de trezentos anos após a abolição da escravatura, a maquinaria propagandista dos regimes racistas nunca foi completamente desmantelada, o que significa que estes regimes se vão ajustando ao tempo e à época, o que faz com que tenham de ser combatidas incessantemente e sem trégua.
É preciso incutir nas nossas crianças, o brio e a curiosidade pela história de África e pela vida das suas grandes figuras.
É preciso lembrar as gerações vindouras que, apesar da pobreza social que reina em África, não é devida à falta de recursos naturais nem humanos, mas ao mau aproveitamento e a má distribuição dos recursos naturais. Se esses recursos fossem bem distribuídos, seriam suficientes para todos os africanos e para o “resto do mundo”. Quanto mais enriquecem desenfreadamente os príncipes africanos (as elites), a Europa, os Estados Unidos e a China, mais os africanos empobrecem, tudo em nome da cobiça e da corrida às matérias primas.
Hoje, a europa fala à boca cheia dos seus multimilionários, a América pavoneia-se com os seus bilionários e a China exibe os seus muitos bilionários, a maioria deles à custa da exploração dos recursos do continente negro. Por isso é que nós africanos temos que lembrar aos nossos filhos quem foi Kanku Musa (o senhor das minas de ouro), o décimo imperador do Mali, provavelmente o homem mais rico de sempre. Foi ele que, durante o seu reinado de décadas, transformou Timbuktu numa cidade deslumbrante.
Em matéria de liderança, as crianças deveriam estudar Taytu Betul, que foi casada com o imperador Menelik II e é considerada uma das maiores líderes que a Etiópia conheceu. A imperatriz foi fundamental na derrota dos imperialistas italianos e também fundou Addis Abeba, a capital da Etiópia. Isto, para que todos percebam o porquê de a Etiópia ser o único país africano que nunca foi colonizado.
Para servir de exemplo para as nossas meninas, futuras mulheres e quiçá líderes dos nossos países, que tal contar-lhes a história de quem foram as Amazonas, as temidas guerreiras do Reino do Daomé, que existiu entre os séculos XVII e XIX, no território onde é hoje o atual Benim, e que deve a sua existência, em parte, a essas guerreiras. As Amazonas formaram um exército feminino que é, ainda hoje, um símbolo de coragem e emancipação das mulheres.
Na literatura, devemos fazer o mesmo que Portugal fez com as obras dos grandes poetas e escritores, como Luis de Camões, com os Lusíadas, e Fernando Pessoa, com a generalidade da sua obra. Urge tomar as obras dos grandes autores africanos como obras de cultivo da africanidade e educar a partir das mesmas, de forma a que as crianças cresçam orgulhosos dos seus antepassados.
É obrigatório, para todas as crianças cabo-verdianas, conhecerem as obras de Amílcar Cabral, o pai da nacionalidade cabo-verdiana, conhecerem as obras dos escritores do movimento literário cabo-verdiano surgido com a revista Claridade, em 1936. Se, como dizia Cabral “as crianças são a flor da revolução”, então porque não cultivá-las e extirpar todas as ervas daninhas em seu redor, de modo a possibilitar a seu saudável crescimento.
É indispensável e elementar dar a conhecer a todos os africanos as obras e o pensamento de um dos pais, fundador e defensor da Negritude, Léopold Sédar Senghor amplamente considerado um dos maiores estadistas, poetas e intelectuais de África. Após ter estado preso, durante a II Guerra Mundial, Senghor tornou-se o primeiro Presidente do Senegal.
Frases como “A emoção é negra, tal como a razão é helénica.”, tornaram-se icónicas. Apesar das críticas, Senghor nunca negou o papel da emoção. Defendia que a emoção é a razão intuitiva em oposição à definição europeia de razão, a discursiva” ou “A civilização do universal.” O ditado emana da famosa teoria senghoriana da assimilação e da abertura, do dar e do receber. Explica a mistura do lado negro e da parte helénica que deveria conduzir ao “Novo Negro”, um homem íntegro e fecundo”, um homem intemporal sem margens para dúvidas. Léopold Senghor escreveu centenas de artigos de imprensa, poemas e contos. E foi o primeiro negro a ser eleito membro da famosa “Académie Française”.
Ele acreditava que a cultura estava no início e no fim de todas as coisas; que o desenvolvimento não era possível se não estivesse no quadro da cultura. Ou seja, se a cultura não estivesse à frente e depois de todas as coisas.
Na arte, não podemos esquecer outra figura incontornável com Ewuare I, o Rei do bronze do Benim. “Euare, o Grande”, como também é conhecido, é recordado pelos seus poderes místicos e por ter promovido como ninguém até à data, as artes e as figuras de bronze que resistiram ao teste do tempo. Oba Ewuare criou o festival de Igue, que continua a ser um dos eventos culturais mais importantes do povo do Benim, e foi também o responsável pela introdução na cultura do país das missangas de coral, que acabaram por se tornar peças fundamentais do traje cultural do país e da decoração real. Graças a Obá Ewuare, a utilização destas missangas de coral deixou de ser algo exclusivo da Cidade do Benim e foi-se difundido por várias partes do sul da Nigéria.
É preciso ir às origens para se contar a história não na perspetiva do caçador, como é contada muitas vezes pela historiografia eurocentrista, mas na perspetiva da presa Depois, é necessário contrabalançar a verdade factual com as ficções e os mitos até nos aproximarmos da quase verdade histórica. Nada melhor do que a história de Shaka Zulu, que foi muito deturpada pela cinematografia britânica, para começar.
Shaka Zulu foi pai fundador da nação zulu. Antes do seu nascimento, uma vidente chamada Sithayi disse que iria “nascer uma criança que conduziria uma nova ordem e uma nova nação”. Zulu era um génio militar em África, um construtor de nações e não um assassino sedento de sangue, como foi pintado pela historiografia inglesa. É preciso banir tais expressões como chamar a Shaka “Napoleão negro” ou “Napoleão africano”! Ele era um génio militar africano e não um Napoleão negro. Porque não dizer que Napoleão era um Shaka branco? Ele nunca esteve na Europa e nenhum europeu lhe ensinou as coisas que ele fez em termos de guerra. Eram qualidades próprias dele. É preciso acabar com estas comparações absurdas. Para se ser melhor, não é preciso ter como barómetro figuras históricas europeias. Afinal, o tempo em que viveram não era o das redes sociais e, como tal, era pouco provável que cada um tivesse conhecimento das façanhas do outro, isto, sem ponta desprezo pela grande figura que, para o bem e para o mal, foi Napoleão Bonaparte.
Não podemos esquecer e nem deixar cair do esquecimento figuras como: Cheikh Anta Diop, Patrice Lumumba, Haile Selassie, William Tubman, Bibi Titi Mohamed, Siti binti Saad, Hendrik Witbooi, Nelson Mandela, Desmond Tutu, Rainha de Sabá, Kwame Nkrumah (defensor do Pan-Africanismo), Thomas Sankara (o Che Guevara” do Burkina Faso), Margaret Ekpo, etc.,
Urge manter vivas histórias de humilhação como a de Sarah Baartman. Também conhecida como “Vénus Hotentote”, ela foi uma mulher do povo Khoikoi, da África do Sul, que esteve em exibição na Europa por conta das suas dimensões corporais. Sarah foi maltratada e obrigada a prostituir-se, acabando por morrer, sozinha, aos 25 anos de idade.
E não esquecer quem é Lucy da Etiópia, um hominídeo do sexo feminino que foi descoberto em 1974 e que remonta a mais de três milhões de anos atrás, sendo considerada, por alguns cientistas, como a “Mãe da Humanidade”.
É preciso ensinar as crianças para que aprendam a contornar os maus hábitos da história e de historiadores que teimam em ocultar factos o primeiro genocídio cometido pelos alemães. Erradamente, que muitos pensam que foi contra os judeus, quando, na verdade, foi contra o povo Namibe. Aliás, só muito recentemente, a Alemanha pediu desculpas oficiais à Namíbia pelo genocídio que deixou dezenas de milhares de Herero e Nama (1904 e 1908) mortos na era colonial. Historiadores e ativistas lutaram para que a sociedade alemã reconhecesse esta página trágica de sua história, que continuava, até então, a negar veementemente. A campanha militar alemã levou ao extermínio de homens, mulheres e crianças, resultando, ao mesmo tempo, na pilhagem das suas terras e haveres com autorização explícita das autoridades. O massacre foi precedido de uma insurreição dos dois grupos étnicos contra os colonos, que ocupavam cada vez mais terras tribais, e as práticas racistas e discriminatórias introduzidas pela potência colonial. Durante décadas, a Alemanha negou a classificação dos massacres como “genocídio”.
Apenas no ano de 2016, o Governo alemão admitiu, oficialmente, de que se tratou de um genocídio.
Podia dar mais e mais exemplos, mas, por agora, ficamos como este capítulo semi-encerrado.
Gostaria de terminar este pequeno desabafo com uma mensagem às pessoas responsáveis pelo sistema educativo dos países africanos: “Se vocês acham que a educação é cara, experimentem a ignorância” (Robert Orben).
Basta contenção nos gastos fúteis e no excesso de mordomias dos políticos africanos, para termos bases monetários suficientes para criarmos manuais escolares adequados à educação e formação das nossas crianças.
Como disse o saudoso Nelson Mandela “A educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo”.
*Jovem Ragaladu Anikulapo
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 774, de 30 de Junho de 2022