Por: Luís Kandjimbo*
O tópico de conversa continua a ser a literatura. Desta vez, é um escritor judeu russo da Ucrânia. Chama-se Isaak Babel (1894-1940). Perante os dramas vividos pelos escritores ucranianos e russos nos tempos da União Soviética, espero que os funestos sinais da guerra, sempre acompanhados por limpezas étnicas e censuras impiedosas, não liquidem as bases da liberdade criativa e literária, inspirando progroms e vagas que venham devastar a «república mundial das letras».
Este é o quarto e último texto semanal desta coluna que dedico aos fundamentos culturais e civilizacionais da inevitável coexistência entre a Rússia e a Ucrânia, com especial atenção dirigida aos pensadores e escritores destes dois países eslavos. Uma avaliação do significado que tem o conhecimento da história da literatura da Rússia e da Ucrânia, seus escritores, biografias e respectivas obras, requer o domínio das referências de carácter historiográfico. Por isso, faço alusão aos efeitos do célebre discurso secreto de Nikita Krushchev, Secretário-Geral do Partido Comunista da União Soviética no XX Congresso (erradamente grafado como XXII, no texto anterior) e ao ensaio «Arquipélago do Gulag» de Alexandre Soljenitsine que não é um romance como foi igualmente referido, em texto anterior.
Na proposta de conversa de hoje, o tópico continua a ser a literatura. Desta vez é um escritor judeu russo da Ucrâna. Chama-se Isaak Babel (1894–1940). Cheguei à sua obra através da leitura de um artigo publicado na revista «Cahiers du Monde Russe et Soviétique», publicada a partir de 1959 pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris. Seguiram-se os seus contos. Anos mais tarde li o livro de Vitali Chentalinski (1939-2018), «A Palavra Ressuscitada.Nos Arquivos Literários do KGB», publicado em 1996, na sua tradução em português. Trata-se de um livro que resultou da investigação sobre o silenciamento e a eliminação física de escritoras e escritores na União Soviética, no contexto da liberalização política desencadeada por Mihkail Gorbatchov, na década de 90.Essas foram algumas das fontes de informação para o meu especial interesse por este escritor judeu russo.
De Odessa a São Petersburgo
Isaak Babel nasceu em 1894, em Odessa, cidade portuária do Mar Negro. Nessa época, o Império Russo era governado pelo Czar Nicolau II que se notabilizou pelo seu anti-semitismo. Os contos de Babel ilustram-no pelas referências aos progroms, isto é, acções abertas e oficiais de violência étnica contra as comunidades de judeus, bem como à sua marginalidade vivida no bairro da Moldavanka.
Após os estudos primários, em 1905 começou a frequentar a Escola Comercial de Odessa, uma instituição a que tinham acesso os filhos de comerciantes judeus.Fracassada a tentativa de matrícula na Universidade de Odessa, devido à reduzida quota destinada aos judeus, em 1911 matriculou-se no Instituto de Finanças e Estudos Empresariais de Kiev. Aí conheceu a sua futura esposa, Evgenia Borissovna Gronfein.
Quando em 1916, fixou residência em Petrogrado, hoje novamente designada São Petersburgo, tornou-se protegido do famoso escritor comunista Maximo Gorky, seu mentor literário. Da experiência militar no Exército Vermelho, durante a I Guerra Mundial, veio a inspiração para narrar histórias e escrever os contos do livro «Cavalaria Vermelha».
Na sua vida privada, Isaak Babel foi bígamo. Teve duas esposas, Evgenia Borissovna Babel, mãe da sua filha, Nathalie Babel, que vivia em França e Antonina Nikolaevna Pirozhkova, mãe da sua filha Lidia Babel, com a qual vivia em Moscovo.
Nos arquivos literários do KGB
Desde 1928, Isaak Babel realizava assíduas viagens aos países da Europa, nomeadamente à França, onde vivia a esposa casada e a filha. No seu regresso a Moscovo em 1934, dirigiu críticas à governação de Estáline, durante o Primeiro Congresso de Escritores Soviéticos, tendo sido proibido de integrar a delegação soviética ao Congresso Internacional Antifascista de Escritores pela Defesa da Cultura e da Paz, que teria lugar em Paris. Foi a intervenção dos escritores franceses André Gide e André Malraux, seu amigo pessoal, que demoveu as autoridades soviéticas. Inicialmente excluídos, Isaak Babel e Boris Pasternak acabaram por estar presentes no referido evento.
Em 1939, foi detido na sua «dacha», casa de campo integrada no complexo residencial de Peredelkino, onde alguns escritores mais prestigiados passavam temporadas, dedicando-se exclusivamente à escrita. As buscas e apreensões tiveram como resultado o confisco de manuscritos, cadernos de notas, cartas e originais de novos livros. Conduzido à prisão da Lubyanka, sede do KGB, situada em Moscovo, foi acusado de espionagem e condenado à morte, após o interrogatório que o obrigou a falsas confissões. O martírio de Isaak Babel no «Arquipélago do Gulag», o sistema de repressão da antiga União Soviética, era então acompanhado, à distância, por Antonina Nikolaevna Pirozhkova, a esposa com a qual vivia em Moscovo. Isaak Babel foi fuzilado em 1940, aos 47 anos de idade.
A morte de Isaak Babel está associada às purgas sobre intelectuais, escritoras e escritores indesejáveis que caiam nas malhas persecutórias do KGB, a polícia secreta soviética. A reabilitação do seu nome e do seu lugar na história da literatura russa dá-se em 1956, quinze anos após sua morte. Era uma consequência do chamado degelo de Krushchev, iniciado após o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética e a ascensão de Nikita Krushchev ao cargo Secretário-Geral, a que se seguiram as críticas contra o regime ditatorial de Estáline, a chamada desestalinização. Das acções de reabilitação das vítimas do KGB, resultou a publicação do seu primeiro volume de contos em 1957. Seguiram-se traduções em diferentes línguas, incluindo o português.
A obra literária e a biografia de Isaak Babel, especialmente a síntese das peripécias da sua desumana condição de vítima nos interrogatórios do KGB, tal como se lê no livro de Vitali Chentalinski, membro da União dos Escritores Russos, permitem concluir que, enquanto escritor judeu, russo e ucraniano, ocupa inequivocamente um lugar no cânone literário russo, apesar da sua morte prematura e dos efeitos de uma reabilitação que tardou restituir-lhe a devida importância.
Isaak Babel no cânone literário russo
Isaak Babel não integra a lista do controverso cânone literário ocidental de Harold Bloom, embora faça parte da colecção «Bloom’s Major Short Story Writers» [Os Melhores Contistas seleccionados por Bloom], tal como Nikolai Gogol. Em todo o caso, a inclusão do contista de Odessa Babel cairia inevitavelmente nas escolhas de Harold Bloom. O crítico literário da Universidade Yale e Isaak Babel têm, ambos, identidades judaicas, além da tendencial empatia cultivada por Harold Bloom, sempre que se tratatou de autores judeus. Ao avaliar a obra de Isaak Babel, Harold Bloom adopta uma classificação assente em seleccção eliminatória. Selecciona cinco narrativas com titulos traduzidos para inglês que considera serem os melhores contos escritos por Babel, nomeadamente, «The Story of My Dovecot» [A História do meu Pombal], «First Love» [Primeiro Amor], «In the Basement» [No Porão], «Awakening» [Despertar], «Guy de Maupassant», «Di Grasso». Do ponto de vista estético, em meu entender, semelhante processo de avaliação não parece ser suficiente para uma aprofundada valorização da obra de Isaak Babel. É um procedimento que reduz as virtualidades de uma interpretação literária atenta aos traços que distinguem a prosa ficcional do contista de Odessa.
Na obra de Isaak Babel, a tematização da identidade ucraniana e judaica é especialmente importante para compreender o discurso narrativo e os temas literários que sustentaram a sua curta carreira de escritor. Ao acaso de ter nascido na Ucrânia, acresce o facto de ser judeu. Os seus contos da Odessa natal caracterizam um discurso que veicula o comportamento de personagens que povoam uma periferia urbana russa e ucraniana. Russa porque desenvolvem-se em narrativas dominadas pelo contexto imperial russo. Ucraniana porque as referidas narrativas permitem identificar a transversalidade e coexistência de uma história de cossacos e judeus. Por essa razão As reedições da obra de Babel e a correspondente fortuna crítica cresce lentamente.
Nas três últimas décadas, tem vindo a registar-se igualmente um crescente interesse pela obra de Isaak Babel. Entre tantos outros, destaco, por exemplo, os prefácios de sua filha Nathalie Babel e o livro da professora de Literatura Russa e Comparada na Universidade da Califórnia, San Diego, a norte-americana Amelia M. Glaser, «Jews and Ukrainians in Russia’s Literary Borderlands: From the Shtetl Fair to the Petersburg Bookshop» [Judeus e Ucranianos nas Fronteiras Literárias da Rússia: Da Feira de Shtetl à Livraria de São Petersburgo]. Amelia M. Glaser reitera a ideia segundo a qual o estudo das literaturas nacionais e de literaturas coexistentes, a ucraniana e a russa, permite responder às perguntas que dizem respeito ao que elas podem ensinar sobre as relações interculturais, tanto historicamente, quanto na cultura transnacional do século XXI.
Portanto, o retrato literário da personalidade de Isaak Bebel não deixa dúvidas acerca da sua condição de judeu, ucraniano e russo que conhecia a cultura judaica e falava as línguas, russo, yiddiche e o hebraico. Assim, Isaac Babel ocupa um lugar na galeria de outros escritores judeus, tais como Mikhail Bulgákov (1891-1940), Ossip Mandelshtam (1891-1938) e Vasily Grossman (1905-1964), perseguidos e censurados com passagem pelas masmorras da prisão da Lubyanka.
*Ensaísta e professor universitário.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 760, de 24 de Março de 2022