Por: Alexssandro Robalo
Na sequência da sua apresentação, discussão e aprovação, na Assembleia Nacional, a lei que propõe criar a tão propalada Zona Econômica Especial da Ilha do Maio (Z.E.E.I.M) foi promulgada pelo Presidente da República e, por conseguinte, publicada no Boletim Oficial. Logo em seguida, esta matéria tornou-se manchete em diferentes órgãos de comunicação social, a nível nacional e até internacional.
No contexto nacional, alguns dirigentes políticos celebraram este feito, acreditando que a ilha do Maio passaria, finalmente, para uma nova etapa, mormente no domínio econômico. Aliás, parece-me que se trata de algo que muitas gerações de maienses vinham esperando. “Finalmente chegou o momento histórico!”
Entre as diferentes razões para tamanha alegria, ocupa um espaço central o fato de, com a referida lei, o mega-projeto “Little África Maio” (L.A.M) passará a estar mais perto da concretização. Isso porque, segundo o próprio Ministro das Finanças, Olavo Correia, o investidor Enrique Banuelos de Castro, sócio-gerente da empresa International Holding Cabo Verde (I.H.C.V), seria necessária a aprovação de tal lei para que o projeto pudesse avançar.
No entanto, contrariando um bocado esse clima de euforia e “festejo”, esperando que não esteja a cometer qualquer ato de heresia, proponho com este texto trazer algumas questões merecedoras, no meu olhar, de uma análise atenta e crítica, indo para lá da reprodução das narrativas hegemônicas. Ainda, parece-me bastante importante falar sobre uma matéria que, para muita gente, é já consensual e, logo, tornando-se desnecessário qualquer debate público. Interpreto esse “consenso” como fruto da combinação da propaganda política (dos governos central e local) e a sua consequente massificação pelos órgãos de comunicação social (sobretudo os públicos).
A principal questão que gostaria de abordar prende-se com a tão usada noção de “desenvolvimento”. Palavra essa que ganhou um cunho quase sagrado no nosso meio, tornando-se uma expressão que dispensa qualquer tipo de explicitação e/ou conceitualização. O seu uso tornou-se obrigatório para todos aqueles que pretendam falar do futuro, mas sobretudo quando se quer ganhar a atenção dos seus interlocutores.
Na maior parte das situações, todavia, o que se nota é um uso abusivo, superficial e generalista, não permitindo que se entenda o seu real sentido e o conteúdo concreto. Um caso interessante neste domínio é o projeto L.A.M, que se tornou o símbolo supremo do futuro desenvolvimento da ilha do Maio. Com o surgimento do projeto e a possibilidade da sua implementação aumentou-se o uso simplista do termo “desenvolvimento”. Inclusive, alguns setores da dita “sociedade civil”, desprovida de um senso crítico, passou a servir como espécie de “caixa de ressonância” dos governos central e local, reproduzindo essa mesma retórica.
Ao lado dos locais, é de se notar o papel dos dirigentes do poder central neste domínio. A sua regular presença na ilha, regra geral nos finais de semana (coincidência?), vem contribuindo, sobremaneira, para a propagação dessa ideia, segundo a qual “esse é o momento da ilha do Maio”.
É preciso questionar os fundamentos dessa mudança de abordagem com relação ao Maio, que, há bem pouco tempo, não era apresentado nesses termos. Se for visto atentamente, percebe-se que no novo contexto, pós-pandêmico, Maio passou a ocupar, no plano discursivo, aquilo que até “anteontem” foi o espaço reservado exclusivamente às ilhas do Sal e da Boavista. Ou seja, “produziu-se” a mais nova “galinha dos ovos de ouro” para a economia cabo-verdiana. Dizendo de outra maneira, trata-se da mais nova fronteira insular berdiana a ser explorada, mormente no domínio turístico! Daí, “todos os caminhos vão dar à ilha do Maio”!
Já agora, falando do Sal e da Boavista, parece-me que as duras lições surgidas no início da pandemia em Cabo Verde não vêm merecendo a devida atenção por parte daqueles que estão ansiosos pela retomada do turismo, inclusive pensando no Maio. Foi notória, entretanto, a falta das condições básicas em muitos bairros das tais “ilhas turísticas”, acentuando, assim, o impacto social e econômico da pandemia, ainda mais no momento em que se impôs a quarentena generalizada. Prova disso é a reconfiguração demográfica em algumas ilhas, consequência direta dos efeitos nefastos da Covid-19, mas, também, exemplo concreto da perversidade do modelo de turismo adotado até então. Ademais, ficou patente a profunda fragmentação daquelas duas ilhas, tirando o “véu” sobre a realidade até então camuflada: a existência de uma linha divisória (apartheid disfarçado?) entre os hotéis de luxo e a miséria/degradação humana nas “barracas”.
Voltemos à ilha do Maio! O perigo do “consenso” vigente acerca do “desenvolvimento” da ilha, estribado em muitos “mitos” politicamente construídos, é que um debate aberto e sincero acerca das reais condições da mesma continua a ser adiado. Pensando na sua situação atual, gostaria de apresentar apenas um exemplo, vejo-o como bastante simbólico, da forma como ainda as condições básicas continuam a faltar em Maio.
A situação de água na ilha vem sendo catastrófica, tendo chegado ao extremo nos últimos meses. A vida da população vai se deteriorando, por causa da falta de água, afetando profundamente o cotidiano das comunidades locais. Mesmo assim, o assunto não tem merecido uma verdadeira comoção por parte do poder público, mormente dos “campeões” do discurso desenvolvimentista.
Todavia, o problema da água não é, de modo algum, uma questão isolada. Ele é parte de uma situação mais abrangente, de um lugar que foi sendo posto de lado ao longo dos tempos… Aliás, é o próprio Presidente da Câmara Municipal do Maio que, numa entrevista para a rádio nacional (RCV), reconheceu que a situação da ilha deve-se essencialmente a decisões políticas tomadas ao longo do tempo… Mais do que qualquer ponto, a sua afirmação evidencia a profundidade da situação deste município.
Ademais, entendo que o rumo que se vem propondo para a ilha implica uma ruptura radical com um outro elemento importante. A cultura política instalada, gerando um clima de medo e autocensura generalizada, é incompatível com uma verdadeira transformação social. Essa espécie de microfascismo, internalizado e reproduzido pela população, anulando as possibilidades de se edificar uma massa crítica e proativa, constitui um obstáculo tremendo para o futuro que se quer desenhar.
Para finalizar, penso que ainda é tempo de se repensar algumas coisas. Entre elas, a principal é precisamente a ideia de desenvolvimento. É preciso, sobretudo, questionar! Questionar tudo! Acima de tudo, é urgente analisar criticamente aquilo que vem sendo apresentado enquanto elementos-chave para o “desenvolvimento” de Djarmai. É essencial perguntar ao serviço de quem estará esse tal “desenvolvimento”.
É preciso lembrar que “nem tudo que brilha é ouro”, como dizia o Amílcar Cabral!
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 772, de 16 de Junho de 2022