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Os processos urbanos em Cabo Verde e a emergência de novas epistemologias da cidade

Por: Redy Wilson Lima

No mês de janeiro de 2023 a cidade do Porto, em Portugal, recebe a III Conferência sobre o Ativismo em África e com base na experiência piloto de reabilitação urbana de um bairro mindelense, na ilha de São Vicente, propomos no evento um espaço de diálogo entre a academia, a arte e o ativismo. A Iniciativa Outros Bairros – IOB nasce de uma pesquisa-ação centrada no bairro de Alto Bomba na primeira metade dos anos de 2010 que, ao ser adotado pelo Governo de Cabo Verde em 2019, no âmbito do PRRA, inaugura uma nova abordagem de intervenção pública no país. A sua originalidade deve-se ao fato da sua implementação não seguir nenhum plano a priori, sendo este produzido posteriormente e de forma colaborativa com os moradores, após a imersão na vida quotidiana do bairro.

Alto Bomba, tal como vários outros bairros situados nos arredores das principais cidades do país, nasce do transbordamento de um dos locais mais antigos do Mindelo e embora localizado, em termos espaciais, próximo do centro da cidade, encontra-se socialmente e simbolicamente ligeiramente afastado da urbe. Sendo assim, o principal objetivo da IOB foi buscar formas da sua integração na malha urbana – com suas diferenças, criando condições para que se efetivasse uma circulação urbana mais inclusiva. As obras realizadas, mas sobretudo os programas paralelos desenvolvidos, com destaque para os programas Kubaka, Dsinrascá e Amdjer na Obra, mostraram que novas formas de pensar a cidade é possível em Cabo Verde e com base nesta inovação metodológica a IOB foi premiada em maio último como Obra do Ano pelo site internacional de arquitetura ArchDaily e encontra-se entre os vinte finalistas do prémio Aga Khan de arquitetura, um dos mais prestigiados do mundo no reconhecimento de exemplos de excelência arquitetónica, cujo resultado final se conhece em outono deste ano.

Ainda assim, a população do bairro, sobretudo aquela diretamente envolvida no processo de intervenção, continua a viver momentos de incertezas e frustrações e não obstante o discurso governamental de retoma das obras, o que lhes falta entender é que mesmo que tal aconteça, o segredo da IOB está na sua abordagem e não nas obras em si. Pode-se abrir gabinetes de apoio nos bairros, contratar gentes das ciências sociais e afins, mas o sucesso das intervenções em Alto Bomba está na sua capacidade de compreender os processos urbanos. Algo que a maioria dos técnicos urbanos e sociais cabo-verdianos não estão preparados, não por incapacidade técnica, mas pelo défice de consciência sociopolítica, bem como pela incapacidade em mergulhar na vida comunitária sem usar “saltos altos” e sem o olhar eurocêntrico reproduzido das escolas clássicas da arquitetura, urbanismo e sociologia.

Sem esse exercício epistemológico fica bastante difícil perceber que tal como nos lembra Bem Wilson, as cidades africanas têm muito a ganhar quando os assentamentos considerados informais deixarem de ser vistos como problemas, mas como reservatórios de talento e engenho. De igual modo, que o urbanismo “faça-você-mesmo” que mantêm o funcionamento das urbes africanas nos tem mostrado que os seres humanos são eficazes a construir cidades a partir do solo nu: o que parece um caos é muitas vezes auto-organização de uma forma intrincada e invisível, na medida em que o setor dito informal avança para a lacuna deixada pelo Estado.

Isto para dizer que o acelerado processo de urbanização em Cabo Verde iniciado no período tardo-colonial e intensificado no período pós-colonial, sobretudo com a implementação dos programas de ajustamento estrutural nos anos de 1990, deveu-se mais à fuga das condições miseráveis das áreas rurais desencadeada pela inexistência de políticas públicas assertivas e de uma espécie de retorno de uma ordem colonial morgadia de que uma suposta capacidade de atração urbana. Esta situação, provocada pelo recuo do Estado, reforçou ainda mais a geografia de pobreza urbana, que se foi consolidando em resultado da reprodução de um desenvolvimento urbano desigual, tornando vivível no contexto urbano contradições sociais semelhantes às verificadas no mundo rural pré-independência.

A resolução deste desequilíbrio urbanístico entra no vocabulário político urbano africano (e cabo-verdiano) e foi-se sustentando a partir do discurso de transformação da paisagem urbana em cidades promotores-empreendedores, norteadas pela aplicação e gestão dos seus recursos estratégicos em projetos que garantam eficiência e sustentabilidade socioeconómica. A possível retoma da lacuna deixada pela IOB, agora num novo formato (Programa de Regeneração do Habitat – financiado pelo Banco Mundial), enquadra-se nesta lógica urbanística neoliberal, espelhada em visões futuristas de transformação das partes centrais e emblemáticas da cidade, bem como das partes do território com potencialidade turísticas, numa grande montra urbanística global. Ou seja, naquilo que autores como Jean-Fabien Steck denominaram de síndrome de Dubai e Ben Wilson chamou de “Xangai” africana.

A IOB, por seu lado, inscreve-se numa outra abordagem de intervenção urbana, ligada a correntes científicas que promovem o engajamento académico nos processos colaborativos de transformação urbana que, na linha de Ananya Roy, olha a urbanização como um modo em vez de um modelo. Isto é, como algo orgânico e coletivamente dinâmica, oposta à visão modernista pré-estabelecida e pré-definida, tal como é hoje defendida pelo Ministério das Infraestruturas, Ordenamento do Território e Habitação. Trata-se, portanto, de uma visão que toma simultaneamente as cidades como territórios em resistência, em potência e de emancipação, enquadradas numa linha de pensamento de descolonização do território defendida por autores como Raquel Rolnik, Raúl Zibechi e Jean-Marc Ela, em que juntamente com a população local se constrói novas epistemologias de intervenção urbana e territorial.

Em jeito de conclusão diria que a não compreensão destas diferenças estruturantes poderá fazer com que as possíveis soluções se transformem em novos problemas, precisamente por se ignorar o fato de que em muitos contextos e em algumas situações o que pode ser considerado como um problema representa na verdade uma potencial solução. Portanto, apesar do discurso político que coloca ênfase na promoção de um urbanismo de coesão social com foco nas pessoas, em Cabo Verde continua a se produzir um urbanismo McDonald’s na lógica daquilo que Alexssandro Robalo denominou de propaganda desenvolvimentista, que não sendo nova, ganha hoje novos contornos ideológicos e no processo, produz novas desigualdades. Numa entrevista realizada por mim no Sal no ano de 2019, uma técnica social da Câmara Municipal descreveu esta realidade a partir do que chamou de “túnel da desigualdade”: “imagina a psicologia de uma mulher residente no bairro de Alto Santa Cruz que apanha um hiace em Espargos e cerca de vinte minutos depois está na Avenida dos Hotéis para ir limpar uma casa de banho que não tem e maior do que a casa dela”.    

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 773, de 23 de Junho de 2022

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