Por: Arsénio de Pina*
1.Por achar de interesse para os colegas que iniciam as suas actividades, pareceu-me curial relatar alguns retalhos da minha vida pediátrica no início da nossa independência, que atestam o interesse desta especialidade num país em vias de desenvolvimento, quando exercida por patriota empenhado, que me perdoem a imodéstia, competente, por me ter preparado para isso, sabendo que, em Cabo Verde, ao contrário de Portugal, não iria ter assistentes, professores ou serviços específicos qualificados a que recorrer.
Quando cheguei a S. Vicente com a especialidade pediátrica e de saúde pública no início de 1976, – depois de ter trabalhado como generalista polivalente em várias ilhas de Cabo Verde durante seis anos, no tempo colonial, sem nunca ter podido gozar licença disciplinar, por fazer falta ao serviço, como estipulava o B.O. -, como primeiro pediatra nacional a pisar solo cabo-verdiano, numa altura em que alguns colegas abandonavam o país, preferindo ambiente mais seguro em Portugal, de onde eu regressava, estávamos orgulhosos, eu e a minha mulher, por podermos contribuir para a aventura da independência, acompanhados de dois filhos menores. Tive um trabalhão dos diabos na preparação do pessoal, com a ajuda da minha mulher a dactilografar os textos de formação e palestras, com a avalanche de consulentes que até vinham doutras ilhas, dada a inexistência de especialidade dedicada a crianças, havendo gente que me identificava, com orgulho, como “quel dotor patrice brancon iatra”, por nunca terem ouvido falar de pediatra.
A chamada Enfermaria de Pediatria, no Hospital Velho, era uma grande sala com três filas de berços escaqueirados, uma casa de banho ao fundo com uma única sanita há largos anos entupida, alguns bacios, um do tripo chapéu alto, uma banheira encardida pelo tempo de vida e uso, ausência de água canalizada. Ao lado uma saleta onde se guardavam os processos dos doentinhos, medicamentos, os poucos equipamentos, se esterilizavam seringas e agulhas e se preparava algum leite para os doentes, porque o resto da comida eram as mães que o preparavam na enfermaria utilizando fogão Primus. Tinha uma única enfermeira (Joia da Luz) e duas serventes e as mães ou familiares permaneciam na enfermaria de dia e noite, dormindo no chão. Havia dois médicos recém-formados (um casal) chegados após a independência, tendo dispensado um e ficado com a médica que tinha alguma sensibilidade pediátrica por ser mãe.
Os medicamentos e restantes instrumentos não estavam adaptados ao tratamento de crianças e apresentei uma lista de fármacos e instrumentos ao Ministério da Saúde e Assuntos Sociais (MSAS) absolutamente indispensáveis ao exercício pediátrico, que, a pouco e pouco foram chegando, permitindo-me introduzir a reidratação venosa às crianças que, antes, se fazia por injecção subcutânea com soro fisiológico, o que provocava mortalidade elevada e medo aos pais quando se falava em administração de soro. Quando descobri que alguns acompanhantes das crianças (não mães), aumentavam o ritmo das gotas de perfusão dos soros à noite, levando à morte de crianças, por não haver enfermeira de urgência na enfermaria à noite – a única enfermeira de urgência para todo o hospital estava no Banco de Urgência e nem o médico de urgência ficava no hospital, era chamado, quando necessário – exigi mais uma enfermeira, que me foi contemplada, estabeleci horário de visita diária, enfermeira de urgência nocturna (que nada recebia por isso, como, de resto, os médicos de urgência), e somente as mães que amamentavam é que podiam ficar com os filhos internados. Claro que essas medidas não foram pacíficas, embora tenha explicado as suas razões. Alguns pais protestaram, mas não verguei; quem não quisesse respeitar as normas adoptadas, que levassem os filhos. Houve três que o fizeram, mas como o resto compreendeu as razões das medidas, havia mais segurança, benefícios para as crianças e menos óbitos, os protestos foram amainando.
Quando pedi uma agulha de bisel curto e um tubo de ensaio para fazer punção lombar a uma criança com suspeita de meningite, avisou-me a enfermeira-chefe de que as punções lombares sempre foram feitas pelo médico cirurgião, Dr. Fonseca. Expliquei-lhe que todo o médico pode e deve fazer punção lombar, e assim passou a ser com os colegas que trabalharam comigo.
A enfermeira-chefe veio-me dizer, preocupada, que o Centro de Espiritismo se tinha manifestado, dizendo que o hospital estava mal assistido. Ouvi e nada lhe disse. Quando, alguns dias depois, me veio segredar que o espírito do Dr. fulano de tal se tinha manifestado afirmando ser a Enfermaria de Pediatria que estava mal assistida, aí respondi-lhe que devia ter havido engano por esse médico ter sido altamente competente e sensato e nunca poderia a sua alma afirmar isso, por ser a primeira vez que essa enfermaria era bem assistida por ter um pediatra nacional a dirigi-la. Ela, como boa centrista, deve ter transmitido isso ao dono do Centro, porque nunca mais se meteram comigo.
Descobri que havia vacinas ofertadas pela UNICEF-OMS conservadas na Farmácia Hospitalar e passei a fazer vacinações e controlo nutricional, à tarde, no Dispensário de Puericultura, criado, noutros tempos, pela ilustre e primeira médica nacional, Dra Maria Francisca de Sousa, homenageada com o nome numa praceta, vendida, há pouco tempo, por uns patacos pela Câmara Municipal, bem como o edifício dos mais antigos da cidade, Consulado inglês, com desrespeito ignorante pelo nosso património histórico. Fui ajudado nessa missão por duas voluntárias, enfermeira Apolónia Gomes e D. Leia Brito. Como a única vacinação no tempo colonial era a antivariólica, durante um curto período, o BCG, e nas minhas palestras e programas radiofónicos fazia a apologia das vacinações, passámos a ter uma multidão de pais com os filhos nessas vacinações e controlos nutricionais com fita braquial colorida, que aproveitámos para divulgar a reidratação oral para prevenir desidratações, causas de morte por diarreias, utilizando uma experiência brasileira que utilizava o citrato de sódio, glucose e cloreto de sódio que a farmácia do hospital passou a produzir e distribuir em papeis a dissolver em meio litro de água, isso antes da existência da ORALITE e da Conferência de Alma Ata, em 1978, que adoptou a política dos Cuidados Primários de Saúde. Quando apareceu a Oralite, as mães já estavam habituadas ao uso dos sais de reidratação oral e aceitaram-na naturalmente, sabendo que o que matava nas diarreias era a desidratação que se devia prevenir ou tratar.
O amigo Dul (Adriano Brito), que chefiava a oficina de uma empresa pública, um autêntico gentleman, encarregou-se de reparar os berços desconjuntados e até construiu três segundo o modelo fornecido.
Um dos grandes problemas pediátricos de base, além das diarreias com desidratação, era a malnutrição calórico-proteica – marasmo e kwashiorkor (termo ganês) – não havendo memória, na Enfermaria de Pediatria, de cura de algum caso de kwashiorkor (malnutrição grave com edema generalizado, mudança de cor do cabelo e pele com pelagra semelhando-se a pintura antiga estalada). Os casos de marasmo eram mais frequentes, sem edema, mas a criança estava muito magra, pele e osso, o que significava que, além de calorias na alimentação, consumia alguma proteína, ao contrário do kwashiorkor em que a alimentação não contém proteína, portanto, sinal de fome total e anemia grave. Intrigante é tanto no marasmo como no kwashiorkor, a criança deixar de comer e ter falta de apetite. Em Portugal nunca tinha visto nenhum caso de kwashiorkor, o que vim a reencontrar em Cabo Verde, fazendo-me recordar os casos do Fogo na fome de 1939-42, bem documentado no último livro sobre a fome do jornalista e escritor José Vicente Lopes.
O primeiro caso, na Enfermaria de Pediatria no Hospital Velho, de kwashiorkor tinha uma anemia de 3 gr/%, além de edema generalizado e cabelo aloirado. Resolvi corrigir a anemia e a criança descompensou-se aos primeiros centímetros cúbicos de sangue, falecendo em insuficiência cardiorespiratória. Pensei tratar-se de engano no grupo sanguíneo, que não se confirmou. Andei vasculhando nos meus livros; por fim encontrei, num pequeno manual do Prof. belga de Nutrição, Vuylsteke J., com quem vim a ter longa correspondência, admirador do Prof. Guilherme Janz, que o kwashiorkor reage mal ao sangue (sem explicar porquê), mas aceita bem o plasma.
2. O segundo caso que me apareceu, com o pessoal de enfermagem a garantir que iria morrer como o outro e os anteriores, foi intubado para ser alimentado e pedi plasma ao Centro de Sangue. Informou-me o técnico (Didi) de que nunca tiveram plasma no Serviço, e lá lhe expliquei como obter plasma do sangue armazenado. Administrei plasma ao nosso doente, sem problema; repeti o plasma três vezes; após a terceira administração, urinou todo o excesso de água que tinha, ficando pele e osso, com grande pasmo do pessoal. Prosseguimos a alimentação forçada por intubação nasogástrica até que a criança sorriu, o que, para mim, foi de bom augúrio, porque nunca sorrira antes. Com certo receio administrei-lhe sangue e nada de mau aconteceu. A criança teve alta curada algum tempo depois. O pessoal passou a ter uma consideração especial por mim depois de tamanho êxito.
O caso mais espectacular de cura de um kwashiorkor foi com uma moça dos seus três anos aparentes vinda com os pais da ilha do Maio. Os pais tinham meios para alimentar bem a filha (chamada Germana) mas ela recusava-se a comer e exigia sumos de lata ou garrafa, que os pais podiam comprar para a filha, até porque na propaganda desses sumos se dizia ricos em vitaminas, julgando estar a alimentar bem a filha. Ao cabo de algum tempo, começou a perder peso, depois, a inchar e a fazer escaras nas nádegas, razão por que a trouxeram a S. Vicente, por terem ouvido falar do especialista iatra patrício. A criança estava num estado miserável: recusava-se a comer, tinha duas profundas escaras nas nádegas e edema generalizado. Anemia semelhante à doentinha anterior. Como recusava alimentos, tivemos de lhe fazer uma intubação nasogástrica para a alimentar, que ela retirava, pelo que tivemos de lhe amarrar as mãos. Administrei-lhe plasma por quatro vezes, até desaparecer o edema, continuando a intubação e o tratamento das escaras. Como protestava sempre que lhe substituíamos a intubação, entrei em acordo com ela, propondo-lhe deixar de lhe fazer a intubação se passasse a comer; aceitou, cumpriu o acordo e desatamos-lhe as mãos. Agradeceu-me com um sorriso, o que me alegrou imenso por ser bom sinal. Fez sangue sem problemas, esteve internada mais algum tempo por causa das escaras, e teve alta curada.
Alguns anos depois fui ao Maio para a instalação do centro de PMI/PF e pedi que me localizassem a Germana. Apareceu-me uma bela moça, dos seus dez anos, uma ploita, como se diz entre nós, feliz e sorridente, acompanhada dos pais. Não fazia ideia de ter estado às portas da morte anos antes.
Do Hospital Velho passámos para as instalações antes pertencentes ao Telégrafo inglês, onde funcionou, depois, a delegacia de saúde durante anos. Dispunha de dois pisos, que permitiam a separação de patologias, dois consultórios e uma larga sala de espera e de triagem dos doentes, sistema que introduzi, devido à avalanche de consulentes, depois de ter preparado uma enfermeira experiente (Tutu) para o efeito. Nas novas instalações já dispúnhamos de mais enfermeiras, chefiadas pela Luzia Rendal, que prestaram grande serviço, de um colega vindo de Santo Antão (Dr. Graça), mais tarde de uma colega vinda de Angola (Dra Antonina); com o tempo, ninguém diria não serem pediatras. Já dispúnhamos de fármacos e algum equipamento que nos permitiam exercer quase correctamente o mister de pediatra.
Mais tarde, quando fui destacado para dirigir o Projecto de PMI/PF, tivemos um “pediatra” russo a substituir-me na enfermaria, que sabia tanto de Pediatria como eu de Astronomia, cuja substituição solicitei por um pediatra sueco fornecido pelo Projecto (inicialmente, o pediatra Harrtell, a seguir, Bjorn Wenngren, que prestaram excelentes serviços), permitindo-me dedicar inteiramente à tarefa da criação da PMI/PF apoiado pelo colega Pedro do Rosário (fomos os dois os inventores da PMI/PF, que não existia em Portugal nem em África, criada pela Conferência de Alma Ata das oito componentes dos Cuidados Primários de Saúde, quando nós com a PMI/PF, antes de Alma Ata, criámos seis componentes), a eficiente enfermeira sueca encarregada da formação do pessoal de enfermagem e elaboração das fichas de recolha de dados estatísticos, Harriet Birkham, a enfermeira-parteira Tutu Évora, uma mulher de armas, vinda da luta armada, além de outras enfermeiras suecas antes de dispormos das nacionais, do competente administrador Per Tamm e da minha mulher na direcção da secretaria, que teve oportunidade de exercer o seu curso de secretariado executivo, por a pessoa indicada pelo ministro da saúde para o cargo ter declinado o convite por já ter uma promessa mais atraente.
Tínhamos recebido uma oferta de três incubadoras, ainda por utilizar. O Dr. Harrtell, na sua visita diária à maternidade para observação dos recém-nascidos, deparou-se com um feto num balde que ainda mexia, considerado inviável, por nunca ter havido incubadora no tempo colonial. Pegou nele e meteu numa incubadora posta a funcionar, introduzindo-lhe uma sonda nasogástrica para alimentação com o leite da mãe. Esta aprendeu a alimentar o filho com o leite que retirava com um aspirador próprio, de duas em duas horas, ficando internada para o efeito, com uma dedicação e amor que a todos comoveu, pois era o único filho vivo, não tendo podido levar a termo nenhuma das anteriores gravidezes. Depois do regresso do Dr. Harrtell à Suécia passei a cuidar da criança. Ao fim de alguns meses demos alta ao Artel, nome que os pais deram ao filho em homenagem ao pediatra a quem devia a existência. Hoje é um homem feito que se formou, se não me engano, no Brasil.
O Dr. Harrtell era, realmente, pediatra experiente, mas, sempre que havia riscos na actuação em casos complicados, convocava-me. Na primeira vez tratava-se de um pneumotórax compressivo (aumento progressivo de pressão na cavidade pleural) num malnutrido com pneumonia, que, não descomprimido por punção, leva à morte. Disse-lhe: é só picar, para descomprimir. Resposta: pica tu. Piquei com uma agulha grossa a que atei um dedo de luva a que fiz uma fenda na ponta que permitia sair ar, mas não entrar. Safámos, assim, a criança. Na segunda vez foi com uma criança dos seus sete anos, numa dispneia terrível, sob oxigénio permanente, cuja radiografia do tórax mostrava um coração a ocupar a quase totalidade da cavidade torácica. A sua dispneia não permitia transportá-lo para o serviço de radiologia para uma radioscopia que esclareceria o diagnóstico diferencial – miocardite ou pericardite – que têm terapêuticas diferentes. Aos gritos dizia que ia morrer, agarrada à mãe, sem conseguir descansar nem dormir. Era filho do chefe da Polícia de Segurança. Quando cheguei, convocado pelo Harrtell, todo o pessoal da enfermaria estava à volta da criança dada a gravidade da situação e por a mãe ser pessoa conhecida. Ouvindo a história da doença, e vendo a radiografia do tórax, disse ao colega: sabes, como eu, que ou é uma pericardite ou miocardite. É só picar, utilizando a técnica de Marfan. Se vier líquido purulento, é uma pericardite; se não vier nada ou sangue vivo, uma miocardite. Resposta: pica tu. Piquei, como sugeri e não saiu nada. Tornei a picar directamente sobre o coração e veio sangue vivo. Era, portanto, uma miocardite e havia que prosseguir a terapêutica, acrescentando doses elevadas de corticoide. No dia seguinte a criança estava viva e foi recuperando, até ter alta curado; encaminhado ao cardiologista com relatório este confirmou o diagnóstico e a cura sem sequelas. Ainda conservo um desenho que a criança fez para mim.
Aquando da primeira Reunião dos Trabalhadores da Saúde, em que apresentei uma proposta para a criação da PMI/PF, fui chamado a resolver um caso bicudo de icterícia numa recém-nascida de sete ou mais dias, segunda filha, vinda da Praia, filha do ministro da defesa. Comprovei que ela era Rh positiva e a mãe Rh negativa (que ela desconhecia), havendo, portanto, incompatibilidade Rh por sensibilização da mãe aquando do primeiro parto. Só que não dispúnhamos de nenhum equipamento para proceder, com segurança, à chamada exsanguinotransfusão (substituição total do sangue), nunca realizada em S. Vicente. O pediatra cubano, recentemente chegado à Praia, tinha realizado a primeira exsanguinotransfusão na capital – cujo resultado desconhecia -, também sem equipamento adequado, pelo que, pela urgência da solução do problema, não sendo possível enviar a criança a Portugal para o efeito, por já ter passado uma semana, ou mais, após o nascimento (a exsanguinotransfusão faz-se o mais cedo possível, 2 a 3 dias após o nascimento), aventurei-me a fazer a exsanguinotransfusão à agulha e seringa através da veia jugular, em vez da veia umbilical com utilização de sonda ou cateter, como passei a fazer ao dispor do material adequado para o efeito, em cerca de quarenta minutos, quando nesta levei quatro horas e meia. No dia seguinte os valores da bilirrubina estavam normais, e a criança salva da morte ou de vir a contrair paralisia cerebral ou outras lesões neurológicas graves.
Os pais levaram, depois, a filha a Lisboa à consulta de controlo do Professor Nuno Cordeiro Ferreira, que nada encontrou de anormal na criança, não querendo acreditar que tivesse sido possível executar exsanguíno em Cabo Verde. Confirmaram-lhe que tinha sido feita, sem material adequado, e o professor, ao ouvir o meu nome, rejubilou dizendo-lhes que eu tinha feito a especialidade no seu serviço no Hospital de D. Estefânia. Tive o prazer de receber um postal do professor felicitando-me pela proeza.
Houve um surto de sarampo quando passámos para as novas instalações no ex-Telégrafo, que nos preocupou devido a complicações pulmonares e oculares (conjuntivites terríveis, queratites) que nunca vira em Portugal. Como sabia que as infecções altamente febris – o sarampo é uma delas – acarretam grande consumo de vitamina A, deduzi que o mau estado nutricional das nossas crianças complicava ainda mais a situação, o que me levou a estabelecer, por norma, injecção de alta dose de Vit. A aos internados com sarampo, decisão que levou ao desaparecimento das reacções aparatosas pulmonares e oculares e rápida recuperação dos doentes.
3. Destacado para a direcção do Projecto de PMI/PF, em Agosto de 1977, sabendo, por experiência vivida anteriormente em várias ilhas, que o problema de base da patologia infantil nas nossas bandas era a malnutrição calórico-proteica, procurei valorizar a componente nutricional, solicitando à Rädda Barnen (ONG sueca financiadora do Projecto) uma técnica nutricionista, a qual muito nos ajudou pela sua experiência (BIrguitta Svenson) na preparação do pessoal, a ensaiar misturas de cereais, a converter o leite magro fornecido pelo Programa Alimentar Mundial (PAM) em leite meio gordo com adição de óleos vegetais, a reduzir peixes pequenos a pó utilizando secadeiras ao sol, cuja desidratação completávamos em frigideira, reduzidas a pó no pilão, que tinham 60,9 % de proteínas, ferro, cálcio e fósforo, que adicionávamos a farinhas, utilizadas na recuperação de crianças malnutridas. Contactei os professores de nutrição Guilherme Janz (que fora meu professor no curso de Medicina Tropical e fazia o controlo nutricional da população cabo-verdiana) e Ingve Hoffvander (professor de nutrição em Uppsala), enviando-lhes produtos cujas composições não encontrava na Tabela de Composição de Alimentos da FAO para análise, cujos resultados podem ser encontrados no meu livro “Coisas do Djunga!” e nos ANAIS da AECCOM, volume 1, número 2. Foi com base nessas investigações que criámos o nosso chamado “Leite de Peixe”, inspirados na experiência do Hospital Pediátrico de Coimbra “Lete de Frango”, e uma mistura de farinhas de cereais e leguminosas – MICAF – que nos permitiram tratar malnutrições graves, falsas diarreias em malnutridos e alimentar crianças na Enfermaria de Pediatria.
Nas minhas pesquisas nutricionais descobri a INCAP da Guatemala, que produzia uma mistura de cereais e leguminosas, a qual me levou a produzir a nossa MICAF (mistura de Milho, Cabecilha e Feijão Congo ou feijão figueira), que teve financiamento do PNUD para ser produzida na fábrica de massa alimentícia FAMA, produção que se gorou por ter havido mudança de regime político que enveredou pelo neoliberalismo e privatização das empresas públicas, levando a que a FAMA 2, criada para a produção da MICAF, se ter desviado do seu objectivo passando a produzir café moído e camoca, visto não ter havido ninguém com poder e competência a defender a MICAF. Ainda tentei reabilitar a ideia da MICAF, no meu regresso ao país, provocando a vinda do chefe do Serviço de Nutrição da OMS Regional, que se reuniu connosco no MSAS e me deu razão, aconselhando-me a procurar uma ONG por ter ficado convencido de que a FAMA não voltaria atrás. A Organização Nacional da Diáspora Solidária (ONDS) esteve interessada nisso, mas, infelizmente, não conseguiu financiamento para o efeito. Soube, mais tarde, que o técnico francês responsável pela industrialização da MICAF na FAMA conseguiu produzi-la em dois países africanos francófonos, certamente, com outro nome.
Uma descoberta interessante foi a recuperação rápida dos casos de marasmo. Intrigava-nos o facto de as vítimas de marasmo terem pouco apetite (anorexia) e, não obstante as nossas tentativas com alimentação reforçada, as crianças progrediam muito lentamente, sem grande apetite. Li algures que a correcção da anemia ajudava a melhorar o apetite. Passámos a dar ferro em xarope, mas ficávamos sempre na dúvida se os pais respeitavam a administração do xarope, dado que os progressos eram minguados. Na dúvida decidi passar a administrar ferro por via intramuscular, calculando, através do gráfico “taxa de hemoglobina/peso”, as necessidades em ferro, em dose nunca superior a 50 mg em cada injecção profunda. O resultado foi impressionante: rapidamente a criança aumentava o apetite e começava a ganhar peso.
Sobrecarregado com nova função – director clínico hospitalar – produzi dois documentos aquando do regresso dos bolseiros formados na ex-União Soviética – “ECG à vol d´oiseau”, revisto pelo cardiologista Dr. Dario Dantas dos Reis, e “Tratamento dos casos mais frequentes do Banco de Urgência” – que desapareceram de circulação ao cabo de pouco tempo, muito provavelmente guardados por colegas, quando poderiam ter feito cópias deles, além da organização de uma série de palestras semanais sobre temas de interesse para os mesmos colegas, e uma investigação sobre “As areias vulcânicas do Tarrafal de S. Nicolau e seu aproveitamento na crenoterapia”, enviado ao MSAS, que nem acusou a sua recepção, bem como um outro trabalho sobre as actividades de um João Semana Insular ao ministro da saúde e a sua tradução em francês ao representante da OMS, que nem acusaram a recepção dos trabalhos. Recentemente publicá-los na revista da Ordem dos Médicos.
A primeira administração intraóssea de sangue na tíbia num gémeo a que as mais habilidosas enfermeiras não conseguiam canalizar uma veia e colheita de sangue através do seio venoso da fontanela posterior foram feitas por mim, perante o pasmo do pessoal da enfermaria.
Quando fui convidado a integrar o quadro da OMS, em 1985, apresentei uma exposição ao MSAS sugerindo a minha substituição pela Dra Alice Dupret cujas qualidades, competência e motivação conhecia, que, aquando da integração total no orçamento do MSAS, mantivessem os subsídios às enfermeiras, equivalentes ao que aufeririam se fizessem velas (urgências), dado que o nosso pessoal era limitado e, se passassem a fazer velas, não podendo ser substituídas, isso afectaria gravemente o serviço. A Dra Dupret permaneceu pouco tempo na direcção, por motivos que desconheço, as enfermeiras ficaram sem subsídios, passando a fazer velas, perturbando, como previsto, o normal funcionamento do serviço pelas suas ausências. Como se criou um departamento de Nutrição no MSAS, extinguiram-se os sectores de nutrição das PMI, o qual fornecia anualmente a situação nutricional das crianças das ilhas, sem necessidade de inquéritos que custam muito dinheiro. A PMI/PF passou a ser dirigida a partir do Serviço de Medicina Preventiva do MSAS que, sem ter entendido a ficha infantil, modificou-a, substituindo o gráfico peso/estatura por peso/idade, quando até as ajudantes de nutrição já sabiam utilizá-la – chamávamo-lo gráfico “tira-teimas” – por destrinçar crianças pequenas, magras ou em fase de recuperação da malnutrição dos malnutridos moderados do primeiro gráfico da ficha da OMS Peso/idade, decisão minha felicitada pelo Professor de Pediatria H. Carmona da Mota quando nos visitou.
No meu regresso da OMS, em 1997, retomei a direcção do Serviço de Pediatria, instalado no novo hospital, que já tinha a maioria das condições para o exercício de actividades pediátricas. Como aí trabalhavam colegas de várias nacionalidades (cubanos, egípcio, russa e nacionais), reentroduzi o sistema de triagem na urgência, e propus normas de serviço e protocolos terapêuticos para disciplinar a procura do serviço de urgência, a terapêutica, os pedidos de análises e outros exames, os quais foram discutidos e aprovados pelos colegas, cujo cumprimento controlava diariamente. Infelizmente, depois da minha aposentação, deixaram de os respeitar, o que redundou numa degradação da qualidade do serviço., obrigando os pais a recorrer aos consultórios privados.
Na mesma altura fiz uma exposição crítica à Direcção Geral de Saúde (DGS) sobre as alterações introduzidas na ficha infantil, tendo a Directora Geral concordado com ela e prometido corrigir o erro na próxima edição da ficha, o que não aconteceu por ter partido para o exterior para especialização. Reenviei a mesma exposição à nova Directora Geral por a julgar mais sensível e compreensiva às minhas críticas, por ser pediatra, e nem resposta obtive. Vá lá a gente entender as distorções do bom senso e da comunicação civilizada de algumas pessoas promovidas a funções de topo que se tornam arrogantes e intratáveis como os dirigentes de partido único …
Parede, Maio de 2022
*Pediatra e sócio honorário da Adeco
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 774, de 30 de Junho de 2022