Por: Basílio Mosso Ramos
Fontona encontra-se localizada na costa oeste da Ilha do Sal, entre Joaquim Petinha (Juquintinha) e Palmeira, a cerca de 3 quilómetros dessa última localidade, integrado por duas propriedades rústicas, situadas nos leitos de duas ribeiras paralelas, não muito distantes uma da outra e que, quando chove, correm na direcção da pequena baía que leva o mesmo nome. Trata-se (ou melhor, tratou-se durante muito tempo) de um sítio que se distinguiu pelas suas árvores, vegetação de menor porte e todo um ambiente acolhedor, que o tornavam muito aprazível, numa ilha cuja imagem de marca era a aridez e a escassez de água.
Várias fontes convergem em como se possa estar perante uma das mais antigas intervenções do homem na Ilha Sal, no domínio da agricultura. Com efeito, desde o navegador inglês George Roberts, que esteve fundeado na baía da Palmeira em 1720 e 1722, passando por Joaquim Vieira Botelho da Costa, primeiro Administrador do Concelho (1855-1866), até Custódio Costa, delegado de saúde por volta de 1867, todos referem-se a Fontona como uma espécie de oásis com coqueiros e palmeiras, que por certo não terão despontado e prosperado sem mão amiga, de mais a mais num local que parece ter sido escolhido para o efeito.
Com água a escassos metros de profundidade, Fontona oferecia excelentes condições para o desenvolvimento e a subsistência duradoura de árvores de diversas espécies, como coqueiros, tamareiras, tamarindos, amendoeiras. Com as chuvas, mais regulares no passado, produzia-se no sequeiro melancias, melões, abóboras, feijões, batata-doce, etc. Fazia-se também regadio, sendo de se destacar, neste particular, produtos como couves, cebola, tomate, cenoura, malagueta, sem falar nos chás, com belgate, palha- teixeira e outros mais.
Para os parâmetros da ilha, pode dizer-se que Fontona era uma unidade agro-pecuária, da qual se extraiam várias e significativas vantagens, nomeadamente, lenha, ramos de coqueiros para a cobertura de casas, flores para a ornamentação da igreja, sobretudo em ocasiões especiais, madeira para caibros e reparação de botes, bem como recursos de origem animal como leite e seus derivados, sem falar de cabritos, galinhas, patos, etc., etc.. Os seus cocos, com água à farta, as tâmaras, amêndoas, tamarindo, eram muito apreciados, particularmente pela criançada.
A par dessa dimensão produtiva e abastecedora do mercado, ainda que à sua medida, Fontona se distinguia acima de tudo como espaço de lazer, particularmente para a gente da zona norte da ilha, pois as sombras das suas frondosas árvores, assim como a praia e o mar tranquilo, ali mesmo ao lado, constituíam um forte atractivo para a realização de convívios. Eram famosos os pic-nics organizados por famílias ou grupos de amigos, aos fins-de-semana e dias feriados, num ambiente festivo e descontraído, marcado pela diversidade de pratos, petiscos e bebidas, servidos com música de instrumentos de corda ou então, em tempos mais modernos, de gira-discos, sendo quase obrigatório que o quadro fosse completado com um “pé de dança”.
Cada grupo de convivas procurava instalar-se aonde podia desfrutar de maiores comodidades, donde a disputa pelos melhores espaços, como era por exemplo o caso das sombras dos tamarindos ou das amendoeiras, árvores cujas copas eram as mais frondosas, susceptíveis de acomodar um maior número de pessoas. Normalmente um elemento do grupo ou da família ia mais cedo, ou mesmo de véspera, para marcar o território, antecipando-se assim a outros pretendentes.
A partir dos anos 50 do século passado, Fontona passou a acolher uma celebração religiosa, pois um dos donos, Augusto Pereira Pimentel, emigrante nos Estados Unidos da América, mandou construir ali a capela de Santa Ana, cujas festividades, assinaladas no último domingo de Julho, atraíam um grande número de fiéis católicos, particularmente os devotos da Santa. Convém esclarecer que, apesar do calendário religioso fixar a efeméride no dia 26 do referido mês, as comemorações eram assinaladas no último domingo, certamente, para permitir a maior afluência de pessoas de todas as localidades da Ilha.
O aconchego que Fontona proporcionava, o calor humano e a descontração que ali se vivia, conferiram-lhe lugar especial no coração dos salenses que dela guardam gratas recordações, deixando em todos a vontade de a revisitar e de reviver momentos inolvidáveis, nem que seja apenas no imaginário.
Como já se disse, na Fontona se situam duas propriedades rústicas que se complementam: uma, a mais extensa e de vegetação mais intensa, por isso a mais visitada, cujo proprietário era Francisco Pimentel (Ti Tel), salense emigrado na América, muito estimado pela população da ilha; outra pertencente a Júlio Hipólito Fortes (Ti Júlio Hipólito), uma referência de S. Maria e Pedra de Lume.
Na Fontona de Ti Tel havia uma residência (hoje em ruínas) no alto que domina o vale, no limite norte da propriedade, estrategicamente situada, mais ou menos ao meio da mesma, a algumas dezenas de metros da Capela de Santa Ana.
Enquanto encarregados da propriedade, desde os primeiros anos do século XX, ali viveram Ana Henriqueta Barros e o esposo Manuel Lucrécia Ramos, acompanhados dos filhos (os irmãos Barros Ramos) que ali nasceram e cresceram. Quando estes constituíram família e mudaram-se para Palmeira, o irmão mais novo, Augusto Barros Ramos, passou a assumir as funções de encarregado da propriedade. Mais tarde, ele conquistou terreno num espaço contíguo e construiu a sua própria propriedade, aonde erigiu a sua moradia. Ali explorou um regadio durante quase toda a sua vida, produzindo hortícolas que eram colocados no mercado. Concomitantemente, dedicava-se à criação de animais, outro complemento do rendimento familiar.
Dificilmente se pode falar da Fontona sem se referir a esse senhor cujo perfil, marcado por cordialidade, fineza no trato, seriedade e dedicação ao trabalho, conferiu-lhe a áurea de uma figura muito querida na Ilha do Sal do seu tempo. Ti Guste, como era tratado pelos mais novos, dedicava-se também à pesca na baía de Fontona e suas imediações, com o seu pequeno bote que movia a remos. Ora com os dois remos, ora apenas com um, a zinga.
Mesmo com a progressiva escassez das chuvas e a seca que se foi prolongando, ainda nos anos 80 / 90, Fontona continuava a ser um espaço verde, produtivo e recanto de lazer.
Porém, hoje a realidade é radicalmente diferente. Os coqueiros, afectados por alguma praga, acabaram por cair. As tamareiras secaram, os tamarindos e as amendoeiras desapareceram e os poços salinizaram-se. Assim, ao verde viçoso de outros tempos se substituíram as intrusas acácias americanas que, ironia do destino, se encontram também sob os efeitos da exaustão hídrica.
Efectivamente, Fontona, transmite nos dias de hoje uma imagem de desolação, consequência muito provável dos efeitos das mudanças climáticas, ocorridas também na ilha, não sendo, porém, de se excluir que uma tempestiva e bem orientada intervenção humana, sobretudo na contenção das espécies daninhas que sugam a pouca humidade do solo, pudesse ter atenuado os efeitos da seca.
É assim natural que quem tenha conhecido esse local nos seus tempos áureos, guardando gratas recordações da sua exuberância, do lazer, da convivialidade e do bem-estar que o mesmo proporcionava, dificilmente deixará de experimentar a mais profunda tristeza ante o quadro que lhe é dado observar. A sensação é de que parte de nós, parte da nossa identidade, também ter-se-á definhado e extinto com o icónico oásis da Ilha do Sal.
Felizmente que não é assim. Pelo contrário, anima-nos a certeza de que Fontona, naquilo que nos ofereceu do melhor, a começar pela hospitalidade das suas gentes, jamais deixará de estar presente na nossa memória colectiva.
Maio de 2022.
*Este texto é dedicado ao nosso saudoso tio Augusto Barros Ramos – carinhosamente tratado por “Dute”, pelos filhos, e “Mandjute”, pelos sobrinhos -, um homem que durante toda a sua vida cuidou com insuperável esmero da Fontona, erigindo-se, assim, por direito próprio, em um dos primeiros ambientalistas da Ilha.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 769, de 26 de Maio de 2022